O nome de Alfredo Campos Matos soa bastante familiar a estudiosos e pesquisadores da obra de Eça de Queiroz. Não por acaso: lá se vão quase quatro décadas de uma produção rigorosa e relevante em torno do autor de Os Maias, desde a publicação, em 1976, de Imagens do Portugal queiroziano — obra posteriormente revista e reeditada, assim dando início a um percurso devotado à investigação e revisão da trajetória intelectual e biográfica de Eça. Desde então, Campos Matos já produziu mais de uma dezena e meia de títulos imprescindíveis para qualquer um que deseje aprofundar-se na literatura queiroziana — desde o valioso Dicionário de Eça de Queiroz e seu suplemento, que contaram com a participação de inúmeros colaboradores, até estudos sobre momentos particulares da trajetória literária de Eça e investigações acerca de sua vida.
Ninguém, portanto, mais indicado para assinar um volume que, para além de constituir uma biografia em sentido convencional, visa a apresentar um amplo panorama dos percursos pessoal e intelectual de Eça, ponderando sua importância para a literatura portuguesa — e brasileira —, bem como sua inserção no ambiente cultural oitocentista. Como registra o autor na “Nota preambular à edição brasileira”, na origem do trabalho está um convite para a produção de uma biografia de Eça de Queiroz para o público francês; assim surgiu Eça de Queiroz, vie et oeuvre (Éditions de la Différence, 2010), que serviu como base para a elaboração de um trabalho de maior fôlego.
Contemplado em Portugal com o Grande Prêmio da Literatura Biográfica, oferecido pela Associação Portuguesa de Escritores, e com o Prêmio Jacinto do Prado Coelho, promovido pela Associação Portuguesa de Críticos, Eça de Queiroz: uma biografia ainda conta com aprimoramentos em sua edição brasileira, como a ampliação de diversos temas e revisões na vasta “Cronologia” apensa ao volume, que se estende por mais de 30 páginas.
Releituras e questionamentos
A elevada qualidade do trabalho realizado por Campos Matos fica patente já no capítulo que abre o livro, abordando “o nascimento, os primeiros anos e o drama que lhes anda associado”. Como sabe quem em algum momento já se interessou pela trajetória biográfica de Eça de Queiroz, há um conjunto de lacunas e questões polêmicas associadas ao contexto de nascimento do escritor. De um lado, há a disputa em torno do lugar em que Eça veio ao mundo: Póvoa de Varzim, que já em 1906 — portanto, seis anos após a morte do autor — inaugurou uma lápide na casa onde ele teria nascido, ou Vila do Conde, que imediatamente contestou aquele privilégio, dando origem a uma polêmica ainda capaz de exaltar ânimos. Argumentando com base em documentos assinados pelos pais de Eça e pelo próprio escritor, entre outros registros, o autor de Eça de Queiroz: uma biografia defende não haver motivos para duvidar de que Póvoa de Varzim seja o lugar no qual, em 25 de novembro de 1845, nasceu aquele que escreveria O primo Basílio.
De outro lado, como tema de grande relevância para muitos intérpretes da trajetória literária de Eça, há o drama envolvendo a relação com os pais, José Maria e Carolina Augusta — assunto que ocupa mais de uma dezena de páginas do volume assinado por Campos Matos, que resgata e comenta a documentação em torno das circunstâncias de nascimento e das relações familiares do escritor, enriquecendo-as com valiosa iconografia. Eça de Queiroz, vale relembrar, nasce de uma aventura amorosa entre uma jovem de 19 anos e um homem seis anos mais velho; nasce “rejeitado pela mãe e muito presumivelmente não desejado pelo pai”, observa Campos Matos. A tradição biográfica, a propósito, concede uma atenção especial aos efeitos desse acontecimento — causa de um “traumatismo no gênio literário”, para utilizar a expressão de João Gaspar Simões —, não hesitando em depositar sobre Carolina Augusta a responsabilidade pela rejeição; algo nada espantoso, considerando-se a persistência do que Elisabeth Badinter denominou “o mito do amor materno”.
Entre as qualidades de Eça de Queiroz: uma biografia está o aproveitamento de pesquisas recentes, o que propicia a releitura de diversos episódios marcantes da trajetória do escritor, também facultando o questionamento de certas narrativas que, sedimentadas ao longo do tempo, por vezes constituem versões elaboradas arbitrariamente por biógrafos ou pelo próprio autor de O crime do Padre Amaro.
À guisa de ilustração, pode-se mencionar o concurso para cônsul de primeira classe que Eça presta aos 25 anos: se ele obtivera nas provas o primeiro lugar, conforme o resultado divulgado pelo júri, por que não lhe foi oferecido o cobiçado posto na Bahia, sendo escolhido o candidato que alcançara a segunda colocação? Eça forneceria a explicação que incontáveis vezes seria repetida por biógrafos: o cargo lhe fora negado por razões políticas. Em um dos textos de As farpas, de novembro de 1871 — suprimido da compilação Uma campanha alegre, de 1890 —, Eça se refere ao episódio do concurso que lhe poderia valer a vaga na Bahia, alegando ter sido preterido porque o governo o via como: “Chefe republicano/ Orador dos Clubes/ Organizador de greves/ Agente da Internacional/ Delegado de Karl Marx/ Representante das associações operárias/ Cúmplice nos incêndios de Paris/ Ex-assassino de Mgr. Darboy/ Redator secreto de proclamações/ Receleur de pétrole/ E enfim — antigo forçado” (pode ser interessante mencionar outros trechos da “farpa”, não transcritos por Campos Matos: aquele em que Eça se refere à Bahia como “uma cidade [sic] alegre, com aspectos de água venezianos”, mas com excesso de lagartixas (“osgas”); e aquele em que afirma ter sido preterido “porque se quisera fazer a vontade a uma dama ilustre”). Embora a “farpa” mencione, de passagem, que Manuel Saldanha da Gama, apesar da “classificação inferior”, “estava em condições preferíveis e inatacáveis”, Campos Matos se ampara em um estudo de Maria Filomena Mônica para sustentar que a designação daquele para o cargo, mesmo tendo sido classificado segundo lugar, só poderia ser considerada injusta “na aparência”: ocorre que a experiência administrativa era também um elemento relevante para a seleção de quem ocuparia o cargo; Manuel Saldanha, então com o dobro da idade de Eça, detinha um vasto currículo, já residira na Bahia 14 anos e apresentara uma petição assinada por não menos de 263 negociantes radicados no Brasil.
Não menos interessantes são as muitas páginas que tratam da relação entre Eça de Queiroz e Emília de Castro, a mulher 12 anos mais jovem com quem o escritor se casou, após um breve noivado, em 10 de fevereiro de 1886. Cerca de oito anos antes, Eça manifestara, em carta a Ramalho Ortigão, seu desígnio de casar-se com “uma mulher serena” e “inteligente” que o “adotasse como se adota uma criança”, obrigando-o “a levantar a certas horas cristãs” e que o “alimentasse com simplicidade e higiene”. “Onde está esta criatura ideal?”, indaga ao fim da missiva. Contestando Gaspar Simões, o autor de Eça de Queiroz: uma biografia demonstra que o casamento não foi um mero arranjo de conveniência, havendo afeto entre os esposos — o que não significa, contudo, que a relação tenha permanecido livre de frustrações.
Se Emília se esforçava para cuidar dos filhos e dar conta das dívidas, ajustando-se ao que Eça considerava as tarefas de uma esposa, era por outro lado uma mulher educada e inteligente, com interesses políticos e literários — sistematicamente ignorados pelo marido, “típico representante da época vitoriana e, ademais, discípulo de Proudhon, para quem os aspectos literários não constituem os atributos mais representativos das mulheres”, como afirma Campos Matos. A correspondência redigida por Emília registra detalhadamente impressões provocadas por obras de autores como Guy de Maupassant, George Sand e Tolstói; Eça não apenas ignora essas passagens, como também nada lhe diz sobre suas próprias iniciativas literárias. O exaspero com as atitudes do cônjuge pode ser ilustrado por um trecho de uma das cartas: “Pois eu não sou tão analfabeta que não me interesse pelo jornal que tu fundas, e por o que nele se escreve — mas que importa? Governe o seu ménage, tome conta dos filhos, o resto não é da sua conta…”. Eça, o escritor sempre propenso a usar a literatura para criticar a sociedade portuguesa, não estava, afinal, disposto a contestar as estruturas patriarcais — no que se alinha a outros escritores portugueses do Oitocentos, como Almeida Garrett e Camilo.
Por fim, cabe ressaltar que, se aqui me ative a passagens que tratam da vida pessoal de Eça de Queiroz, o volume assinado por Campos Matos dedica largo espaço à análise minuciosa de aspectos da trajetória profissional do escritor — abordando suas relações com vultos como Machado de Assis, Émile Zola e Pinheiro Chagas —, havendo ainda uma seção reservada à apresentação de entrechos e recensões críticas das obras do autor de Os Maias. Eça de Queiroz: uma biografia é um livro indispensável por oferecer uma renovadora percepção do modo como o homem e o escritor são, afinal, indissociáveis, demonstrando que apenas quando se consideram as articulações entre as idiossincrasias particulares e os valores epocais é possível compreender adequadamente o sentido de qualquer produção literária.