Metáforas futebolísticas não são exclusividade de nosso presidente. As tais atingiram maior visibilidade nos últimos quatro anos, certamente. Porque são de fácil assimilação. Porque servem para tudo nessa vida. E são eficientes na entrega da mensagem. Por isso, as comparações com o esporte bretão já se espalharam por todos os cantos. Em todas as atividades. Da política à limpeza pública. Da sala de aula ao consultório do dentista. É óbvio que a literatura também seria atingida. O segundo tempo, de Michel Laub, é um exemplo. Já pelo título se percebe a coisa toda. A idéia do escritor gaúcho é usar os detalhes de uma partida — que pelo que Laub afirma (eu não sei; não acompanho futebol, muito menos o campeonato de um estado que nem é o meu) ficou conhecida como o Gre-Nal do século — para falar de decisões, de conflitos, surpresas e amadurecimento.
A história é simples e contada em um livro curto, de fácil leitura, apesar de idas e vindas no tempo. É tranqüilo e tem uma estrutura semelhante à de um jogo, apesar de os fatos daqueles 90 minutos estarem misturados. Boa leitura para uma noite de quarta-feira: um guri de 15 anos está em um daqueles momentos em que precisa decidir se vai para o ataque ou se recua para o goleiro. Seu pai deixou o emprego e vai anunciar, depois do jogo, que sairá de casa. Vai morar com outra mulher. Vai deixar o adolescente cuidando do irmão menor e da mãe. Ele, o guri de 15 anos, sabe de tudo isso, porque o pai já lhe contou. E somente a ele. O irmão caçula nem sonha com essa possibilidade, porque só tem olhos, ouvidos e boca para assistir, ouvir e gritar no jogão que acompanham naquele estádio cheio. O jogo é uma desculpa para o garoto refletir e para o leitor conhecer os dramas daquela família. Que parece com tantas outras. Mas que é única, como todas as outras. Mais ou menos como as partidas de futebol.
Aos 11 anos, o guri descobriu que seu pai tinha uma amante. Que tinha outra vida, outros (maiores) interesses em uma casa que não era a sua e com uma mulher que não era sua mãe. Na mesma época, o piá encontrou sua mãe quase morta no quarto. E foi aí que começou a crescer. Ele não podia mais ser criança. E quatro anos depois, já era adulto.
Normalmente o futebol sai da vida de alguém aos poucos, à medida que os compromissos da vida adulta se tornam maiores e mais complexos, num processo lento e quase imperceptível semelhante ao que nos torna estranhos ao que foi vivo e cintilante no passado […]. No meu caso foi diferente: eu lembro do Gre-Nal do Século como o dia exato desse afastamento […]. Naquele domingo foi a última vez que fez diferença, em que um centroavante entrando na área aos vinte e seis minutos do segundo tempo, diante da expectativa do meu irmão, do futuro imediato dele, teve alguma influência sobre mim.
O Gre-Nal do Século é o marco na vida do guri de 15 anos. Muito mais do que um simples jogo de futebol — e ele percebe que jogos de futebol são, sim, simples e não têm tanta importância —, aquele é o início do seu segundo tempo. O que ele fará a partir dali? Antes de ir ao jogo, tem uma idéia. Uma idéia que treinou exaustivamente. E no treino dava tudo certo. Só que todos já estão carecas de saber que treino é treino, jogo é jogo. E no jogo, essa caixinha de surpresas, tudo pode acontecer. A vitória ou a derrota são fruto dos detalhes e das decisões tomadas sem que se pense demais, para não perder a redonda numa bobeira. Na hora do jogo é preciso fazer escolhas rapidamente. Os caminhos estão ali, livres ou com obstáculos, mas sempre se apresentam — normalmente com uma das mãos levantadas e chacoalhando no ar. Marcar o atacante ou arrumar a meia? A escolha dura segundos. Mas o resultado ficará registrado para sempre. E fará com que a história ande para a direita ou para a esquerda, nessas milhares de bifurcações que se apresentam segundo a segundo. Só mais tarde, ao ver o replay em torturante câmera lenta, é que se pode assegurar se a decisão foi ou não acertada. Mas, qualquer que seja o resultado, não é possível voltar atrás.