Em busca de Erico

Obra de Erico Verissimo está sendo relançada com acompanhamento de especialistas, para corrigir erros de antigas edições
Verissimo desfez os mitos históricos sobre a formação do Rio Grande do Sul
01/12/2002

A obra de Erico Verissimo, embora tenha ultrapassado as fronteiras nacionais — coisa rara na literatura brasileira — hoje enfrenta no seu próprio terreno uma natural retração de leitura. Um dos motivos para essa gradativa diminuição de leitores é antigo e evidente. Trata-se da situação do livro no País. Embora os indicadores sociais tenham se alterado nos últimos anos, para melhor, a diferença entre a elite e o povo continua abissal. Por cima desse descompasso histórico, a cultura se equilibra precariamente e a circulação das edições brasileiras ainda se faz cativa da escola. Erico se tornou um clássico, no sentido do termo: sua obra se lê nas classes escolares, em geral em edições a elas destinadas, que representam fragmentos de O tempo e o vento ou histórias infanto-juvenis.

Esse não era o quadro enquanto Erico vivia. Com uma aguda consciência da necessidade de profissionalização do escritor, proveniente de sua experiência editorial, dividida com Henrique Bertaso, na Editora Globo de Porto Alegre, ele sabia que a literatura brasileira ficaria restrita sempre a bolsões de leitores mais cultivados, enquanto o sistema literário não se modernizasse, valendo-se dos novos meios tecnológicos para a difusão de sua produção. Por mais que detestasse as mazelas do capitalismo, Erico percebera cedo que o País caminhava para a economia de mercado e sua produção literária particular levou em conta esse dado. Seus livros deviam ser lidos pela maior parcela possível de leitores alfabetizados, o que não significava que devessem ser apassivadores, alienantes, mantendo quem os lesse numa posição reificada. Sua estratégia era mudar o regime do lucro de dentro, e não de fora, isolando-se ou criando obras que dessem tanto trabalho ao leitor que este as deixasse de lado.

Essa atitude podia parecer uma entrega interesseira ao gosto do mercado por sensações fortes e enredos fáceis — e assim foi vista. Muitos críticos de esquerda o chamaram de produtor de best sellers adocicados, quando não de lacaio do imperialismo norte-americano, defensor do American way of life, pronto a fazer concessões à preguiça do leitor brasileiro. Outros, de direita, o denunciavam às várias polícias políticas — do Estado Novo, da ditadura militar — como um subversivo manso, corruptor dos costumes e tradições da família brasileira. Em vida, Erico teve de se defender dessas acusações cruzadas, que vez por outra continuam despertando quando, agora, ele já não pode contradizê-las. Ser um intelectual independente traz, quase inevitavelmente, a conseqüência de ficar mal visto pelos ideólogos radicais seja de que lado for, que só enxergam o preto e o branco.

Erico, porém, não mudou de perspectiva. Para viver, precisava vender seu produto, como qualquer trabalhador. Persistiu na busca de mais leitores, sem conceder ao público uma literatura que o pacificasse, acomodando-o às dificuldades da condição brasileira. Depois de pintar com realismo os quadros da vida urbana, tendo como mote a cidade de Porto Alegre, desfez os mitos históricos sobre a formação de seu estado, mostrando o mandonismo, a selvageria, a corrupção dos próceres e a opressão dos humildes e das mulheres. Mais tarde, ampliou a denúncia ao plano internacional, visando alegoricamente Cuba e o Vietnã, e voltando por fim à sua terra como tema, transfigurada, porém, pela sátira e pelo fantástico, para servir de alerta contra o totalitarismo.

Fez o que estava a seu alcance para pôr em circulação seus livros: cuidou de montar um esquema de edição e divulgação pioneiro no Sul, quando ligado à Globo, atraiu os autores de seu tempo, abrindo-lhes as mesmas possibilidades de virem a ser tão estimados pelo público quanto ele, respondia cartas inumeráveis, deu entrevistas, atendeu leitores que chegavam em bandos a sua casa, valeu-se de agentes literários para negociar no estrangeiro seus direitos de tradução, atuou em organismos culturais internacionais, cultivou laços de amizade com outros escritores, o que o mantinha constantemente nos noticiários, sendo, pois, lembrado e, por conseguinte, lido.

Sua morte aos 70 anos interrompeu um projeto de vida literária a que talvez só os de Mário de Andrade e Monteiro Lobato pudessem ser equiparados. Desaparecia nos anos mais duros da ditadura militar, numa época em que poucas esperanças havia de liberdade de opinião e de ação, em que as notícias sobre movimentos populares de contestação do regime discricionário eram cerradamente vigiadas, assim como a livre circulação de idéias. Talvez por isso tenha resolvido enfim escrever suas memórias, para mostrar a seu público e à nação que lutar pelo profissionalismo, pelas liberdades civis, pela ética nas relações pessoais e políticas não era pouco e fora seu norte desde jovem.

Hoje, depois de 27 anos de sua ausência nas letras nacionais, sua obra permanece no mercado, buscando, por meio da sua nova Editora Globo, ligada às Organizações Globo, de Roberto Marinho, a conquista de novos públicos e a reconquista dos antigos. Para seus editores, cujo compromisso com a memória de Erico é manter seus livros sempre ao alcance de seus possíveis leitores, a tarefa de suscitar a leitura renovada não é das mais fáceis. Àquele primeiro motivo, o socioeconômico, que distancia livros e público pelo argumento financeiro, soma-se outro, derivado do fascínio daqueles que poderiam comprar livros pelas novas tecnologias da informação. Alcançar o leitor da tela eletrônica, que atualmente lê mais do que o leitor de livros convencionais, apesar de ler por fragmentos ou por download, não está entre as estratégias mais praticadas por nossa indústria editorial.

Tendo em vista esse panorama, e crendo que o texto de Erico guarda qualidades capazes de comover e alertar — os dois alicerces sobre os quais construiu todos os seus livros — sua editora firmou um pacto com o Acervo Literário de Erico Verissimo, gerido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Os especialistas do Acervo fariam a revisão dos textos de Erico, cotejando-os com originais e edições confiáveis (aquelas que o autor aprovara em vida) e, em troca, teriam a obra revista sob forma digital, a fim de acelerar um projeto que visava oferecer, em CD-ROMs, a obra completa do autor. Dessa forma, duas espécies de públicos viriam a ser atendidos: os do livro, com edições novas, fidedignas, e os do computador, com textos seguros.

Além disso, a editora contaria com a consultoria desses especialistas em acervos para sugerir nomes importantes nas letras brasileiras que relessem a obra de Erico por viéses inovadores e a interpretassem para o século 21. Dessa forma, a produção de Erico voltaria ao mercado de corpo — senão de alma — novo. A idéia era retirar do olhar do público leitor o ranço das edições didáticas — sem menosprezar o valor dessas para a formação de leitores — dando-lhe a contemplar volumes redesenhados e textos com eventuais surpresas.

Foram lançados até agora, nesse novo formato, apenas dois títulos: Incidente em Antares e Caminhos cruzados, embora O continente, em seus dois volumes, já tenha o texto fixado. O trabalho de reedição revista continuará até que, ao centenário do autor, em 2005, a obra completa esteja nas mãos do público. O que não se avalia facilmente é o quanto fixar textos como os de Erico demanda tempo, concentração e uma razoável bagagem cultural, qualidades que hoje em dia só no meio universitário são encontráveis.

Para a fixação dos textos, termo empregado para diferenciar esse empreendimento de uma edição crítica, com notas e variantes, a equipe do Acervo Literário de Erico Verissimo, composta de doutorandas e da coordenadora do Acervo, executa um trabalho semelhante àquele que consagrou os copistas medievais. Cercados de dicionários, tanto de língua portuguesa quanto de espanhol, francês, alemão, italiano, latim e inglês, e de gramáticas normativas e guias ortográficos, os revisores, em duplas, lêem um para o outro o texto a ser revisto e a edição denominada princeps. Verificam, com todo o vagar necessário, as grafias das palavras não coincidentes com o texto princeps, todavia desconfiando de que também esse possa conter erros de digitação ou de tipografia. Quando há discrepância entre o texto atual e o texto-base, se o Acervo possui o original da obra, vão a ele para dirimir a dúvida.

Os problemas com que se defrontam, entretanto, não são apenas na ortografia ou troca de letras. Há má virgulação, falta de pontos finais, ou de travessões para indicar diálogos, aberturas de parágrafo ausentes e interpretações errôneas do primeiro tipógrafo quanto a palavras do original ou a sintaxe de frases (as edições princeps de Erico foram todas provenientes de linotipos, salvo Incidente em Antares e Solo de Clarineta, digitados num sistema ainda experimental de fotocomposição). Esses erros de edição podem parecer triviais, coisa de obcecados pela língua portuguesa, mas aviltam os volumes e deformam o sentido das obras.

Note-se que os revisores, nessa primeira fase do trabalho, prendem-se principalmente à edição princeps. Tudo o que notam de divergência ou que lhes chama a atenção por violar normas ortográficas ou gramaticais, por truncar o sentido da paragrafação ou por apresentar divergência da norma culta da língua portuguesa falada no Brasil é cuidadosamente registrado nas provas fornecidas pela editora, para consulta aos originais ou discussão posterior com a coordenadora, especialmente quanto a palavras desconhecidas ou raras ou a alusões a fatos ou pessoas não encontráveis nas fontes de referência usuais.

A versão final a ser remetida à editora para emendas e impressão é responsabilidade exclusiva da coordenação do Acervo. A coordenadora lê todas as provas, com as emendas e dúvidas levantadas e, respeitando o estilo do autor, decide o que deve ser alterado e o que deve permanecer como está. Erico empregava diversos modos de reportar o discurso das personagens, ora usando travessões para os diálogos, ora os usando para o pensamento, ora substituindo-os por aspas, como nas edições norte-americanas que lia desde jovem, ora suprimindo quaisquer sinalizações de que aquela fala em particular não parte do narrador. Também deixava sem vírgulas muitas orações inseridas ou orações subordinadas, que segundo os preceitos da gramática deveriam conter pausas graficamente marcadas. A questão era basicamente de ritmo do discurso, e identificá-lo exige ouvidos experimentados pela própria leitura repetida de suas obras. Por outro lado, erros de palavras ou de sintaxe com freqüência se devem, nas edições princeps, ao fato de que o linotipista não entendia emendas manuscritas do autor ou inserções de termos, enganando-se de palavra ou de lugar. Erico, de sua parte, não dava muita atenção aos textos depois de impressos e no seu Acervo só há uma edição revista com sua letra de Israel em abril e provas de alguns livros mais recentes.

A despreocupação do autor com as edições publicadas durante sua vida tornam a tarefa de fixar seus textos duplamente difícil, pois o editor, não podendo confiar na edição princeps — eventualmente nem no original, pois sabe-se que Erico corrigia diversas vezes as provas de seus livros, depurando uma que outra passagem até a última prova — precisa por vezes colocar-se no lugar do escritor para julgar a (im)propriedade de alguma alteração. Tomadas, entretanto, todas as decisões quanto à forma final do texto a ser impresso, as provas são devolvidas à editora, que se encarrega de emendar os disquetes e produzir o volume com um texto fiel. Depois, retorna os disquetes emendados, para serem agregados à edição digital da obra, em processo de produção.

Alguém poderá perguntar-se se todo esse esforço tem razão de ser, num país em que muito poucos podem reconhecê-lo. Os editores e os especialistas do Acervo Literário de Erico Verissimo crêem que sim. Os erros já percebidos e corrigidos por vezes mudavam o sentido da obra, desfigurando-a. A edição em curso será a primeira, em mais de trinta anos, a submeter a parte física da escrita de Verissimo a um escrutínio tão exigente. Os novos leitores ou os leitores antigos do autor terão, por fim, as obras de Verissimo muito próximas do que ele desejaria que elas dissessem a seu público. A precisão absoluta evidentemente é uma prerrogativa divina, mas será essa edição iniciada em 2002 a que expressará com maior fidelidade a criatividade de Erico Verissimo. Proporcionará, portanto, novas interpretações e se aliará à proposta de atualizar a leitura de Erico, atraindo mais leitores, de livros ou de textos digitais.

Maria da Glória Bordini

É doutora em Letras e professora aposentada colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. É uma das editoras da revista binacional Brasil/Brazil. Além de especialista em Poética e em Erico Verissimo, também é tradutora esporadicamente.

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