Elisama encontra Chimamanda

Em "Ensaios de despedida", de Elisama Santos, a felicidade está nos intervalos das tristezas
Elisama Santos, autora de “Ensaios de despedida”
01/06/2025

Em trecho de Para educar crianças feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie, “se pararmos de condicionar as mulheres a verem o casamento dessa forma, não precisaremos discutir tanto se uma esposa precisa cozinhar para ganhar esse prêmio” — e essa compensação, muitas vezes, vem em uma vida embrulhada por vontades individuais sufocadas. O remetente, então, é um suposto bem maior, isto é, o bem-estar de uma família terrivelmente feliz e de hábitos inofensivos. De manhã, a mulher acorda antes, prepara o café e o cheiro percorre os cômodos da casa avisando que mais um dia começou. Pão na torradeira. Suco pronto. Xícaras e talheres bem posicionados na mesa. Copos brilhantes e transparentes. Possibilidades perfeitas para uma publicidade vistosa de comercial de manteiga. Já o marido, sai do banho, escova os dentes, urina do vaso sanitário e respinga gotas no piso frio. Ele não fecha a embalagem do creme dental com a tampinha, demarcando suavemente a superfície do lavabo de verde e branco. Deixa a toalha molhada onde convém. Abre o armário do quarto, jalecos limpos e bem passados, cheirosos de amaciante. Engomados. Colarinho perfeitamente branco. É médico, mas não sabe onde ficam as vassouras, os panos de prato e a caixa de sabão em pó. Seus conhecimentos residem em outro lugar. Mas onde? A filha dos dois desce as escadas. Parece ter febre. A mãe sabe de cabeça quais são os remédios de que a filha precisa nessas ocasiões. Para a dor de garganta, a dor de ouvido. A angústia faz parte dela. Ela sabe. Tem intimidade com a consternação, com a dor de não ser quem se é, do querer e não poder. Advogada, ela cuida de tudo. Vai para o escritório somente às sextas. Rasga-se e se remenda diariamente. Continuamente é refém dos ponteiros do relógio. Do minuto em que o marido chega, cansado, procurando o jantar. Mais um dia comum em família. Ele entra pela porta da mesma forma que foi embora mais cedo, dizendo para ela não se preocupar, que a filha dos dois não tem nada grave. Beija a testa da filha, e, depois, um selinho na esposa. Vai da mesma maneira que volta. Assim, mais um presente entregue com sucesso. Remetido pelo casamento, que veio cedo, quando ela ainda era muito jovem — camadas simples, nocivas e domésticas na vida da personagem central, Cristina.

Bye bye, tristeza
Ensaios de despedida, de Elisama Santos, abre com epígrafe de autoria de Maya Angelou, uma das intelectuais mais influentes da cultura afro-americana do século 20: “Você só é livre quando percebe que não pertence a lugar nenhum — você pertence a todos os lugares”, e pertencer é ser parte de determinada propriedade. É contrário à liberdade.

O primeiro texto do livro é uma carta escrita em abril de 2002, endereçada à filha de Cristina, Maria Izabel. A decisão de ir embora é tomada pela protagonista, que está afogada no medo julgativo de si e dos outros. A sociedade perdoa uma mãe que abandona o marido e a filha pequena? As suas frustrações são, de fato, importantes? É possível a vida ser mais felicidade do que tristeza? Tais perguntas podem esmiuçar a condição feminina, de filha, mãe e esposa, entre a liberdade e a prisão. O encarceramento existe também em seus sentimentos, nas frases não ditas, nas desesperanças emergidas. O cativeiro é extremamente necessário para que outras liberdades existam.

Em certas vezes é a subsistência dos outros, da família, onde a trilha sonora está nos ruídos causados pelos movimentos repetitivos da faca ao lambuzar com manteiga as fatias de pão. Chaves trancando e abrindo portas. A caixa do supermercado passando os produtos de limpeza, legumes e os demais itens que foram anotados por Cristina com cuidado. E só ela sabe o que falta dentro de si e da geladeira. Provedora das vontades no dia a dia e conhecedora dos ingredientes necessários para o preparo de uma família admirável pela comunidade. Um marido polido e gentil. A filha estudiosa e dedicada. Como pode Cristina ser egoísta assim e querer desistir? Possíveis questionamentos dos vizinhos. No entanto, o valor total da compra logo é anunciado pela atendente do caixa: o total é a sua própria liberdade. É notório, então, a súplica de socorro da protagonista que conhecemos de perto seus desejos agonizados. Autonomias aprisionadas e combatidas do jeito que dá, como no trecho sobre o nome de batismo da filha:

Quando engravidei, decidiram por mim que esse seria o seu nome e eu aceitei, como sempre. Quando seu pai foi ao cartório, avisei que queria que fosse escrito com Z. Inicialmente ele pensou ser erro de escrita, pegou o livro A casa dos espíritos e me mostrou o S no nome de Isabel Allende. É claro que eu sabia o nome de Isabel Allende. É claro que eu sabia que o nome dela era escrito com S. Tive vontade de xingá-lo por tentar corrigir a grafia que eu tinha escolhido, mas eu não falo palavrões, você sabe. Então simplesmente bati o pé e insisti que seria com Z.

Os sonhos dela, quando resistem, estão na sutileza e fluidez existentes na narrativa da autora, Elisama Santos, de tal maneira que é possível sentar ao lado de Cristina e ouvir Sandra de Sá no rádio, impossível não ter vontade de cantar o clássico “Eu não vim aqui pra sofrer. Vou sentir saudade pra quê? Quero ser feliz”. Podemos, então, visualizar a janela do carro aberta e as suas mãos dançando com o vento. Ou ainda perceber as suas lágrimas durante o casamento da filha, ávida para que ela tenha uma vida muito diferente da sua. Torcemos, involuntariamente, para que Cristina fique bem, que se reconstrua, que almoce muitas vezes no restaurante árabe que ama. E discordamos. Dicotomias e sensações que só são possíveis sentir por personagens profundos e rigorosamente construídos, daqueles que imaginamos existir de verdade caminhando pelas calçadas da cidade, e, quem sabe, esbarramos com ela na fila do pão e palpitamos opiniões. Destas que nós mesmos não temos certeza. Afinal, querer dar tchau, bye bye para a tristeza, pode ser comum a todos. Entretanto, as forças sociais, de cor e de gênero, são implacáveis.

Uma vida de cartas
A rotina corrói sonhos e enrugam maracujás, resultando, portanto, em outros tipos de adeuses. E pode ainda ser esclarecido pela semântica moderna de Angélica Freitas, no trecho de O útero é do tamanho de um punho: “a mulher basicamente é para ser um conjunto habitacional”. Assim, as mulheres deveriam ser iguais, as diferenças estariam apenas nas pinturas do lado de fora. Isto é, deveriam ser usuais, servindo de dormitório e local de saciamento de inúmeras fomes, inclusive as sexuais. Sem fastio. Nem todo homem, mas sempre um homem, talvez acharia difícil interpretar tais estandartes, que são propostas para desmistificar o machismo e a supressão de mulheres no Brasil moderno. Estas que, ainda hoje, estão adestradas, como lucidamente transcorreu Antônio Bispo dos Santos, em A terra dá, a terra quer: “E todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação”. A vida de Cristina é um trabalho não remunerado, cargo de esposa profissional, causadora de efeitos devastadores, em cultivo desde a sua fase infantil.

Criada por uma mãe reprodutora de valores patriarcais e constantemente vítima de violência doméstica, ela tenta equilibrar traumas e as possibilidades de amar. Primeiro, amar ela mesma, depois, os outros. Mas é impedida por uma série de ações e forças, internas e externas, morais e psicológicas. O fio condutor do romance de Elisama Santos é puxado por uma mulher que não sabe a força que tem, proibida do sentir, de se reconhecer e conhecer, de escolher, gritar e de sentir inveja. É etiquetada pelos valores do matrimônio e catalogada como esposa. A ela são negadas muitas coisas, afetos, orgasmos e a educação de sua própria filha. Tudo isso, envolto por violentas relações consanguíneas e culturais.

Ensaios de despedida é outro grande acerto de Elisama Santos. Elaborado em formato de cartas destinadas à filha da protagonista, que é um lugar só seu. Para ser tudo o que quiser, isto é, a liberdade e as palavras para Elisama são mesmo indissociáveis. É uma alegoria educativa sobre as engrenagens dos dias atuais e o funcionamento de uma casa que, vista de fora, tudo parece funcionar muito bem e pode até parecer que possui a grama mais verde do bairro. Será mesmo?

Ensaios de despedida
Elisama Santos
Record
240 págs.
Elisama Santos
Nasceu em 1985, na Bahia. É escritora, psicanalista e apresentadora de TV. Autora dos best-sellers Educação não violenta, Por que gritamos, Conversas corajosas e Vamos conversar, além do romance Mesmo rio. Escreve e palestra sobre não violência, equidade de gênero, desenvolvimento humano e mediação de conflitos.
Alessandro Araujo

Nasceu em São Paulo (SP), em 1983. É autor de Rabada (2024) e Longe de todas aquelas nuvens (2020). É colaborador dos jornais Rascunho e Le Monde Diplomatique Brasil, da revista Philos e da editora Selvageria. É especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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