Embriaguez da palavra

Versos de Maria Carpi promovem encontro com o inesperado
Maria Carpi, autora de “As sombras da vinha”
01/07/2005

Todo projeto de individualização do verso é uma aposta no poder solitário da voz. A voz é sempre a afirmação do ser contra a estandardização da cultura. É neste caminho que se encontra Maria Carpinejar, que estreou aos 50 anos e acrescentou à lírica nacional a força de suas raízes.

Sua nova coletânea, As sombras da vinha, é um poema contínuo em torno de uma voz-mulher, que se revela em metáforas proliferantes, sem o objetivo de escrever um poema, no sentido de artefato, mas maturando experiências. O livro apresenta um ritmo em que a palavra é o encontro com o inesperado.

Sem querer ser o instrumento de racionalização do mundo, a poeta se vê como campo de fertilidades profundas: “Lembro que sou terra/ e novamente me revolvem” (pág. 19). O “arado sutil” é que vira essa terra, libertando a potencialidade adormecida. Sua poesia é esse medrar na obscuridade.

A poeta é terra. E isso se codifica em outras metáforas ou metonímias do mesmo campo semântico: “raiz que sou,/ funda, nunca aclarada” (pág. 21); “Quero apresentar-me/ com a cara e as mãos/ de quem acabou de fuçar/ as hortas” (pág. 43); “O vinhateiro vem e me poda” (pág. 51); “Dorme a caneta como enxada” (pág. 61); “Estar atento às raízes”, “As réstias da terra úvida” (pág. 103); “Sou um parreiral/ de crestadas folhas e o olor/ do mosto ao relento” (pág. 123).

E essa poeta-terra se elabora lentamente.

A metáfora do vinho é o centro do livro. Ele está relacionado ao tempo, à maturação das frutas, à fermentação. A poeta habita uma sombra — vendo-se como raiz ou como vinhas, cifrando nesse universo semântico uma poética da madureza. Sua poesia une a palavra em estado de húmus à imagem da mulher hospedeira do tempo. Seus versos (nada claros, não construídos) são fermentações dessa vivência que aprofunda raízes no tempo.

Todo esse trabalho, que é humano e também poético, culmina no vinho, “apuração de sombras da vinha” (pág. 33). É este o trabalho da poeta, que transforma a si mesma em terreno que dará a bebida atemporal. Assim, ela dilata seu tempo, elaborando-se nas sombras, que deixam de ser só um lugar de descanso e de exílio para assumir a função de laboratório do ser-palavra. Sob as vinhas, na solidão agrária, a poeta faz a passagem de um tempo verde para um tempo maduro, afirmando uma estação perene.

Indo além da própria representação da mulher-terra, os poemas de Maria Carpi apontam para uma imagem do homem como um ser que busca a essência dos frutos, este vinho que nos dá outra parcela temporal. Se a poeta é a terra-raiz-vinha, a poesia é o vinho denso de sombras tão amorosamente cultivadas.

Sua poesia é extensão do ser e não uma técnica. Não temos aqui poemas tradicionais, mas palavras embriagantes.

As sombras da vinha
Maria Carpi
Bertrand Brasil
224 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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