Em nome da perfeição

Derek Jules Gaspard Ulric Niven Van den Bogaerde: o nome parece mais longo do que os meses breves, na curva rápida do tempo que já faz contar um ano da morte de Dirk Bogarde
Dirk Bogarde
01/07/2000

Derek Jules Gaspard Ulric Niven Van den Bogaerde: o nome parece mais longo do que os meses breves, na curva rápida do tempo que já faz contar um ano da morte de Dirk Bogarde.

Para a “geração do multiplex”, não sei se será realmente possível compreender, na essência, o carisma desse ator que, retirado do cinema, tornou-se novelista com a mesma qualidade de ambigüidade, indefinível, das suas atuações. Nenhum dos 15 títulos do autor (entre ficção e relatos autobiográficos) foi traduzido no Brasil, ainda, e seus filmes recuam para aquelas décadas mais e mais ignoradas, nas vídeo-locadoras.

A simples presença de Bogarde — mesmo em filmes menores —transmitia classe (e não afetação) e uma elegância que não era indiferença. Havia desespero na bagagem da sua geração — e uma carga erótica, de “sobreviventes”, a olhar para coisas e pessoas que nunca mais seriam as mesmas, após duas guerras. Já em The Blue Lamp (1949), de Basil Dearden, o novato Bogarde trazia isso para animar, poderosamente, seu personagem perdido num filme de outro modo insosso, sobre policiais decentes numa Londres para sempre marcada por cicatrizes morais mais visíveis do que os destroços.

Vinte anos depois, a city mais uma vez remendada e colorida, despontava a década mais agitada do século, e Bogarde refinava a espécie de intensidade crispada da sua ironia, nas  mãos de diretores como Losey — ao transformar o mordomo de The Servant (1963) em  insinuante e sutil encarnação do “mal” refletido, indiretamente, nos múltiplos espelhos da decadente Inglaterra.

De ascendência holandesa por parte do pai (e hispano-escocesa por parte da mãe), o “Gustav von Aschenbach” da versão de Morte em Veneza foi o ator talvez mais emblemático daquele cinema culturalmente empenhado de 60/70. Boa parte dos filmes dos festivais internacionais da época era feita por artistas e intelectuais verdadeiros (Resnais, Pasolini, Visconti) comprometidos com teses e escolhas estéticas — e não com os números de bilheteria da Era Spielberg. Alguém deve se lembrar desse paraíso perdido, na atual maré de mediocridade que celebra o teor “artístico” de algo como “American Beauty”…

Antecipando a decadência geral, Dirk Bogarde abandonou o cinema em 1977, retirando-se para sua casa no sul da França, nas colinas de Grasse. Ali, restauraria uma velha fazenda do século 15, e se iniciaria na segunda profissão da vida de Derek-Jules-Gaspard-etc-etc: escritor.

NA HARTCHADS — Como tal é que (quase por acaso) fui encontrá-lo na velha livraria Hartchards do centro de Londres, num final de tarde de setembro, em 1986, por ocasião do lançamento de Backcloth — último volume da autobiografia de um homem serenamente insatisfeito com os tempos do “mal-acabado, do grosseiro e do apressado”. Com as sílabas bem destacadas, típicas de um ator, sua resposta à pergunta (inevitável) sobre a “retirada de cena” passaria por Death in Venice, sem amargura — mas enfaticamente: “Esse foi um filme quase perfeito. Eu o considero, como dizer?… a minha Nona Sinfonia como ator, regida por um grande maestro que pouco interferiu no meu solo de um personagem devorado pela solidão interior. ‘Quantas vezes você já leu o livro?’, Visconti me perguntou. ‘Umas trinta ou trinta e cinco vezes’, respondi. ‘Bem, então leia mais umas dez vezes e não me pergunte mais nada’, foi o que eu ouvi de um homem temido como diretor de atores!”

Corte. Logo após a estréia de Morte em Veneza em Nova Iorque, Bogarde pegou o carro e desceu o caminho de pedras, rumo ao aeroporto de Nice, para comprar as revistas americanas com as primeiras críticas do filme. Estarrecido, leu que o Time via na sua atuação “apenas olhares magoados e recitações vazias”. Outro — o Newsweek, sutil como uma moto-serra — falava em “filme do movimento gay para acabar com todos os filmes”…

Dezesseis anos depois, Bogarde ainda se permitia um pouco daquela indignação de 1970:

— Eu apenas fiquei imaginando: o que um diretor com a sensibilidade de Visconti deveria estar sentindo? Como vencer a pura má-vontade? Todo o trabalho de dois anos de absoluta dedicação… junto com a equipe (havíamos trabalhado por um pagamento bem menos compensador do que as mais modestas ofertas puramente comerciais), e lá estava o resultado: tudo era descartado em duas linhas de zombaria inconseqüente.

Mas não se faça a idéia de um homem “amargurado”, em 1986. No salão atulhado de livros de Picadilly, 187, uma tranqüila “celebridade” via o cinema já afastado da sua vida (só voltaria para mais dois ou três filmes, nos quais se envolveria também com os roteiros). Não esperava morrer longe da “bela e querida Inglaterra” de Graham Greene — autor com quem é freqüentemente comparado — mas vivia retirado em Grasse, vendo crescer a estima de Voices in the Garden e West of Sunset, suas primeiras novelas (na minha opinião mais próximas de Lawrence Durrel do que de Greene), ambas com um preciso senso do corte e da montagem que é a característica da atual narrativa impregnada do ritmo e do olhar cinematográficos.

Uma relação básica dos livros de Dirk Bogarde (e com isso espero despertar o interesse de algum editor brasileiro!) incluiria A Gentle Occupation, Great Meadow e Jericho — novelas — e os autobiográficos A Postillion Struck by Lightning, An Ordely Man, A Short Walk from the Harrods, Cleared for Take-off  e For the Time Being.

Tais obras lhe granjearam a melhor receptividade da crítica européia e do público atraído — ou não — pelo prestígio do ator de Darling, Estranho Acidente, O Porteiro da Noite e outros filmes cujo êxito torna de fato inexplicável o aparente desinteresse dos editores brasileiros pela tradução de alguns dos livros de Bogarde. West of Sunset poderia ser o primeiro: traz um certo glamour associado ao cinema — e o mesmo rigor, a mesma exigente performance de Sir Dirk e seu lema: o máximo de si, em nome da perfeição.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho