Todo projeto de individualização do verso é uma aposta no poder solitário da voz. A voz é sempre a afirmação do ser contra a estandardização da cultura. É neste caminho que se encontra Maria Carpinejar, que estreou aos 50 anos e acrescentou à lírica nacional a força de suas raízes.
Sua nova coletânea, As sombras da vinha, é um poema contínuo em torno de uma voz-mulher, que se revela em metáforas proliferantes, sem o objetivo de escrever um poema, no sentido de artefato, mas maturando experiências. O livro apresenta um ritmo em que a palavra é o encontro com o inesperado.
Sem querer ser o instrumento de racionalização do mundo, a poeta se vê como campo de fertilidades profundas: “Lembro que sou terra/ e novamente me revolvem” (pág. 19). O “arado sutil” é que vira essa terra, libertando a potencialidade adormecida. Sua poesia é esse medrar na obscuridade.
A poeta é terra. E isso se codifica em outras metáforas ou metonímias do mesmo campo semântico: “raiz que sou,/ funda, nunca aclarada” (pág. 21); “Quero apresentar-me/ com a cara e as mãos/ de quem acabou de fuçar/ as hortas” (pág. 43); “O vinhateiro vem e me poda” (pág. 51); “Dorme a caneta como enxada” (pág. 61); “Estar atento às raízes”, “As réstias da terra úvida” (pág. 103); “Sou um parreiral/ de crestadas folhas e o olor/ do mosto ao relento” (pág. 123).
E essa poeta-terra se elabora lentamente.
A metáfora do vinho é o centro do livro. Ele está relacionado ao tempo, à maturação das frutas, à fermentação. A poeta habita uma sombra — vendo-se como raiz ou como vinhas, cifrando nesse universo semântico uma poética da madureza. Sua poesia une a palavra em estado de húmus à imagem da mulher hospedeira do tempo. Seus versos (nada claros, não construídos) são fermentações dessa vivência que aprofunda raízes no tempo.
Todo esse trabalho, que é humano e também poético, culmina no vinho, “apuração de sombras da vinha” (pág. 33). É este o trabalho da poeta, que transforma a si mesma em terreno que dará a bebida atemporal. Assim, ela dilata seu tempo, elaborando-se nas sombras, que deixam de ser só um lugar de descanso e de exílio para assumir a função de laboratório do ser-palavra. Sob as vinhas, na solidão agrária, a poeta faz a passagem de um tempo verde para um tempo maduro, afirmando uma estação perene.
Indo além da própria representação da mulher-terra, os poemas de Maria Carpi apontam para uma imagem do homem como um ser que busca a essência dos frutos, este vinho que nos dá outra parcela temporal. Se a poeta é a terra-raiz-vinha, a poesia é o vinho denso de sombras tão amorosamente cultivadas.
Sua poesia é extensão do ser e não uma técnica. Não temos aqui poemas tradicionais, mas palavras embriagantes.