Eliot no pago

Em "Assim na terra", Luiz Sérgio Metz empreende uma travessia memorialística que transcende o regionalismo
Luiz Sérgio Metz, autor de “Assim na terra”
01/11/2013

O romance Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz, bem poderia ser intitulado “Viagem ao Sul” ou, quem sabe, “Veredas do Sul”, pois o narrador andejo dessa longa e intrincada travessia cumpre seu destino de cavalgada errática pelas terras de um Sul arcaico, rural e campesino. Embrenha-se mata adentro, para, no fundo, buscar a si mesmo — sempre em trânsito por um espaço geográfico cujas sinalizações imprecisas são ditadas apenas pela bússola da memória.

Embora possa ser traduzido, a priori, como um canto de exaltação à terra natal, a força literária da obra está exatamente na necessidade de transcender aquele “pago”, alargando as fronteiras regionalistas limitadoras. Estas, quando muito voltadas aos “ismos” de qualquer espécie, acabam por assumir certos tiques e esgares que transformam a matéria do narrar em algo enfadonho e caricatural, fazendo com que a parte sobressaia em relação ao todo. Um dos bons efeitos que se obtém, quando se combatem tais estereótipos, é o da percepção de que a pequena aldeia pode ser também o mundo.

Nesse sentido, é preciso reparar o quanto o Sul recriado por Metz atinge, em boa medida, a altissonante universalidade do Sertão de Guimarães Rosa. Talvez essa seja uma das características mais evidentes que o situem como autor singular no panorama de uma literatura brasileira sulista. Com efeito, ele revisita a tradição encarnada por Simões Lopes Neto, Apparicio Silva Rillo, Aureliano de Figueiredo Pinto ou Erico Verissimo, mas a amplia, na vertente de uma intertextualidade plural que investe, sobretudo, em nomes da literatura canônica, como Goethe, Mallarmé e Eliot.

Típico x pitoresco
Os embates entre uma narrativa auto-referente, muito impregnada das assim chamadas “cores locais”, e outra que consiga tratar do regional numa perspectiva arejada e não redutora aparecem bem elucidados, por exemplo, no seguinte diálogo:

Se pronuncio algo pitoresco, como chimarrão, essa palavra também voará e retornará a mim. Ela é natural deste lugar?

Aqui dentro não há o pitoresco. Há o típico.

O que é aqui dentro?

Aqui dentro não é.

É em busca de elementos que componham um Sul típico, denso e profundo (não um espaço físico, mas sim mental), e não o meramente pitoresco, que o narrador se lança nessa “waste land” eliotiana, representada por meio de fragmentos que são como estilhaços memorialísticos ora a se iluminar, ora se perder no breu da noite, nos desvãos da existência.

T. S. Eliot
Daí por que um dos motes recorrentes ao longo das páginas do romance seja precisamente extraído do primeiro poema dos famosos Four quartets (Quatro quartetos) de T. S. Eliot: “No começo, está meu fim. No meu fim, meu começo”.

De certa forma e em explícito diálogo com o poeta norte-americano, o narrador investe no encantamento com a palavra, em sua magia, como redenção possível à transitoriedade da vida e ao tanto de inapreensível que ela carrega. A palavra será o amálgama capaz de revitalizar os traços fugidios da memória — antídoto contra o efêmero de tudo, “uma das formas de superação do perecível e do momentâneo” — para que o ciclo da existência se perfaça:

Tudo palavras, elas nos sustentam. Só elas penetram o corte, são o atalho. Elas desordenam, elas aparentam, aparecem, e somem nas essências. Gotas de apojo pingando na caneca. Buscamos alcançar o que intuímos, um ideal de nome para essa coisa, que já não mais está, ficou a palavra da coisa, e a palavra que muda é a que mais acompanha a coisa e a transforma. Homero estava no barro e era barro. Depois abandonou os charcos, foi viver no mármore.

Pode-se, inclusive, estabelecer um curioso paralelo entre a estrutura da obra de Metz e a de Eliot, pois conforme nos ensina Helena Barbas, cada poema do autor dos Quartetos “corresponde à revisitação de um espaço geográfico, um percurso físico que equivale a uma deambulação pelos lugares da memória — pessoais e coletivos — sempre um pretexto para exibir o irrecuperável”.

Pensário
O transbordamento verborrágico e vertiginoso do texto de Metz prima por uma volta à natureza primordial e poética da linguagem enquanto descoberta do mundo. Esta se justificaria uma vez que as palavras, em galope desenfreado, materializando a fusão simbiótica de cavaleiro e cavalo, encarnariam a angustiante necessidade de romper as fronteiras físicas e espirituais na busca atávica de um Sul que passa a ser construído, sobretudo, por meio do que Benedito Nunes talvez denominasse “poética do pensamento”.

Não é à toa que, ao encontrar o estranho personagem apresentado como Gomercindo S., que pode ser fruto de um delírio do narrador ou mesmo seu duplo, este lhe chama para compor uma obra escrita, num local que parece um galpão, mas que deve ser concebido como um “Pensário”. É nesse lugar de absoluto isolamento, quando o narrador se concede uma pausa necessária, no meio da viagem, que aquele típico gaúcho “pilchado”, leitor de Goethe, Eliot, Mallarmé, Haroldo de Campos, nas entranhas do Sul imaginário, acaba por lhe ditar sua “Profissão de fé” — em importante estratégia metaliterária —, o receituário de uma verdadeira “Ars Poética”:

Começa a escrever aqui ele disse , trabalha com um sentimento ampliado usando uma corda de couro com trança de oito que corre entre os dedos que a tentam comprimir. Reduz a cena para o pescoço do animal, pois é onde ele tem mais força e as tuas mãos, ao tironaço, mais fraqueza. A corda queima. A carne aviva. Nasce a necessidade de dizer coisas. Vieste buscar espaço e calma. O ser está em carne viva. É a hora. Evita o pântano da filosofia. E os diálogos que são a ruína do texto. Cada citação é ferimento na escritura, naufrágio da linguagem. O que falarmos dissimula e faz com que seja sugerido por uma personagem silenciosa que te acompanha na narrativa. Apunhala-me. Inicia a trabalhar dentro do Pensário…

É de modo imperativo que G. S., o ser ensimesmado, adestrado na lida do pampa, da vida e em contínua metamorfose devido ao contato com os livros (daí por que o nome Gregor Samsa seja evocado, a partir das iniciais do nome) vai impondo seu saber ao narrador, revelando muito sobre os índices que norteiam a estrutura narrativa como um todo.

Pacto com o diabo
Importa notar que a criação é aqui concebida como algo diabólico e, de certa forma, o que Gomercindo — recuperando Goethe — propõe é a consubstanciação de um pacto fáustico. O narrador lhe vende a alma, a fim de encontrar — no ambiente do “Pensário” — a fagulha criativa da escrita.

Porém, antes de tudo, a elucidação simbólica sobre a possível intervenção desse estranho personagem parece ser a que anuncia a mescla entre a cultura empírica, primitiva e arquetípica e os ditames da alta literatura, numa fusão que o próprio narrador concebe como a busca de uma profunda interpretação do Sul:

Mas estávamos viajando não para confrontar, mas para defrontar, segundo Gomercindo, o dentro e o fora. Eu anotava para uma caderneta. Mas o que realmente me ocorria era ter mais gente comigo, gente que pudesse iniciar uma hermenêutica do sul, com a calma acadêmica e o vigor dos demônios.

Os diabos aqui evocados pertencem à linhagem dos seres que povoam a “Estética dos bugres”, já que a definição de Sul não contempla diabos gregos de mármore, mas “diabos populares, úteis, salvos do fogo, sentados quietos aguardando seu momento para expor suas gestas na vinosa poeira do oitão”.

Terra fecunda
Acreditando no primordial texto da estância, tal como um Demiurgo do Sul, o narrador fecunda o húmus de sua terra por meio da memória, que se depura pela força da palavra. Assim, ainda que devastado pelo inexorável fim dos ciclos e das estações da vida, o pago renasce, a partir de uma gestação alquímica em que o antigo e o novo se contaminam mutuamente, em fecunda metamorfose.

Por isso, nessa ousada travessia poética de Luiz Sérgio Metz, a voz de Eliot ressoa pelo pampa a perder de vista e também dentro das “taperas silenciosas onde feições barbudas e chapeludas rondam roucas seus rebocos de barro e cicatrizes”, porque no Sul, no Sertão ou em qualquer parte do mundo viver é sempre “uma preparação para a saudade”…

Assim na terra
Luiz Sérgio Metz
Cosac Naify
224 págs.
Luiz Sérgio Metz
Nasceu em Santo Ângelo (RS), em 1952. Foi escritor, jornalista e letrista do grupo Tambo do Bando. Publicou O primeiro e o segundo homem (contos, 1981); a biografia de Aureliano de Figueiredo Pinto, Tchê (1986); e o romance Assim na terra (1ª ed. 1995 e 2ª ed. 2013, pela Cosac Naify). Morreu de câncer em 1996. Postumamente, teve publicado o volume Terra adentro.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

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