A prosa de Bernardo Guimarães recebeu poucas vezes o olhar minucioso graças ao qual Manuel Bandeira chamou nossa atenção para alguns dos bons poemas escritos por esse ouro-pretano. É pena, pois considero uma injustiça que Inocência, comentado neste Rascunho na edição de outubro, receba tantos elogios, enquanto O seminarista — que veio à luz no mesmo ano do romance escrito por Taunay, 1872 — permanece nas sombras. A injustiça, aliás, é dupla: a obra apresenta tantos defeitos quanto Inocência; e se comparada ao livro mais famoso de Guimarães, A escrava Isaura, transforma este último num exercício de romantismo chinfrim, cujo verniz politicamente correto serve apenas para fazer a alegria de alguns inocentes idealistas.
Pieguice e descuidos
Em O seminarista, a dupla romântica Eugênio e Margarida tem sua história relatada por meio daqueles rosários de adjetivação e estilo circunvagante que conhecemos:
Os meninos quedos e taciturnos olhavam em derredor de si com tristeza. Pela primeira vez cismas saudosas, anuviadas de um leve toque de melancolia, pairavam sobre aquelas frontes infantis. Dir-se-ia que naqueles vagos rumores da solidão ao despedir-se do dia estavam ouvindo o derradeiro adeus do gênio prazenteiro da meninice, e que no dúbio clarão róseo que afogueava ainda a orla extrema do ocidente entreviam o último sorriso da aurora da existência.
E, logo a seguir:
Assim foi se criando e fortalecendo desde o berço entre aquelas duas almas infantis uma viva e profunda afeição, que de dia a dia mais afundava as raízes naqueles dois tenros corações, como em uma terra fresca e cheia de seiva virginal. Eram como duas flores silvestres em botão, nascidas do mesmo hastil, nutrindo-se da mesma seiva, acariciadas pela mesma aragem, que ao abrirem-se cheias de viço e louçania encontravam-se sorrindo-se e namorando-se em face uma da outra, e balanceando-se às auras da solidão procuravam beijar-se trocando entre si eflúvios de amor.
Essa intoxicante forma de narrar chega a ser risível, sem dúvida — e ficamos a um passo de preferir, na obra de Bernardo Guimarães, os poemas pornográficos, como o deliciosamente furioso O elixir do pajé, que Alexei Bueno selecionou para sua Antologia pornográfica — de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso, publicada em 2004, pela Nova Fronteira.
Sobram derramamentos românticos em O seminarista, história que, suprimida a retórica inútil, poderia ser analisada, hoje, não apenas como um caso de naturalismo prematuro em nossa literatura — mas um caso de sucesso. Estamos, contudo, impedidos de fazê-lo exatamente por trechos semelhantes ao próximo, em que o narrador, depois de apresentar um sensível e espontâneo diálogo entre crianças, intromete sua verbosidade, acreditando-a essencial para completar o quadro:
O anjo dos puros e santos amores sorriu-se àquelas juras, e depois de ter bafejado com os leques de suas asas de ouro e seda aquelas duas frontes juvenis e cândidas, remontou seu vôo para o empíreo, enquanto o austero e sombrio gênio da beatice, que procurava disputar-lhe o coração do mancebo, pesaroso bateu as fuscas asas, e foi-se esconder entre as ruínas de algum mosteiro abandonado.
Muitas vezes, ele nos recorda José de Alencar nos seus piores momentos:
Longe de expelir transformado em veneno o fel do coração, converte-o em lágrimas de resignação e expande mais suave e puro o perfume da virtude, como o sassafrás golpeado pelo ferro do derrubador destila mais ativo e redolente o aroma que lhe embalsama o âmago.
São os efeitos da pieguice romântica. Mas, em meio a tal excesso de floreios, há também o descuidado estilo de Guimarães, que não se importa de, numa seqüência de parágrafos, repetir verbos e substantivos; e utilizar sinônimos como se estivesse apresentando uma idéia nova. Ou, ainda pior, reproduzir, ao longo da narrativa, as mesmas informações. Eugênio, por exemplo, é descrito como dócil, pacato, obediente, calmo e cordato dezenas de vezes. Já sabemos, desde o princípio, o quanto esse garoto é frágil e tendente à submissão, mas o narrador parece temer que nossa memória falhe…
Ocorre problema semelhante com certas metáforas ornitológicas, pelas quais o autor demonstra predileção. No início do Capítulo 4, por exemplo, os jovens enfurnados no seminário de Congonhas do Campo são vistos como “um bando de anus pretos encerrados em um vasto viveiro”, o que não deixa de ser uma maneira bem-humorada de retratá-los, vestidos com suas sotainas. Duas páginas depois, no entanto, o autor mata o inusitado da imagem, repetindo-a numa forma semelhante: “Então a turba dos seminaristas com suas batinas e barretes negros, divididos em quatro turmas segundo as idades (…), despenhava-se fora das portas como uma nuvem de melros pretos a quem se abriu a entrada do viveiro (…)”. Mais para o final, no Capítulo 15, quando Eugênio vive seus piores dias no seminário, dividido entre a vocação religiosa e o amor carnal, a voz que narra retoma a figura: “Grave e pausado como um velho ermitão [Eugênio] formava um vivo contraste com a turba jovial de seus gárrulos e travessos companheiros; dir-se-ia o triste e moroso noitibó perdido entre um bando de inquietos e chilradores (sic) melros”.
Alguns preferem atribuir essas falhas ao estilo marcado principalmente pela oralidade, o que transformaria Bernardo Guimarães num contador de histórias de poucos recursos, possivelmente cônscio de seus defeitos. De minha parte, considero-as descuidos imperdoáveis, frutos de uma displicência que o autor não revela em vários de seus poemas.
Voltando às intromissões do narrador, das quais falamos acima, algumas delas realmente aproximam O seminarista do típico romance de tese, antecipando o movimento estético que chegaria a seu ponto máximo com Aluísio Azevedo. O narrador insiste em criticar o celibato, culpando-o pelo fim trágico dos protagonistas, pois, sem tal obrigação, a tendência de Eugênio à vida religiosa, manifestada desde a infância, não o impediria de se unir a Margarida. Nesse sentido, o desenvolvimento psicológico de Eugênio é claro: seu amor só se transforma em obsessão pelo fato de ser proibido. Tal argumento, contudo, ficaria melhor se permanecesse latente, ao contrário do que faz o narrador, que, insatisfeito de apenas contar a história, opta pela doutrinação explícita:
O rapaz que saiu de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade a figura dum idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre.
Ou ainda soma ao proselitismo a retórica entediante:
Essas duas tendências naturais de seu coração terno e entusiasta, pode-se dizer essas duas paixões, que lhe eram inatas, o amor e a devoção congraçavam-se admiravelmente em seu espírito. O arroubo místico, a contínua aspiração para Deus e para as coisas celestes não excluíam nele o amor por essa criatura, que é sobre a terra um dos mais belos reflexos do infinito poder — a mulher. É que de fato esses dois sentimentos tão puros, tão celestes ambos, nada têm de inconciliáveis em si mesmos, e somente uma lei meramente convencional, impondo o celibato como um preceito imperativo, podia levantar entre eles esse odioso antagonismo, contra a qual a razão protesta e revolta-se o coração.
Não bastassem esses problemas, ao chegarmos às páginas finais do romance, descobrimos que o narrador nos reservou um pormenor estapafúrdio, caricato. Passados vários anos, recém-ordenado padre, Eugênio retorna à cidade natal. Depois de toda a luta interior que enfrentou para superar a paixão por Margarida e submeter seus instintos às exigências da castidade, não há surpresa na “ligeira nuvem melancólica” que “toldava um pouco a limpidez de seus grandes olhos azuis”. Mas como reagir ao detalhe inverossimílimo “das duas rugas prematuras, uma vertical e outra horizontal, que se cortavam formando uma cruz bem no meio da testa” e que “pareciam revelar que dentro daquele crânio se haviam agitado lutas e tormentas apenas serenadas”? Contendo uma gargalhada, seguimos a leitura.
Beatriz às avessas
A principal alegoria que se repete no transcorrer da narrativa é a da serpente como representação do demônio, da incitação ao pecado, do desvirtuamento moral. Ela nasce de um fato concreto, ocorrido na infância de Margarida, quando uma “truculenta jararaca” se enrosca nos braços e no pescoço da menina:
A cobra enrolava-se em anéis em volta da criança, lambia-lhe os pés e as mãos com a rubra e farpada língua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha na mão, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a mínima ofensa.
Depois que o réptil escapa, ainda sob efeito do susto, o diálogo entre a mãe de Eugênio e a de Margarida, que haviam presenciado tudo, é profético:
— Mas uma cobra, que em vez de morder lambe e afaga…
— Também a serpente do paraíso não mordeu Eva; arrastou-se a seus pés e afagou-a para melhor enganá-la.
— Ora, comadre, também a minha Eva ainda está muito pequenina para poder ser tentada pela serpente.
— É que já o bicho maldito a está pondo de olho para mais tarde fazer-lhe mal.
— Qual, comadre!… é porque até as cobras têm respeito à inocência…
— Fie-se nisso!… por sim por não, esta não me há de escapar.
Esse acontecimento marca não só a forma como Margarida passará a ser vista pela supersticiosa mãe de Eugênio, pronta a invocar a cena sempre que um fato lhe demonstre o quanto seu filho permanece, baldados os esforços familiares, enfeitiçado pela jovem, mas permite ao narrador construir um centro a partir do qual tecerá a figura da mulher que, coleante, aqui e ali transvestida em anjo pueril, conduz o fraco Eugênio ao sacrilégio.
Margarida, de fato, é uma Beatriz às avessas. Cheia de vivacidade, “corpo esbelto e flexível” desde menina, será sempre quem toma a iniciativa e assume o comando, inclusive nas brincadeiras, ou quem espanta a tristeza e faz Eugênio voltar à realidade terrena. Passo a passo, o narrador acrescenta ao aspecto sensual da jovem uma alma “virgem”, “cândida”, “sensível”, criando a figura da “Vênus animada por um espírito angélico”. Assim, a dúbia Margarida também saberá usar de malícia; zombará, junto com sua mãe, do seminarista que vem passar férias na casa paterna; mostrar-se-á atrevida, agressiva e ardente para defender Eugênio de um rival; e finalmente engolirá a presa.
Quando Eugênio, ordenado padre, reencontra Margarida e descobre a mentira paterna, pois a jovem permanecia solteira, não se revolta apenas, mas vê renascer a luxúria falsamente controlada pelos exercícios espirituais; e dividido entre o sacerdócio e a posse da mulher que ama, no dia seguinte desobedece aos propósitos firmados na madrugada e, vagando pela cidade, querendo e não querendo ver Margarida, mais e mais se aproxima da armadilha. A imagem é parcialmente fraca, quase infantil, não agradará às indômitas feministas, mas sintetiza o que o narrador preparou desde o início:
É assim que o passarinho pousado na grimpa da árvore fascinado pela serpente, que enroscada no tronco fita nele os olhos peçonhentos, hirto de pavor e soltando pios lastimosos vem descendo de ramo em ramo até meter-se na garganta escancarada do hediondo réptil.
E a um passo de ser devorado, Eugênio murmura: “— Um momento de suprema felicidade!… depois o inferno! que importa!”.
Morbidez e regionalismo
Bernardo Guimarães usa uma linguagem empolada, mas possui o timing correto quanto à evolução psicológica dos personagens. No caso específico de Eugênio, o menino dócil, de natural misticismo, estranha a reclusão do seminário. Dominado pela saudade, isola-se dos outros garotos e só consegue pensar em sua amiga de infância, Margarida. Não se trata de amor, mas de melancolia que logo se dissipa. Dois anos mais tarde, os poemas de Virgílio o recordarão da vida na fazenda e… de sua amiga. Será a primeira crise, pois os versos que passa a escrever, descobertos, provocam a censura dos padres. O jovem aprende a reprimir seus sentimentos, mas não esquece a menina. Nos anos seguintes, jejuns, mortificações e estudos acabam por alterar sua personalidade — é o princípio da luta que ele perderá. Quatro anos sem visitar a família, a fim de ser preservado do contato com Margarida, produzem um autômato. Depois de os padres finalmente permitirem que ele viaje à casa dos pais, mal se instala, todos os esforços se perdem, e agora não se trata mais de amizade: os afetos se expandem, os encontros ganham intimidade. Sob pressão da família — o diálogo com o pai, Antunes, pleno de autoritarismo e preconceito, é um dos ótimos momentos do livro —, o jovem retorna ao seminário. Os anos passam. A luta interior não cessa. Eugênio é sincero em suas preces, em sua fé; contudo, Margarida o obceca. O jovem vive como um anacoreta, mas visões noturnas da mulher o acossam. Certo dia, uma carta do pai comunica aos padres o casamento de Margarida. O seminarista, no entanto, não experimenta a libertação; antes, sente-se traído — e vítima de um ciúme doentio, primeiro odeia, depois é tomado por uma sensualidade atroz, e finalmente abatido, transforma-se num “limbo silencioso, gélido e sombrio”. Será este homem que, ao reencontrar Margarida, não resistirá.
Ótimo psicólogo, Bernardo Guimarães soma outras qualidades a seu texto. Algumas de suas paisagens repetem, com perfeição, o que ainda podemos presenciar em inúmeros trechos da Estrada Real, ao viajarmos pelo interior de Minas Gerais. Seus diálogos fluem numa naturalidade carregada de jargões populares, e nosso escritor usa bem certas expressões típicas, ainda hoje ouvidas nas conversas dos botequins ou à saída das missas em alguma cidadezinha mineira: uma personagem “pensa suas vaquinhas”; outra deve “um favorão a Deus”… Ele também retrata costumes típicos: os agregados das propriedades rurais (situação em que viviam Margarida e sua mãe), os mutirões que terminam em festa, a quatragem (antiga dança de sapateado comum em regiões de Minas), as simpatias a que todos nós um dia recorremos, como a que a mãe de Eugênio utiliza para paralisar a jararaca que se enrolara em Margarida: “Tendo-a enfim descoberto, encarou-a fixamente, e sem despregar dela os olhos, levou as mãos aos atilhos da cintura da saia, que começou a arrochar cada vez com mais força, murmurando certas orações e esconjuros cabalísticos”.
Podemos discordar da hierarquia social que o romance apresenta, mas trata-se da imagem perfeita do Brasil rural no século 19: quando Eugênio, filho de um fazendeiro, é admoestado no seminário, seus colegas pensam: “— Se aquele, que é um santinho, e nunca falta às suas obrigações, está sujeito a estas, que será de mim, que nem por isso dou muito boas contas de mim, e não sou lá das melhores fazendas!”. No momento em que Eugênio e o pai discutem, pois o rapaz mentira para poder participar de uma festa na casa de Margarida, o fazendeiro explode: “— Que foste lá fazer?… e o que esperavas mais misturando-se com semelhante canalha?…”. E confrontado com a recusa de Margarida em casar, a reação de Antunes é imediata: enxota a jovem e sua mãe da fazenda.
Há também adoráveis elementos ultra-românticos no livro, reflexos tardios das reuniões byronianas com Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa, quando, no período da Faculdade de Direito, em São Paulo, fundaram a Sociedade Epicuréia: as emoções desenfreadas e paroxísticas de Eugênio — até as declinações e conjugações da gramática latina, comparadas a morcegos e corujas, “recusavam-se obstinadamente a penetrar no cérebro inflamado do adolescente”, onde “fulgurava a imagem de Margarida”; o clima de intensa religiosidade que não conduz ao êxtase revelador, mas ao acabrunhamento, à tristeza, ao desgosto; e o erotismo subjacente, calado, mas que oprime a ponto de condenar os protagonistas, pois a doença mal explicada de Margarida, sua morte prematura e a loucura de Eugênio não passam de conflitos psíquicos que se somatizaram. O sacerdote não se entrega à necrofilia apenas por uma questão de horas. E na manhã seguinte, quando se dirige, sacrílego, à sua primeira missa, o clima de pavor se instaura: “os sinos, sem que ninguém os tocasse, deram baladas fúnebres”, e “um tufão escancarando a porta interior do frontispício entrara pela nave e apagara a lâmpada do santuário”. Quando a ordem do mundo se rompe e a mulher amada, há poucas horas possuída, se encontra, inesperadamente, sobre “um pobre caixão sem tampo”, que pode restar ao protagonista estraçalhado pela morbidez e pelo remorso, senão a completa loucura? Como disse Friedrich Schlegel, “Caos e Eros são a melhor explicação do romântico”. Logo, temos o fecho perfeito, escolhido por um escritor desigual, é verdade, mas de múltiplas faces, que não se subordinou completamente à retórica folhetinesca e deu os primeiros passos do nosso regionalismo.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Alfredo d’Escragnolle Taunay e A Retirada da Laguna.