Tranquilo, ela não nos abandona: no máximo a solidão dá um tempo, toma chá nos raros intervalos de seu banquete de almas. Mas neste livro, acompanha o leitor sem trégua, por 22 contos; quase 150 páginas que a revelam de vários modos.
No segundo conto, Depois da feira, de onde sai o título da obra, Qual é, solidão?, Alexandre Brandão a faz surgir de vestido, unhas vermelhas, chupando uma laranja. Visita o narrador-personagem, primeiro parecendo causar incômodo. Ele a sacaneia, espera que se arda com as laranjas azedas, que tenha dor de barriga com a mistura do cítrico e o café que oferece, ri de sua bunda murcha. Funcionam as cutucadas e ela realmente fica deslocada na cena (como descreve o próprio personagem). Ao mesmo tempo o homem vai revelando conforto em ter a companhia daquela solidão. E sofre ao imaginar que pode tê-lo deixado. A construção da mudança de humores é habilidosa. Assim como o diálogo de falas e silêncios, quebrado por uma rápida e enigmática conversa de verdade entre ele e a solidão.
Há contos em que os personagens fogem da solidão, abraçando corpos — o livro começa com sexo e termina com sexo, em descrições bem literárias, mas não distanciadas. O de abertura — curioso — de cara trata mais de isolamento do que solidão. É um casal que vai pescar e tem uma noite de amor intenso. Talvez uma bolha de amor intenso — e aí a solidão habita entrelinhas. O último conto é um encontro entre homem e mulher num motel. Nomes fictícios. Muita entrega e cada um para seu lado depois, apesar da cumplicidade e do entendimento construídos de um dia para outro.
Em outros textos a solidão aparece em uma de suas mais cruéis formas: na de companhia — não a onírica, fantástica, como a que chupa laranja na cozinha, mas a real, que muitas vezes prometeu-se em altar até que a morte os separe. Tem o músico que vive rodeado mas chora sua solidão num solo inesperado, tem o Jonas que é o tradicional pai de família a sentir-se sozinho e encontrar alguma correspondência no que lhe diz uma prostituta. Tem a Bebel, que sonha acordada com John Coltrane e desperta na vida com seu homem bêbado, mas é o que tem pra hoje.
Em O bêbado e a vendedora de chicletes, o personagem acha-se condenado à solidão mas redescobre o prazer da companhia, da preocupação do outro, do olhar do outro. Emblemático que seja um homem que vive nas ruas, dormindo em qualquer lugar, comendo e bebendo das doações voluntárias e normalmente muito fugazes.
Os personagens de Alexandre Brandão são todo mundo de mais comum, de mais vizinho da gente — quando não é a gente mesmo. O que torna suas vidas especiais é a aproximação. O autor concede essa proximidade pelo texto. Não abusa de construções complexas, prefere as palavras do dia a dia. Tudo o que facilita o leitor a chegar perto do outro, perto da história.
Estilo
Há uma busca de Brandão em seus textos que aparece sem disfarce: a de não cair na frase feita. Isso dá resultados surpreendentes. Por exemplo no conto Na pele de Esther, em que o consagrado “pão que o Diabo amassou” fica assim: “Naquela manhã fechada, propícia a amores e crimes, nós comíamos, fresco, o pão amassado — no seu modo de ver, Esther, por mãos satânicas”. No mesmo texto, a teimosia ganha esta descrição: “Não busco justificativas, mas há um par de segundos no qual somos levados pela mão de uma certeza que se vai esborrachar não tarda um ai”. O exercício da ressignificação ou da criação de imagens para dar sentido mais apropriado a algo é sem dúvida uma das funções da literatura. É o que provoca o leitor repensar nas palavras que usa já automaticamente.
Modinha de um homem lento é outro exercício de estilo do autor. Combina forma e conteúdo. Escrito em primeira pessoa, justifica certa chatice na narração. É que o narrador-personagem fuma muita maconha. Desvia-se constantemente da própria linha de pensamento, demora em contar sua história que tem algo de O estrangeiro, de Camus, quando o homem perde o senso de consequência de seus atos e desejos, assim afastando-se de sua humanidade — afastar-se da própria humanidade talvez seja a maior solidão possível.
Ainda sobre extremos do assunto, o suicídio não foi deixado de lado. Está no conto O bravo touro de pata amarela. É tema sempre complicado. Não se detém ao ato, explora os sempre pouco explicáveis momentos antes.
Existe uma alternância muito bem-vinda ao longo do livro entre realismo e fantástico. Em As cinzas do carnaval quem conta a história revela e própria morte: “No meu velório, os amigos de sempre”. Um dos contos mais poéticos, pois brinca mais com as palavras, esse do homem e da mulher que se encontram nos carnavais da vida, tropeçando neles mesmos e nos outros:
O imprevisto espreita esse ir e vir, subir e descer, e quando se vê… Chutei um corpo caído na Travessa do Ouvidor, uma esplêndida colombina nua. Todo mundo percebia a beleza da cena. As pessoas foram se arredando, formando um enorme círculo. Dentro dele, fiquei sozinho com a menina nos meus braços. Um surdo bateu fúnebre, e a rua deu de silenciar.
Rio de janeiro
A cidade que aparece nos contos é o Rio, onde vive atualmente o autor mineiro. Em Silvos breves tem o morro, da policial que sobe para tirar a farda e desistir de ser polícia — uma guarda de trânsito que pendura o apito. Aparece um policial do Bope, por meio de sua namorada. Aparece o Carnaval carioca. E as ruas do Rio — Aterro, Lagoa — abrigam um atarantado criminoso, em busca de sua amada vítima (Na pele de Esther) em algum hospital da capital.