A primeira impressão é de que se trata de um comuníssimo papel cartão pardo, recurso não muito original usado às vezes para sugerir despojamento ou despretensão. As letras do título, que ocupam quase toda a metade superior da capa, têm um tipo gorducho mas são vazadas, e seu contorno é uma cor indecisa entre o vermelho e o marrom. O nome da autora aparece logo acima, em letras menores e pretas. No canto inferior direito, o logotipo da editora. A singeleza evoca aquele conceito um pouco vago de estilo clean, mas embute o risco de fazer o volume passar despercebido numa estante onde ele figure em meio a capas mais vistosas. A idéia inicial começa a se desfazer quando, ao se provar a textura do papel, este mostra uma inesperada aspereza. Com a curiosidade assim despertada, basta voltá-lo em direção à luz para que ele rebrilhe e revele uma insuspeita sofisticação: longe de ser pardo, o papel é na realidade de um dourado antigo cujo brilho possui a discrição da elegância, enquanto as letras vêm delineadas com um fino traço de verniz bordô. (Neste ponto, um fundo musical perfeito teria a voz suave de Lucinha Lins e os versos de Purpurina, sucesso da década de 80: “Pode ser, mas eu sou feito purpurina / Se uma luz não ilumina / Não há jeito de brilhar”.)
Mais que um exercício de bom gosto e criatividade, a capa assinada por Kiko Farkas e Elisa Cardoso para Toda terça também reflete à perfeição o conteúdo do primeiro romance de Carola Saavedra, onde a palavra “sutileza” parece ter sido não apenas um rasgo de entusiasmo de Sérgio Sant’Anna ao escrever a orelha do livro. Tal como a purpurina da canção, é um texto repleto de nuanças que só vêm à tona sob um facho de luz — metáfora precisa do alto grau de participação que ele exige do leitor. De resto, Sant’Anna é o responsável direto pela publicação da obra na Companhia das Letras. Numa atitude digna de aplauso, o consagrado escritor empolgou-se ao ler os originais da quase estreante e prontamente os levou ao editor Luiz Schwarcz que, tocado pela mesma empolgação, decidiu publicá-los.
Toda terça estrutura-se em três narrativas na primeira pessoa. Duas delas se alternam — e eventualmente chegam a se entrecruzar — nos dezesseis capítulos da Primeira parte e que respondem pela maior porção da obra. No trecho final, um terceiro narrador assume o comando e leva o romance a seu desfecho. É quando também vão aparecer os vínculos entre as histórias. Aos que não dispensam o preciosismo das definições, trata-se aqui de um romance na acepção exata da palavra: apesar de sua brevidade, a coexistência de mais de um conflito não permite que se o tome por novela.
Uma das vozes é a de Laura, jovem entediada com a vida e sustentada pelo amante casado e rico que a incentiva a fazer psicoterapia. A ação se desenrola no Rio de Janeiro e tem como cenário o consultório do psiquiatra Otávio. Saavedra afirma que sua intenção era escrever uma história onde o essencial não estivesse dito. Na consecução desse objetivo, as sessões de terapia de Laura — sempre às terças, e eis aí uma das justificativas do título — equivalem a uma mina de ouro. A narradora, na condição de paciente, é também quem mais fala, em contraponto a uma atuação obviamente mais econômica do analista. Diante das provocações de Laura, Otávio mantém uma neutralidade para ela irritante. A tensão cresce à medida que os diálogos vão revelando aos poucos um jogo intrincado e de solução imprevisível:
Desviei o olhar para o teto e fiquei calada, como se estivesse ruminando alguma coisa.
Não sei por que eu gostava disso, de testar a paciência de Otávio, começava a dizer algo e parava na metade, ficava ali, distraída, sem dizer nada, como se de repente houvesse me lembrado de alguma coisa, de algo muito importante, e esse era sempre o melhor momento, longos minutos de silêncio, e Otávio ali, suspenso em minhas palavras.
Do outro lado do mundo, em Frankfurt, Javier é mais um latino-americano perdido na Europa e morando de favor na casa da namorada, Ulrike. Jovem culto, cínico e bem-humorado, a despeito da precariedade de sua situação de imigrante, Javier já experimentou toda a sorte de subemprego e agora ganha a vida servindo de acompanhante de cães. Como não poderia deixar de ser, ele adora cinema. E, como também não poderia deixar de ser, acaba envolvido com outras mulheres enquanto vive com Ulrike, buscando dar um lustro de originalidade à mais comezinha das fraquezas humanas. Uma de suas escapadas repete-se justamente às terças — e eis aí uma segunda razão para o título —, quando o apartamento onde mora fica vazio. Mas, antes que se pense em estereótipo, convém ressaltar que Javier é um personagem rico e multifacetado cuja construção passa ao largo de qualquer maniqueísmo. O discurso assume com ele ares de monólogo interior, o que propicia um adequado contraste com a narrativa mais ortodoxa adotada por Laura:
E então Ulrike mudava de assunto e voltava ao dia na faculdade, um dia cheio de detalhes e filmes e professores e xícaras de chá e mais tarde de pratos e tequilas e clientes de restaurante, e, finalmente, perguntas sobre o que eu tinha feito, e você, o que você fez hoje?, perguntava Ulrike com premeditada displicência, como se tratasse de uma pergunta sem importância, algo casual.
A última voz é a de Camilla, personagem que viaja de Frankfurt para o Rio de Janeiro e a quem é entregue a costura do final. Dela, mais não se poderá dizer, sob pena de atrapalhar o pouco de surpresa que terá o leitor — e é justo se admitir que, dentro da concepção intimista da obra, não haveria mesmo lugar para qualquer desfecho estrepitoso.
Para quem recém estréia no romance, é absolutamente notável a segurança com que Saavedra move-se na estrutura complexa que concebeu. Dito noutras palavras, a um iniciante é sempre mais fácil propor uma idéia genial do que ter a capacidade real de executá-la. E no caso de Saavedra, o mais impressionante: sem nunca pesar a mão. Ao contrário, Toda terça é um livro dotado de exemplar leveza e fluidez, não obstante seu denso subtexto. Contribui para isso um senso de humor afiadíssimo e… sutil — e aqui se repete a palavra por não haver outro adjetivo tão apropriado.
A linguagem, em suas várias modulações, é contemporânea na tendência ao coloquial mas sem dispensar o apuro com o ritmo, a eufonia, a precisão vocabular. De uma feição igualmente contemporânea, e à primeira vista paradoxal, ela reflete ainda a perplexidade e apatia dos personagens diante do desafio que significa comunicar-se no mundo de hoje. Seja no divã do psicanalista, seja no estrangeiro, seja na aflição de uma espera, a incomunicabilidade é o leitmotiv e o verdadeiro elo a unir as histórias.
Um único reparo se faz necessário — e só se o faz aqui porque junto também existe a firme convicção de que muito ainda se ouvirá falar de Carola Saavedra como destaque nesse universo a que se poderia chamar de nova geração de ficcionistas. Como já se falou antes, o final proposto por Saavedra reserva um grau de surpresa compatível com o caráter da obra. Mas há uma armadilha intrínseca na maneira aberta como o romance está estruturado: ela propicia mais de uma possibilidade de desfecho. E a opção da autora peca por sua fragilidade, se comparada à primorosa urdidura que a precede. Assim, ao se fechar o livro uma pequena frustração nasce com a inevitável pergunta: tanta coisa para se chegar a isso?
Por mais alvissareira que seja esta quase-estréia, é de certa forma salutar que se possa ao mesmo tempo vislumbrar algum aspecto a ser melhorado no futuro. É isso, em última análise, o que faz mover as pesadas engrenagens da boa literatura: a eterna busca do acerto.