O mito de Dalton Trevisan (considerado o maior contista da língua portuguesa de todos os tempos) acaba ofuscando os demais escritores da cidade. Quando algum suplemento cultural elabora uma reportagem sobre a literatura paranaense, o único autor que será obrigatoriamente citado é o “Vampiro de Curitiba”, dono de estilo, linguagem e universo próprios. Além dos prosadores, poetas, acadêmicos, historiadores e demais rascunhadores, Curitiba está atraindo produtores de texto de outras localidades, que esperam encontrar aqui as condições ideais para escrever. Na terra onde apenas Dalton é reconhecido, apesar de muitos tentarem se impor, há espaço para poucos, e um deles chama-se Jamil Snege.
O autor estreou na literatura com Tempo Sujo, em 1968, e apesar de ter publicado outras nove obras até agora, foi a partir de 1997 que seus textos começaram a atingir um público mais amplo. De lá para cá, suas narrativas curtas vêm sendo publicadas no Caderno G, da Gazeta do Povo, aos domingos, dia em que a tiragem do jornal é de 200 mil exemplares. Teoricamente, todos os paranaenses têm acesso a seu texto. Na realidade, o fato de publicar no maior jornal do Paraná faz com que ele seja lido não apenas pela inteligência provinciana, mas até pelo motorista de ônibus, pelo balconista da farmácia, pela verdureira, e demais mortais.
Já se encontra nas prateleiras das livrarias Como Tornar-se Invisível em Curitiba (Criar Edições, 86 págs.), livro contendo 25 textos publicados originalmente na imprensa. No entanto, apesar do material ter sido veiculado na mídia, isto não quer dizer que se trate de novidade descartável, como costumam ser as matérias jornalísticas. Munido de um texto ágil, Snege apresenta novos pontos de vista, colocando em xeque idéias solidificadas. Se a maioria afirma (da boca para fora) que o amor é eterno, em Para Matar um Grande Amor Snege contraria o chavão e provoca: “Só os amores verdadeiros acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor — mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro.” Ele questiona modismos, debochando da teoria de vidas passadas, das divertidas temporadas de verão no litoral paranaense, da tranqüilidade dos condomínios fechados, e ainda ironiza a si mesmo ao revelar como seria caso tivesse nascido mulher.
Se alguns textos são válidos para qualquer lugar do mundo, em outras ocasiões o cenário é Curitiba. Mas ele não é provinciano e, ao invés de elogio fácil, retrata sem piedade a cidade e o comportamento de seus habitantes. E o maior triunfo do autor é o humor refinado, ingrediente que falta tanto aos engraçadinhos quanto aos oposicionistas que tentam denegrir a imagem da “capital ecológica” ou “literária”. Estão presentes no texto de Snege algumas personalidades locais, como Fábio Campana, Roberto Requião e Luiz Alfredo Malucelli. Mas um personagem que volta e meia aparece é o Freitas que, mesmo tendo sido inventado, provavelmente foi inspirado em muitos conhecidos e serve de carapuça para quem quiser.
Talvez nenhum outro escritor brasileiro contemporâneo consiga fundir ficção com realidade como Jamil Snege faz, o que já estava evidente em seu livro anterior, Os Verões da Grande Leitoa Branca (Travessa dos Editores, 132 págs.). O texto de Snege é um típico exemplo do falso fácil, por dar a impressão de que qualquer um pode escrever como ele. Evidente que tal simplicidade é reflexo do inigualável talento do autor, e esta obra deveria ser lida pelos experimentalistas de plantão, que poderiam aprender o que é, ou o que pode ser, literatura de qualidade.
No texto que dá título ao livro, Snege mostra o que é preciso para tornar-se invisível em Curitiba. “Primeira condição: você precisa ter talento genuíno.” O autor alerta que se você assumir toda sua capacidade, os outros farão de tudo para interromper sua trajetória. Quem insistir em seguir a própria “lenda pessoal”, será banido do convívio social, e existirá apenas sendo o assunto nas conversas alheias. “A sua visibilidade, enquanto pessoa, transfere-se para a imagem que os outros fazem de você.” Assim como Dalton Trevisan, Jamil Snege também cometeu um crime imperdoável: ele escreve bem. E, em Curitiba, escrever bem é prejudicial à carreira.