Em nome de Deus

Em “Gilead”, Marilynne Robinson investiga e disseca a porção humana e a dimensão religiosa dos personagens
Marilynne Robinson não está interessada em fazer com que sua narrativa seja palatável, de fácil degustação.
01/03/2006

O leitor brasileiro talvez encontre uma certa dificuldade em desfrutar plenamente da beleza e transcendência de Gilead, segundo romance da escritora norte-americana Marilynne Robinson (de Housekeeping), vencedor do prêmio Pulitzer em 2005. Escrito sob a forma de uma carta, o romance, primeira obra ficcional da autora em 20 anos, é uma espécie de testamento emocional de um pastor à beira da morte a seu filho de apenas 7 anos. Mas, embora discuta temas universais, como família, a relação do homem com a constatação da mortalidade e solidão, Gilead é, sobretudo, um retrato profundo da experiência protestante nos rincões mais remotos dos Estados Unidos.

Marilynne Robinson não está interessada em fazer com que sua narrativa seja palatável, de fácil degustação: o tom do romance é grave, reflexivo e em momento algum busca emoções rasteiras. Tanto que, para degustá-la, o leitor tem de sorver, palavra a palavra, e sem pressa, a beleza serena que verte das páginas, sem querer devorá-las. É preciso deixar-se conduzir pelo tom confessional e introspectivo adotado pelo protagonista ao falar de sua vida como quem tenta nela encontrar um sentido, diante da perspectiva do inevitável fim.

John Ames, ao mesmo tempo autor de milhares de sermões e homem de poucas palavras em seu dia-a-dia, é um personagem fascinante mas assumidamente anti-heróico, sem qualquer intuito de se fazer maior do que foi em vida — sua vaidade, embora venha à tona em algumas passagens do livro, quase sempre emerge acompanhada de culpa.

Quando descobre sofrer de uma forma grave de angina, que pode parar seu coração a qualquer momento, Ames sente a necessidade premente de se explicar ao filho temporão, ainda muito pequeno para compreender o significado de toda uma vida dedicada a conduzir seu rebanho. O que pode dificultar um pouco o entendimento pleno da obra de Marilynne Robinson é o desconhecimento sobre o papel fundamental que a religião pode ter no espaço geográfico onde seu romance se desenvolve.

Ames vive em Gilead, pequena cidade do estado Iowa, no chamado cinturão bíblico do Meio-Oeste norte-americano. Na região, colonizada por imigrantes europeus profundamente tementes a Deus, a igreja não é apenas templo, mas um pilar fundamental da vida em comunidade. Pastores como Ames não se limitam ao aconselhamento espiritual. Em uma passagem significativa do livro, ele conta, com um certo tom de ironia, que uma viúva recém-transferida de sua fazenda para a cidade recorre ao pregador quando as torneiras de sua nova moradia não funcionam a contento. A mulher não tem a quem pedir socorro a não ser ao homem que todos os domingos a ensina a viver em conformidade com os evangelhos.

Para falar de si mesmo, e assim buscar uma forma de transmitir ao filho tudo aquilo que não viverá para contar-lhe pessoalmente, Ames tem de voltar no tempo e reconstituir a história de seu pai e avô, ambos pastores como ele, mas profundamente diferentes entre si. Desse confronto entre dois homens capazes de interpretar as escrituras de formas tão diversas, a autora tira uma das tramas fundamentais de Gilead.

O pai do protagonista, também chamado John Ames, era, nas palavras do filho, um pacifista inteiramente dedicado à missão evangelizadora, o que o colocou em conflito com o avô, originário do estado de Maine, na região da Nova Inglaterra. Ames descreve o avô, talvez o personagem mais instigante de Gilead, como um homem áspero, sem doçura e com um messiânico senso de dever. Antiescravagista e dono de uma personalidade intempestiva e nada conciliadora, o patriarca da família enxerga na sangrenta Guerra de Secessão, na qual norte e sul dos EUA se confrontaram, uma espécie da batalha santa. Contrário às elites escravocratas sulistas, ele se alista e incita seus fiéis a vestir fardas e empunhar armas contra as tropas confederadas. Vê o conflito como uma missão divina, da qual não pode — e não deseja — escapar, sob o risco de estar contrariando o que considera a vontade do Senhor.

Quando retorna dos campos de batalha, o avô está cego de um olho e brutalizado irremediavelmente pelo que viu e viveu. Nunca mais será o mesmo e nem se dispõe a admitir que muitas ovelhas de seu rebanho morreram como conseqüência de sua crença no caráter transcendente e urgente da guerra, vencida pelo lado que defendeu. O pai de Ames, um homem que despreza as armas e a violência, tem absoluta certeza de que o velho matou em nome de Deus, e não o perdoa por isso. Esse legado de ressentimento parece ser determinante na construção da personalidade do narrador, que vê na carta que escreve ao filho uma forma de fazer um balanço não apenas de sua vida, mas de sua saga familiar.

Tragédias
É particularmente impactante a descrição da epopéia vivida por ele e seu pai, quando ambos partem rumo ao estado do Kansas à procura do túmulo do avô, que em determinada altura da vida, talvez assombrado pelos fantasmas do passado e da guerra, abandona a família, para desaparecer no mundo, sem jamais voltar a dar notícias. Ainda que não seja mais do que um menino, Ames percebe que a busca pelo túmulo é, de certa maneira, um ajuste contas, um reencontro necessário para que a paz se faça na vida do pai.

Tragédias, aliás, parecem ser um elemento inerente à narrativa de Gilead. Mas como é um homem religioso, John Ames não a descreve em tom melodramático ou ressentido. Antes de conhecer a mãe de seu filho, uma mulher muitas décadas mais jovem do que ele, o pastor foi casado com uma amiga de infância. Louise, a primeira esposa, morre no parto, assim como o bebê, deixando Ames só. Como enxerga na fatalidade uma espécie de desígnio divino, o personagem não vê outra opção a não ser aceitar o infortúnio e prosseguir vivendo. Entrega-se de corpo e alma à pregação, esquecendo-se de si mesmo e conformando-se com o destino solitário que lhe parece ser reservado. Tem mais de 60 anos quando uma jovem mulher senta-se no fundo da igreja durante um sermão e rouba-lhe a atenção, como nenhuma outra mulher havia feito. Em pouco tempo está casado e o impensável acontece: Deus o abençoa com um filho, que não terá tempo de ver crescer, mas que ama com ternura quase desesperada.

Há algo de impressionante na forma como Marilynne Robinson escreve. Não se trata apenas de fazê-lo muito bem — o que se comprova a cada página do romance. O mais impressionante é perceber como a autora consegue investigar e dissecar tanto a porção humana e terrena de Ames — revelada pelo temor da morte iminente ou pelo ciúme que sente de um homem mais jovem que se aproxima de sua família — quanto a dimensão religiosa do personagem.

Ao longo da carta, Ames discorre sobre a natureza de seu ofício, sobre o desafio de encontrar no coração e, sobretudo, na razão, forças para guiar espiritualmente pessoas que nele enxergam mais do que um ser humano, mas um guia para suas vidas. De uma certa forma, ele espera que sua carta-testamento assim funcione para seu filho.

Professora do renomado curso para escritores da Universidade de Iowa, um dos mais importantes nos EUA, Marilynne parece ter esperado duas décadas, diante às quais dedicou-se à pesquisa das raízes protestantes do Meio-Oeste americano, para legar à posteridade algo definitivo. Conseguiu. Gilead é uma obra-prima.

Gilead
Marilynne Robinson
Nova Fronteira
299 págs.
Marilynne Robinson
Nasceu em Sandpoint (EUA), em 1947. Além de Gilead, é autora de Housekeeping, The death of Adam: Essays on modern thought, Mother country e Puritans and prigs.
Paulo Camargo
Rascunho