Em busca das estrelas

Quanto mais luz perpassa a poesia do espanhol Jorge Guillén, mais rigor se observa nas imagens criadas
Jorge Guillén, oeta, crítico literário e cronista espanhol, membro da Geração de 27
01/06/2003

Filles des nombres d’or
Fortes des lois du ciel,
Sur nous tombe et s’endort
Un dieu couleur de miel.
Valéry

Não são tão especiais as razões que tornam difíceis a justa apreciação de um poeta moderno e do valor de sua poesia. Contudo, não se pode ladear o problema de que a poesia moderna, sendo geralmente complexa, exige do crítico do poema um equipamento analítico igualmente complexo e sofisticado. Em quase todo grande poeta moderno está presente uma filosofia implícita — ainda que sua visibilidade não se encontre ao alcance de todos — uma preocupação cósmica suficientemente ampla para afastar o leitor de uma geometria do “próximo”, a que somos forçosamente levados pela visão do Universo de Euclides.

Os poetas espanhóis contemporâneos — Jorge Guillén, Vicente Aleixandre, Juan Ramón Jimenez, Lorca — pertencem ao número desses inventores singulares do século 20. Sua obscuridade expressiva se encontra paradoxalmente inundada por uma luz misteriosa cuja aura se estende além dos tetos racionais do espírito. Ao falar sobre a poesia de Jorge Guillén, Hugo Friedrich referiu-se ao fato de haver sido ele apontado como o mais eleático dos poetas. Com essa denominação, o próprio Friedrich admite que se procura indicar a relação de Guillén com a existência transcendente. Ora, a valorização atual da imanência parece desconhecer que o homem se encontra na infância de sua existência em nosso planeta. O universo poético de Guillén — como o universo da física — é um universo de fogo, de chamas, de cintilações, de energia radiante. O mesmo se observa, também, em muitos poemas de Lorca. Seu espaço é o da experiência não enraizada em clichês. O que vemos na poesia desses espanhóis é aquele horizonte interior ao objeto, já sumariamente observado pelos teóricos e críticos literários filiados à fenomenologia em sua versão husserliana. Horizonte que não impede a contemplação de outro horizonte exterior ao objeto citado.

Esses horizontes não estão dissociados porque horizonte exterior é também horizonte interior “na medida em que designa não apenas o oculto que se acrescenta, mas também a profundeza que se desdobra à medida que o universo é um fundo exigido pelo objeto para que seu sentido nele ressoe em ecos cada vez mais distanciados” (M. Düfrenne). Daí afirmar o próprio Düfrenne “ser necessário um sujeito para abrir o caminho ao sentido”. Esse ponto de vista é compartilhado com Roman Ingarden, o que não constitui surpresa, pois ambos — Düfrenne e Ingarden — estão diretamente unidos a muitos aspectos da Fenomenologia husserliana. Ambos foram discípulos de Husserl e ambos se dedicaram à aplicação do método fenomenológico aos estudos da literatura. Na melhor poesia brasileira moderna observa-se, infelizmente, que lhe falta uma dimensão filosófica, uma visão que lembre aos nossos críticos e poetas que a poesia mudou muito desde a última metade do século 19; que o espaço euclidiano é uma geometria do próximo, plano tão próximo aos nossos olhos quanto a constelação das Plêiades. Tudo isso foi ultrapassado pelo universo geodésico de Einstein. O tempo também mudou — ou melhor alongou-se em novos conceitos —há um tempo novo na poesia, um tempo não heraclitiano, ainda que seja eternamente válida a visão grega do tempo. Há mais de um século os físicos nos ensinaram a pesar a luz… O que desejo mostrar é que o chamado “tempo próprio” ou quarta coordenada do universo não podia ingressar na poesia antes da completa descrição da Relatividade Geral de Einstein. Nem sequer me refiro a relatividade restrita (1905), de tantas conseqüências como geradora de imagens e conceitos incorporados à poesia contemporânea. Agora, alguns poetas sabem que há uma dimensão relativística do tempo. Só a partir de 1927, fomos informados — pelo menos todos os poetas que se preocupam com os problemas da poesia na Modernidade — que no novo universo o presente é indeterminado e incerto. Isso foi demonstrado pela mecânica ondulatória de Werner Heisenberg. Se essa “incerteza” já foi suprimida — como dizem alguns —, suas conseqüências não irão modificar a interpretação da poesia escrita no período de sua vigência.

Na poesia de Guillén, quanto mais a luz perpassa sobre suas superfícies no trânsito para as sombras, mais rigor se observa nas imagens criadas e criadoras de formas, enquanto os conteúdos se dissolvem já que neles o pensamento centrado no homem já não constitui a paisagem suprema. No poema Perfeição (Perfección), o estilo, as imagens, as formas criativas geradas pela própria língua estão banhadas na luz mais completa, na mais bela visão cósmica a que podem aspirar olhos humanos:

Queda curvo el firmamento
Compacto azul, sobre el dia
Es el redondeamiento
Del esplendor; mediodia.
Todo es cúpula. Reposa,
Central sin querer, lá rosa,
A un sol en cenit sujeta
y tanto se da el presente
Que el pie caminante siente
La integridad del planeta.

Não se observa nesse “horizonte” nenhuma névoa, nenhuma nuvem, nada que turve o espaço: o arredondado azul dá contorno a uma vastíssima imagem de claridade. Tal luz esplende por igual, ao meio-dia, a partir do sol em todas as direções do espaço. Curva e esférica, essa luz é o símbolo da perfeição. Por ser cósmica, é luz em constante movimento. O planeta, como se repousasse sob a cúpula azul, compõe o horizonte que justamente com a abóbada celeste se apresenta azulado pela camada das substâncias que protegem a vida na Terra. No centro de tudo se encontra a palavra poética, de que é símbolo a “rosa”. A “rosa” se sujeita ao seu objeto — o “horizonte exterior” — e o poeta ao pisar o solo sente quanto nosso planeta é íntegro. Mas se há um “horizonte exterior”, alumiado pelo Sol, há também um “horizonte interior”, obscuro, oculto, iluminado pela estrela espiritual, a mesma que ilumina os nossos sonhos. A poemas escritos sob o foco dessa luz não se pede compreensão. Tampouco o seu autor desejaria ser compreendido. Isso é o que afirmam poetas como Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Pound, Montale, Ungaretti, o rigor de Joaquim Cardozo, em Trivium, o do grande mago G. Benn, a última voz verdadeiramente moderna da poesia alemã. Para tais poetas, como artistas da palavra, ser compreendido é algo fora de seus interesses. O que se exige, agora é a “continuação do poema… regido pelas leis de seu ‘horizonte interno’”. Cada leitor que dê continuidade a “rosa”, da forma que melhor atenda ao seu próprio conhecimento da poesia. Pois o poema na era técnica não é confissão romântica, ainda que tenha sido para muitos autores famosos, para os quais a emoção se encontra sempre em absentia e cuja fama deriva justamente da escassez teórica e crítica: atividade reflexiva enfraquecida, pelo desinteresse, pela ausência de análise, por submissão do crítico, mesmo qualificado, aos interesses da mídia avassaladora, que na opinião de Allen Tate, já na década de 50, estava a destruir todos os idiomas cultos do mundo. A poesia moderna não rejeita, inteiramente, a noção de gosto, antes de tudo, quer ser julgada pelo conhecimento.

Pedro Salinas afirmou certa vez que o malentendu é uma forma superior de interpretação poética. Quanto aos conceitos de horizonte exterior e horizonte interior, muitas vezes o que ocorre é uma inversão. Eu próprio, ao escrever poemas, não tenho muito interesse pelo horizonte exterior que me cerca, em todos os 360 graus do círculo em que os limites de terra e céu parecem tocar-se. Quando escrevo, esse horizonte já se encontra internalizado em minha consciência O que me leva a escrever é o impulso de revelar esse horizonte exterior que internalizei em meu espírito, em determinado momento da coordenada temporal que percorro como ser pensante, expressando-o, agora, através de visões subjetivas: horizonte interior — vozes internas e líricas — que expressa o oculto em minha linguagem ao atuar como forma superior de ação. O universo cheio de claridade, revelado no breve poema de Jorge Guillén, seria o horizonte interior e não o exterior, como estaria a demonstrar “Perfección”. As palavras que construíram o poema se referem ao mundo da realidade empírica, a realidade que pertence não só a experiência do poeta, mas também à experiência do leitor: “curvo”, “firmamento”, “azul”, “compacto”, “dia”, “cúpula”, “rosa”, “central”, “sol”, “zenite”, “pé”, “caminhante”, “planeta”. Eis o significado múltiplo em pleno exercício de sua visão subjetivante e lírica, que desconstrói, controla e aniquila o baixo teto racional do espírito, ao exercitar as forças fenomenológicas em sua função estética. Tais palavras seriam o “horizonte interior” porque as forças poéticas anônimas não foram reveladas ao poeta de forma objetiva. O mundo objetivo já estava ali: uma substância do passado. Esse sol, zênite, caminhante, planeta, são vozes da subjetividade. A verdadeira voz da poesia. O próprio Guillén nada sabia sobre essas forças antes de escrever o poema, porque elas ingressaram nele sem participação de sua consciência: “duermen ineditas em su lenguaje e incluso en su silencio”.

Em seu poema “Cierro los ojos”, de Cântico, Jorge Guillén escreve estes versos bastante explicativos de como lhe chegam à mente as visões de suas imagens: “Cierro los ojos, y el negror/ me adverte/ Que no es negror y alumbra unos destellos/ Para darme a entender que si son ellos/ El fondo em algazarra de la suerte”. Para ver, Guillén tem de voltar-se para o mundo onde todas as experiências da vida foram internalizadas. Cada coisa tem o seu nome e aguarda a voz do poeta para atender ao seu chamado. O poeta fecha os olhos e vê que a treva não é treva mas uma luz que alumbra. Que deslumbra. O contorno do poema surge perfeito e para dar-lhe forma a palavra chamada, irrompendo através de um trânsito onde circulam milhões de vocábulos, chega à língua do poeta, se converte em voz e obedece às leis do rigoroso ritmo. Essa parte do trabalho do artista, do poeta, é muito difícil. Não é de admirar que Kandinsky dissesse que só através de muito cansaço, esforços e tentativas conseguia derrubar “os muros que se erguem diante da arte”. É preciso não confundir a falta de talento verbal — a “desidratação” das múmias e dos portadores do cólera — com o trabalho do intelecto que todo grande poeta dele não pode prescindir. A experiência de Jorge Guillén é semelhante à experiência de qualquer outro poeta que utilize um processo semelhante! E o processo é esse: não conheço outro de maior eficácia. Nessa visão do poeta espanhol, estão presentes experimentos já observados em Mallarmé, Lautréamont, Rimbaud, em Valéry. Assim, Guillén fecha os olhos e vê esses relâmpagos que hostilizam, como num desafio, a morte e seu cortejo de símbolos, alegorias e imagens. Só no negror o relâmpago pode alcançar a rosa. Falemos da rosa neste fim de milênio e início de outro! Os artistas sentem profundamente porque são homens diferentes dos demais homens. São diferentes porque sentem vibrar em todas as células de seu corpo a magia das palavras mobilizadas para dar forma à imagem presente no espírito. Escreve Jorge Guillén:

Incógnita nocturna ya tan fuerte
Que consigue ante me romper sus sellos
Y sacar del abismo los más bellos
Resplendores hostiles a la muerte.
Cierro los ojos. Y persiste un mundo
Grande que me deslumbra así, vacio
De su profundidad tumultuosa.
Me certidumbre en la tiniebla fundo
Tenebroso relampago es más mio,
En lo negror se yergue hasta una rosa.

Acredito que o crítico-filóosofo Hugo Friedrich tinha razão quando disse que o desejo de obscuridade poética perseguido por Guillén — que na realidade faz a poesia cintilar como uma estrela — “deriva do querer proteger-se do mundo exterior. O interior se abre, e, liberado do tumulto e daquilo que na vida é mortal, troca em luz a obscuridade — ausência do real – se converte em nascimento da rosa que somente floresce na luz da treva”. Essa teorização, apontada como de Mallarmé, já estava presente em Novalis. Mas é, efetivamente, Mallarmé, quem leva tal idéia às últimas conseqüências. E, com Mallarmé, os seus herdeiros: os herdeiros do simbolismo. Valéry, por exemplo, a quem Jorge Guillén considera um modelo de vontade construtiva que não conseguiu afastar — mesmo quando desejava fazê-lo — uma certa brisa metafísica de suas criações. Valéry não é puro intelecto. É. entre os poetas, o que proclama com a maior energia o valor da emoção. É que o próprio Valéry jamais teve forças para distanciar de seu âmbito teórico o ensinamento de Mallarmé: “Só na irrealidade que obriga a poesia a ser obscura, difícil, a obra poética alcança a sua perfeição”. Esse é um dos preceitos de Mallarmé que, ao passar pela inflexão da voz intelectual de Paul Valéry, contribuiu para fazer de Jorge Guillén um dos mais completos representantes da “poesie pure” em língua espanhola. Nunca digam que Jorge Guillén não cultivou a poesia pura. Cultivar tal poesia foi só o que ele fez. Não é preciso escrever poesia pura. Mas, se alguém a escreve, isso não é um pecado contra a arte. À semelhança de outro grande espanhol — Calderón de la Barca — Jorge Guillén vê o mundo como uma grande teatro onde cada homem é um ator e cada ator tem que desempenhar o seu papel. Para ele — lembra-nos Joaquim Casalduero — o mundo da natureza é extremamente bem-feito. É um mundo deslumbrante. Mas há coisas tenebrosas no mundo dos homens. Exemplo: o assassínio de Federico Garcia Lorca. Todavia, Lorca é apenas um exemplo. Que alfanje ou seta teria atravessado o corpo de Miguel Hernandez ou do francês Max Jacob? indagaria, muitos séculos antes Baltasar Gracián. Por isso, Guillén, que pouco se ocupou em sua poesia do social e do moral, escreveu: “Este mundo do homem está malfeito”. O mundo é belo e bem-feito, mas como há homens que só trabalham no sentido de tornar “malfeito” e feio este mundo, então é necessário que o artista procure com sua arte acrescentar beleza às coisas neutras — em relação à beleza — existentes no “mundo do homem”: o mundo da cultura. Sua poesia é um exemplo dessa luta quixotesca visando a tornar o mundo mais belo através da arte. No poema “Perfección del circulo”, Jorge Guillén dá um exemplo daquilo a que defino como um “poema perfeito”. Onde estaria a perfeição? Como reconhecê-la? A resposta está na análise do poema para aqueles que não o sintam em uma primeira leitura. Tal análise exigirá esforço e um pouco de conhecimento de poética. Não me proponho analisá-lo agora em termos inadequados. Mas para compreendê-lo não é necessário que o leitor se transforme em crítico de poesia. Basta concentrar a atenção no rigoroso esquema métrico, na carga semântica, no sentido das expressões “amables muros”, “ luz divina”, refulge y se cela”, “invisible dentro” e nas sutilezas formais das assonâncias.

Con misterio acaban
En filos de cima
Sujeta a una linea
Fiel a la mirada.
Los claros, amables
Muros de um misterio,
Invisible dentro
Del bloque del aire.
Su luz es divina:
Misterio sin sombra.
La sombra desdobla
Viles mascarillas.
Misterio perfecto,
Perfección del circulo,
Circulo del circo
Secreto del cielo.
Misteriosamente
Refulge y se cela.
— Quién? Dios? El poema?
— Misteriosamente.

As imagens deste poema são produto de um intercâmbio de processos de engenharia da língua, envolvendo questões relativas à rotação dos símbolos dentro do sistema onde a linguagem atua e o poema se organiza. As imagens fragmentárias, como devem ser as metáforas da modernidade, indagam, continuamente, por que a cada dia buscam os poetas o mais puro reflexo das constelações, seu desenho misterioso e a luz das mais altas estrelas. São poetas que parecem haver lido mais do que teoria poética. Dominam, com magistério de arte, a língua de Charles Sanders Peirce, William James, Dewey, Unamuno e Ortega, enfim, criadores da filosofia da ação, os grandes pragmatistas e seus antecessores no século 17 — Hobbes, Bentham, Locke, Leibinitz, para melhor dominar a língua dos poetas metafísicos Donne, Marwell, Herbert, e os físicos e astrofísicos adoradores de constelações: Galileu, Kleper, Newton. Todos eles, aprenderam com Dante e Shakespeare essa contínua busca da altura. São poetas à semelhança de Jorge Guillén, poetas que buscam as estrelas e nos ensinam ser necessário substituir o homo sapiens pelo homo aestheticus.

César Leal

É poeta, crítico de poesia e professor emérito de Teoria da Poesia da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de Alturas, vida e tempo na Terra, entre outros.

Rascunho