O nome de Murilo Mendes (1901-1975) está vinculado ao momento de consolidação do Modernismo brasileiro, momento esse que também significou um ápice para a própria literatura brasileira, em sentido lato. Nos anos de 1930 — período em questão —, assistiu-se a um processo de adensamento literário que, a um só tempo, se manifestou como ampliação do repertório temático e aumento (quantitativo e qualitativo) das possibilidades formais. De modo igualmente simultâneo, nos anos 30 a literatura brasileira não deixava dúvidas quanto à recusa do antigo servilismo aos modelos europeus, recusando também, talvez por antecipação, o que poderia se tornar — e se tornou — regra instituída pelo ideário modernista, o qual — nalgumas ocasiões do que a historiografia chama de primeira fase — se quis mais modernista do que artístico.
Para se ter uma ideia mais clara da dimensão literária dos anos de 1930, no Brasil, importa lembrar de alguns de seus mais substantivos marcos. Foi em 1930 que estreou Carlos Drummond de Andrade, com Alguma poesia; foi em 1930 que Manuel Bandeira, modernista de primeira hora, publicou seu quarto e mais emblemático volume, Libertinagem, síntese aguda de todo o Modernismo. É na década de 1930 que uma autora de antes — Cecília Meireles — consolida sua escrita poética com Viagem (1939), sendo também desse decênio o surgimento de um poeta consagrado depois: Manoel de Barros, que em 1937 publicou Poemas concebidos sem pecado.
Esses são alguns exemplos do âmbito poético. Na prosa, os nomes de Jorge Amado, José Lins do Rego, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz — que estrearam na década em destaque — formam a página coletiva de maior vulto do romance nacional, o que se confirma e aprofunda com a aparição de Graciliano Ramos, espinha dorsal do conjunto e espinha para a garganta da historiografia: ele, associado à consolidação do Modernismo, fazia questão de se dissociar do movimento-estilo. Ainda na década de 1930 um extraordinário e ainda pouco frequentado ficcionista baiano proferiu, no campo do ensaio, o seu vagido: Adonias Filho, autor de obras supremas como Corpo vivo e Memórias de Lázaro, publicou O renascimento do homem. Se complementada com outros exemplos, a lista seria imensa, e talvez ocupasse todo o espaço disponível.
Murilo Mendes compõe e é composto por esse momento, quando a pesquisa e a experimentação da linguagem literária consorciaram-se a acuradas reflexões acerca da existência individual e coletiva, sem que um tópico suplantasse o outro. Escritores e artistas de outras vertentes, num misto de consciência e intuição, concluíram que a assimilação de uma linha teórica não deveria obrigatoriamente significar o repúdio de outra, ainda que elas se apresentassem como refratárias. Em Murilo, a exemplo de todos os grandes escritores seus contemporâneos, são perceptíveis uma enfática afirmação das diretrizes literárias do Modernismo e uma convicta extrapolação delas. Essa percepção tem agora um novo reforço, quando a Cosac Naify empreende reedição admirável (pelo apurado acabamento gráfico e pelo cuidadoso estabelecimento do texto) da obra do poeta mineiro, cuidada por Júlio Castañon Guimarães, Milton Ohata e Murilo Marcondes de Moura. No momento em que escrevemos, chegam ao público reedições de Poemas (1930), Convergência (1970) e (do bioficcional) A idade do serrote (1968); além de uma inédita Antologia poética (organizada por Júlio Castañon e Murilo Marcondes), publicada em duas versões, uma delas acompanhada por um CD com a gravação da leitura do próprio poeta de oito de seus poemas.
Sem ignorar a relevância das outras obras, falarei aqui especialmente sobre Poemas, por ser o primeiro e — dentre os que agora saem — mais importante livro do poeta de Juiz de Fora, dado concentrar aspectos presentes no desenvolver de sua bibliografia. Além disso, trata-se de um livro-súmula do momento acima destacado.
Bagunça e transcendência
Quando abordado de modo breve, Murilo Mendes é infalivelmente lembrado pelo par linguagem surrealista/devoção católica. Na medida em que as vanguardas radicalizam o propósito de distinguir o discurso artístico do discurso comum, pode-se ver no Surrealismo um cume vanguardista, pois sua dicção, por afeita ao ilogismo, se desgarra das relações objetivas entre significante e significado. Como se sabe, as vanguardas não pretenderam efetivar transgressões restritas ao campo da estética; toda forma de convenção figurou, ao menos em tese, como alvo do anseio inovador dos artistas de maior repercussão do século 20.
A obra de Murilo Mendes é fortemente contaminada pelo Surrealismo, o que se verifica já na abertura de seu livro inaugural, com sua estranha Canção do exílio:
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
Em linhas gerais, a poesia não se obriga a falar pela perspectiva da coesão e da coerência, aspectos pelos quais se deve orientar um texto destinado à comunicação comum. No caso da dicção poética de teor surrealista, essa desobrigação torna-se princípio e fim, para que o encadeamento sintático e semântico do texto seja eólica e oniricamente desarrumado. Se tomarmos como referência o texto que está sendo parodiado — a Canção do exílio, de Gonçalves Dias —, será possível constatar no texto de Murilo um desalinho no que tange às imagens formuladas e à estrutura do discurso. Já os dois primeiros versos torcem referências da razão geográfica: “Minha terra tem macieiras da Califórnia/ onde cantam gaturamos de Veneza” soam como o canto do sujeito desterritorializado, conforme sugere Silviano Santiago (creditando o conceito a Gilles Deleuze) no posfácio do livro, ou mesmo como o de um ser universalista, que vê na sua a reunião de todas as terras. A mais, talvez seja possível verificar nos versos a constatação irônica de que alguns dos símbolos valorosos da brasilidade não são efetivamente brasileiros, algo de que a literatura romântica se serviu enfaticamente, como se concluísse que “aquilo que presta na minha terra só presta por não ser genuinamente dela”.
De todo modo, chama a atenção que Murilo tome os elementos basilares do poema gonçalvino — a terra pátria, a natureza canora e a condição de estrangeiro (“Eu morro sufocado/ em terra estrangeira.”) — para apresentá-los por meio de uma simbologia absurda (“sabiá com certidão de idade”). Tal apresentação é feita sobre uma arquitetura que, diferentemente da canção oitocentista, não se caracteriza pela disposição linear dos elementos: “Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda./ Eu morro sufocado/ em terra estrangeira”. A postura anárquica da escrita surrealista cai como luva para os autores modernistas dados a satirizar os “brasões nacionais”, neste caso os poetas oficiais do Império e a exuberância natural da “pátria das bananeiras”, como a chamou Casimiro de Abreu: “A gente não pode dormir/ com os oradores e pernilongos”. Submetendo a razão de ser da literatura a uma nova concepção, a cultura modernista substitui a figura do poeta como arauto das virtudes (em se tratando da temática nacional) pela do poeta como ironista das verdades consagradas pelo discurso oficial e pelo senso comum: “Nossas flores são mais bonitas/ nossas frutas mais gostosas/ mas custam cem mil réis a dúzia”. E é justamente pela evocação da verdade e de uma forma de atestá-la (a certidão de idade), que a Canção do exílio (de Gonçalves Dias) recebe seu golpe final de dessacralização: “Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/ e ouvir um sabiá com certidão de idade!”.
Nota-se, portanto, que a desordem prestigiada pelos surrealistas não se resumia a um traço estilístico a se manifestar para dentro. Há em sua feição desorganizada um princípio reformador de dentro para fora.
Um parêntese
Primeiro texto de Poemas, Canção do exílio é uma revisão do cânone literário brasileiro. O segundo texto mantém a intenção revisionista, mas altera o objeto revisto: a história do Brasil, ou, mais especificamente, o discurso historiográfico tido como oficial à época do livro. Quinze de novembro dirige suas lentes aos bastidores dos grandes acontecimentos nacionais, despindo-os de qualquer monumentalidade:
Deodoro todo nos trinques
bate na porta de Dão Pedro Segundo.
— Seu imperadô, dê o fora
que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
Mande vir os músicos.
O imperador bocejando responde
— Pois não meus filhos não se vexem
me deixem calçar as chinelas
podem entrar à vontade:
só peço que não me bulam nas obras completas de Victor Hugo.
A soma de questionamento ao discurso consagrado e zombaria de episódios marcantes dá a tônica do livro seguinte de Murilo Mendes — História do Brasil, de 1932. Descartado pelo próprio autor anos após seu lançamento, a obra não é incluída nesta reedição. Mas como algo dela aparece no livro anterior, convém abordá-la aqui para pensar nas relações que envolvem a poesia e os fatos. A exemplo de outros modernistas — como Oswald de Andrade e José Paulo Paes —, Murilo também se destaca entre os que fizeram uma poesia explicitamente marcada pelo reexame dos registros oficiais da vida brasileira. Apesar do título neutro, História do Brasil é um conjunto de textos profundamente irônicos, inclinados a retirar a maquiagem dos discursos que fazem o “histórico” rimar obrigatoriamente com “heroico”. Uma vez que, como dissemos, a obra muriliana vincula-se ao Surrealismo, torna-se ainda mais surpreendente verificar que por meio da poesia — reino do inventado, do fictício, do irracional e da inverdade — se pode ter uma dimensão mais apropriada e verossímil dos acontecimentos relativos à nação tupiniquim. No posfácio anteriormente referido (ao livro Poemas), Silviano Santiago, em coro com Murilo, vê História do Brasil como equívoco poético, algo de que discordo, na medida em que o livro é permeado por um humor de admirável efeito, e também por significar um conjunto de acabamento mais interessante do que as investidas de Oswald de Andrade em Pau-Brasil (1925). Em carta a Mário de Andrade, datada de dezembro de 1930 (e incluída na presente edição de Poemas), o autor de As metamorfoses aborda o assunto de modo autônomo, ilustrando bem, como trato neste artigo, a negação da monomania: “Espero o Remate de males com ansiedade e o seu artigo. Mando os dois poemas cabeludos, estou alarmado com as reclamações contra os poemas-piada, gosto de fazê-los porque me dão agilidade ao espírito. Mas não fico neles”.
Em História do Brasil, a ordenação dos textos baseia-se na cronologia usual. Os poemas são dispostos de acordo com a referência factual que tematizam, iniciando pela aparição dos primeiros europeus no território e chegando até a época em que Murilo elaborava o volume. Assim, a forma de organização permite supor que a obra seja afinada ao modo convencional de escrita historiográfica. Mas os primeiros sintomas de que a suposição será desfeita se encontram já no texto de abertura, Prefácio de Pinzón:
Quem descobriu a fazenda,
Por San Tiago, fomos nós.
Não pensem que sou garganta.
Se quiserem calo a boca,
Mando o Amazonas falar.
Mas como sempre acontece,
Nós tomamos na cabeça,
Pois não tínhamos jornal.
A colônia portuguesa
Mandou para o jornalista
Um saquinho de cruzados.
Ele botou no jornal
Que o arquimedes da terra
Foi um grande português.
A sátira foi empregada pelos modernistas para diluir a grandiloquência dos pronunciamentos institucionais. Em História do Brasil, isso se comprova especialmente nos textos que alvejam momentos cobertos de grande furor nacionalista. É o caso de Fico, que tematiza a famosa declaração de D. Pedro I, de 9 de janeiro de 1822 — “(…) Eu fico, mas vou/ Falar com a Marquesa,/ Já volto pra ceia./ Falando em comidas/ Eu fico, pois não”; de Preparativos da pescaria, sobre os antecedentes do grito da Independência — “(…) Meu pai não fez coisa alguma/ Por vocês, ó vrazileiros./ Se meu pai disse que fez/ Ele mente pela gorja./ O que fez o rei de bom/ Não foi ele, meus meninos,/ Foi o conde de Linhares”; e de Proclamação de Deodoro, acerca da instituição da república em 1889: “Ó que belo movimento!/ Ouro-Preto não estrilou./ Foi tudo feito com rosas/ E salva de 21 tiros.// Apenas quase matamos/ O pobre Barão do Ladário”. Pela referência episódica e pela forma corrosiva, Proclamação de Deodoro guarda relação direta com Quinze de novembro, de Poemas, transcrito parágrafos acima. Nos dois livros, a inclinação absurda da reconstituição dos fatos imprime no imaginário do leitor uma conclusão controversa e nítida, do tipo “não aconteceu assim, mas é assim que foi”.
O projeto revisionista de Murilo Mendes e de seus pares não se resumia a zombar de homens e eventos “célebres”. A fundo, repensava-se a própria nacionalidade e seus diversos elementos constitutivos. A expressão desse projeto deveria isentar-se de inflamações, tanto no tratamento de fenômenos pouco inspiradores de paixão nacionalista (as desrazões administrativas da coisa pública, por exemplo), quanto na saborosa retratação antropológica da gente nacional, matéria de Homo brasiliensis:
O homem
É o único animal que joga no bicho.
A simplicidade modernista corresponde à ideia de que a existência deve ser assimilada além da riqueza e do requinte, como um gesto sensível e arguto de quem vê a beleza onde em geral ela não é anunciada. Por outro lado, a simplicidade da escrita de História do Brasil decorre de uma firme tomada de posição para interpelar com rigor ideologias “nobres” que determinaram rumos da vida nacional. O tom menor da poesia quis repelir o megafone da historiografia estridente, denunciando suas dissonâncias. Por esse sentido, parece que a invenção do poeta não a invencionice que se pode supor, como se verifica na oposição absolutamente amena representada em Quinze de Novembro.
Transcendência
Faço nova referência ao posfácio de Silviano Santiago, destacando seu aspecto de maior alcance, isto é, a conversão de Murilo Mendes ao catolicismo. O título do ensaio já vale como esclarecimento — Poesia fusão: catolicismo primitivo/mentalidade moderna —, e suas linhas reforçam o que dissemos sobre os mais importantes autores brasileiros surgidos na década de 1930: ao se absorver determinada orientação, não se criava a obrigação de rechaçar outra.
Se as vanguardas preconizavam urgência em subverter costumes e convicções, só a um espírito aberto ou ilógico não soaria ilogismo a convergência envolvendo tradição cristã e arte futurista. Na segunda parte de Poemas (o volume é dividido em seis), intitulada Ângulos, o poema Cantiga de Malazarte fala de pluralidade e desconexão existencial:
Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.
Mais à frente, na mesma seção, surge um poema de título ainda mais emblemático. Ao correr do livro, gradativamente o abandono da lógica convencional parece caminhar para a formação de outra lógica, peculiarmente desordenada. Cito Os dois lados:
Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho pro trabalho.
Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida
tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão,
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.
A desordem do espírito é própria dos que se encontram em momentos de descoberta. Então, acerca de Murilo Mendes, pode-se ver que o desvario típico de sua escrita é abandono e inauguração. Milagrosamente — para usar um termo do dicionário cristão — a linguagem futurista e demolidora do passado encontra no poeta mineiro um vivo indício do homem reformado pela via da ancestralidade religiosa. Além de todas as polarizações, a vida pulsa em plenitude, e é a poesia — e não as sectárias tomadas de partido — a música do que existe. Cito Saudação a Ismael Nery, belíssima homenagem (não encomiástica) que Murilo Mendes dirigiu ao amigo pintor:
Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das ideias, das cores, a tonalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
forma e transparência.
Ao poeta de convergência, o caos é também harmonia. E conforme ele mesmo diz em Mapa, altíssimo feito de Poemas — “viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente” —, a desordem revela-se caminho para a instância do sublime. Milagre da laica e devota poesia.