“Enquanto houver tártaros no mundo, eles vão rezar a Alá por Tolstói.” O personagem Ahmet Usmánovitch Karímov, do épico de guerra Vida e destino, de Vassili Grossman, defende Liev Nikoláievitch como sendo “mais russo que o lituano Dostoiévski” ao citar a força de suas obras mais marcantes sobre o Cáucaso: o conto O prisioneiro do Cáucaso e as novelas Os cossacos e Khadji-Murát. É sobre este último que falaremos. A identidade russa em Tolstói, retratada nessa região até hoje conflituosa, perde o caráter nacionalista de Guerra e paz para dar lugar a uma acusação rebelde contra o imperialismo do czar Nicolau I, com séquito de nobres militares retratados como afetados superficiais, emocionalmente distantes das dinâmicas bélicas e próximos da egolatria aristocrática de sempre.
Khadji-Murát pode não ser o romance mais famoso de Tolstói, nem mesmo o mais importante segundo alguns teóricos, mas talvez seja o livro em que o autor condensou não apenas suas maiores qualidades como romancista, como também as convicções que mais persistiram em sua vida. Escrito entre 1894 e 1905 — cinco anos antes de sua morte, portanto — a obra tem em si a descrição do ambiente da guerra que viria a consagrá-lo em Guerra e paz (1865), a narrativa psicológica de A morte de Ivan Ílitch (1886), a opressão de classes de Patrão e empregado (1894), e o que o tradutor e ensaísta Boris Schnaidermann descreve em seu texto Tolstói: antiarte e rebeldia, como “uma exaltação da vida humana, em luta contra a violência dos mais fortes, a opressão, contra a ignomínia que representa, para Tolstói, qualquer poder de um homem sobre o outro”, também presente em O prisioneiro do Cáucaso (1872). Por essas razões, pode ser o mais representativo de sua carreira, um romance unificador de sua vasta e complexa bibliografia.
Khadji-Murát, uma espécie de lampião do Cáucaso, já era uma lenda quando o escritor foi transferido para o exército de ocupação da região, em 1851. Tolstói teve pouco trabalho como militar nessa época, tendo atuado verdadeiramente em batalha apenas posteriormente, em Sebástopol, na disputada península ucraniana da Crimeia. Por outro lado, teve bastante tempo para se dedicar a seus escritos e a seus diários. Como boa parte dos oficiais presentes na Geórgia naquela época, deixou sua imaginação ser levada por essa figura complexa e de trajetória quase cinematográfica de ascensão, traição, exílio e desvio.
Parte das forças separatistas da Chechênia, Murát é apresentado ao leitor como fugitivo das tropas de Chamil, líder revolucionário muçulmano que assassinou os irmãos de leite do protagonista e que mantém sua família como refém. A saga do herói tolstoiano é, nesse ponto, das mais clichês: deseja vingar a morte dos Cãs que o criaram, bem como resgatar sua família do tirano com quem havia se aliado no khazavát, a guerra santa travada desde o começo do século 19 naquele território. Decide então se bandear para o lado dos russos, a fim de obter sua retaliação. Estes se mostram desconfiados com a presença lendária do homem que dizem ser pouco confiável. O encontro de Khadji-Murát com a família do príncipe Vorontzóv, filho da nobreza russa em Tbilisi ganha contornos conradianos no choque de cultura entre os dois. Tolstói dá aí o primeiro passo em direção a rebeldia literária que faria sua fama (e também a ruína de seus seguidores): o descompasso entre a vida nobre e o heroísmo em carne e osso é algo que o poder russo nem sempre está disposto a admitir.
Identificação
Em que pese a constante guerra na região do Cáucaso e suas mais distintas etnias e territórios — entre outros, a Chechênia, o Daguestão, a Inguchétia e a Geórgia, esta última com duas zonas litigantes — o calor das adversidades entre russos e caucasianos poderia sugerir que o mecanismo da empatia não estaria à mão de Tolstói para ganhar o leitor conterrâneo em Khadji-Murát. Não é bem assim. Na verdade, entre as muitas qualidades como prosador, Tolstói consegue, em sua vasta obra, a difícil façanha de fazer o leitor russo criar uma identificação com o diferente, mesmo que este antagonize diretamente com tudo aquilo que se possa acreditar russo. Isso se dá graças a um transitivismo que, no romance, vai sendo construído desde a primeira página. O livro se inicia com o narrador descrevendo uma imagem obviamente alegórica: uma flor que, após ser atropelada por uma roda de carroça, se levanta resiliente em toda sua beleza. Considerando que uma flor jamais poderia simbolizar algo ruim, o bem e o mal resistem em oposição. O mal não é resiliente: é persistente, canceroso. Já o bem, sim, resiste pequeno e belo diante do que é brutal. Ao associar Khadji-Murát a essa flor, Tolstói está escolhendo lados do espectro para posicionar seus personagens antes mesmo que a história comece — caso não tenha ficado suficientemente claro ao leitor, o narrador trata de ligar a alegoria ao personagem principal ao final do texto mais uma vez.
Mais importante do que isso, Tolstói se utiliza do mesmíssimo método de singularização que viria a usar no conto Kholstomér, de 1886, e que serviria como base para o estudo do formalista Victor Chklóvski A arte como procedimento, de 1917. Diz Chklóvski que o procedimento “consiste em não chamar o objeto pelo nome, mas descrevê-lo como se o visse pela primeira vez, e tratar cada incidente como se acontecesse pela primeira vez; ademais, ele se vale na descrição do objeto não dos nomes geralmente dados a suas partes, mas de outros nomes tomados da descrição das partes correspondentes em outros objetos”. Observe como o escritor lança mão do artifício descrito por Chklóvski ao descrever a morte do cavalo-personagem, negando à cena palavras como “sangue”, “faca”, “agonizar” e mesmo “morrer”:
Com efeito, sentiu que haviam feito algo com sua garganta. Sentiu dor, estremeceu, bateu com a pata, mas se conteve e esperou o que viria. Depois aconteceu que uma coisa líquida jorrou num grande jato pelo seu pescoço e pelo seu peito. Suspirou a plenos pulmões. Sentiu-se muito mais leve. Aliviou-se de todo o peso de sua vida. Fechou os olhos e começou a inclinar a cabeça — ninguém o segurou.
A morte de Khadji-Murát, por sua vez, mais brutal por ser consequência da guerra, não é vista de longe ou de perto, mas, assim como a de Kholstomér, de dentro. Suavizando e reduzindo o assassinato à incompreensão do processo, Tolstói descaradamente vitimiza o inimigo dos russos e reforça seu desprezo pela opressão sobre a vida humana:
Quando Khadji-Agá chegou antes de todos ao lugar em que caíra e lhe deu um golpe na cabeça, com o seu grande punhal, Khadji-Murát teve a impressão de que lhe batiam com um martelo, e não pôde compreender quem o fazia e para quê. Isso foi o derradeiro sinal de consciência da sua ligação com o corpo. Depois, não sentiu mais nada, e os seus inimigos pisaram e retalharam aquilo que nada mais tinha em comum com ele.
Mestre na arte de escrever personagens complexos — familiares porque próximos mas estranhos porque diferentes — Tolstói faz de Khadji-Murát não só o resultado de um sistema de opressão e domínio russo, mas também um símbolo da beleza exterior, daquilo que não pode ser domado ou completamente compreendido — devido em grande parte à própria natureza intolerante russa. Os filmes de Serguei Paradjanov, a poesia de Shota Rustaveli e de Sayat-Nova e o primitivismo dos quadros de Niko Pirosmani diante de um ocidentalizado Ilya Repin podem remeter um russo comum atualmente a um mundo exótico e misterioso que, não obstante, está logo ali. Khadji-Murát foi, em Tolstói, a personificação desse mundo.