É tempo de primaveras?

Poemas de Desalinho, de Laura Liuzi, constroem um sujeito inquieto e decidido a ocupar seu lugar no mundo
Laura Liuzzi. Foto: Felipe Lima.
08/04/2015

Desalinho, de Laura Liuzzi, reúne poemas que, por um lado, alinham-se ao rigor e à síntese na busca da palavra e seus artifícios de expressão. Por outro, manifestam o desalinho de sentimentos e de vivências de um sujeito inquieto e decidido a ocupar seu lugar no mundo. Entre a materialidade da palavra e das coisas, que servem de matéria-prima para a construção dos textos, e a imaterialidade de sentidos precários que precisam de expressão, a subjetividade do “eu” lírico se movimenta e assume a primazia.

Temas e problemas entram em cena em variedades e particulares reincidências. Assim, o corpo que escreve ganha forma no corpo de cada texto, como em Vontade: Entrar em casa…/ sem que o sofá conservasse as/ formas do meu corpo, sem que/ (…) houvesse/ corpo. Entrar em casa como/ a música entra nos ouvidos”. A vontade de arrancar do corpo suas propriedades concretas, pulverizando seu peso, sua forma, seu sentido fixo ao pé da letra, mobiliza para sentidos figurados e poéticos. No poema Margem, “o corpo não é parede nem pedra (…)/ quando dorme/ sonha com coisas concretas/ que nunca poderá tocar”. Entre as coisas concretas e as abstrações do sonho está o corpo, que com a casa se confunde como se fosse a própria casa do homem. Mais que isso: “O corpo é o cais/ e o barco e o/ mar”. Mais que a casa, local de recolhimento e segurança, ele é o cais e o barco, que lançam o sujeito à aventura das viagens, das buscas, dos rabiscos e dos riscos de naufrágios.

Em Grave a chuva em sua natureza líquida desliza para o resgate do sujeito. Enquanto chove, “O corpo afunda/ quieto, lento, vivo./ Corpo exilado em si”. Elementos da natureza, como chuva, pedra, mar, rio, céu, sol, estrelas, bruma, bichos, manhã e outros, circulam em quase todos os poemas e negociam sentidos com aquelas “coisas concretas” que povoam o cotidiano mais banal. “O tapete da sala era branco/ e peludo, parecia um bicho/ depois da ração diária”. Em Autorretrato: “Esperaremos a manhã/ o coração e eu/ e os jornais o carteiro as babás/ colocarão as coisas no lugar:/ o coração no peito/ você à distância/ os lençóis na lavanderia”.

A rotina marca presença com esses elementos que parecem estabelecer um eterno retorno do mesmo, descortinados em desejo e memória, sentimentos e pensamentos, que escapam como punhado de areia por entre os dedos. “São óculos para encaixar/ à paisagem/ violentíssima/ do pensamento”, movidos pela necessidade de, através do racional, congelar a paisagem em molduras e neutralizar o intenso, sempre intenso, fluir dos mares e rios tortuosos da afetividade. A intensidade do sentir e do pensar se misturam “quando já não se sabe se o que atravessa a cabeça/ é pensamento. Se parece uma lufada/ de vento, com uma lambida gelada do mar nos pés”.

Problema a ser discutido
A fotografia enquanto linguagem assume várias funções nos poemas, dependendo do ponto de vista em que é observada. Em princípio, parece apenas fixar a paisagem, reter o instante: “Lembra da miudeza dos cavalos-/ marinhos aos olhos incrédulos/ das crianças no aquário municipal/ com os narizes achatados contra o vidro”. Além disso, também possibilita a construção de imagens ligadas às lembranças partilhadas do sujeito com um interlocutor passivo, entretanto, necessário para o resgate de memórias de um tempo passado. “Então como se faz/ para escrever rio se o rio/ já passou?” Dessa forma, a reflexão sobre o fazer poético mais que tema é um problema a ser discutido. Embutido, aí, está o tempo, também colocado em questão.

O você, que surge em alguns poemas, não é apenas o parceiro de fatos e sentimentos vividos. Muitas vezes, esse outro só fortalece a noção da solidão, pela distância, pelo isolamento, como se fosse “…o silêncio das ilhas fixando o oceano”. É, contudo, alguém que ajuda a escrever uma história, remetendo a lembranças de um rio-tempo, quando este ainda não havia passado. Talvez sirva também de testemunha de um tempo vivido, que se foi mas precisa ser resgatado. Assim são as perdas, “Assim é a morte. A fotografia. A fumaça”.

O aspecto congelante da fotografia, associado à morte e à fumaça, contém o paradoxo do efêmero e do perene. Fixar a imagem para não perder o que já está perdido. Fixar na escrita do poema o efêmero de um tempo que se foi, mas que se pretende eternizado pela arte. Tempo e espaço ínfimos em sua transição de vida e morte, conquista e perda. Em Instante, “Existe um curto espaço/ de tempo um pequeno/ buraco negro que engole/ todas as certezas”. A fotografia é fixação de instantes, é espaço, é paisagem, mas é também retrato de sujeitos, de cidades. É escrita e é leitura de ruínas com as quais tentamos construir sentidos para a vida nos nossos guardados. “Nos retratos guardamos nossos olhos/ o vidro dos olhos do gato/ a cama ainda desfeita/ a última tempestade e o escuro que virá”. Da mesma forma, o fazer poético é artifício de sobrevivência, reciclagem das ruínas da história que ficaram para trás, mas as trazemos coladas na pele, nas cicatrizes presentes e nas que virão. “Quando escrevo me passo a limpo/ sem riscar as imperfeições.”

Em Retrato de Szymborska, por exemplo, a poeta polonesa é fixada numa imagem que ultrapassa a figura ilustre da literatura. Como na capa de um dos seus livros, o poema insinua a subjetividade de uma “moça arguta/ que sorve o mundo/ como quem sorve/ por hábito/ o café”. O retrato que congela a imagem revela, numa rápida leitura dos olhos, da postura, da fumaça do cigarro, o lado humano e simples da mulher e da poeta.

Em sua maioria, os poemas são escritos em primeira pessoa, contudo, o sujeito lírico projeta-se para além da sua individualidade no desafio do seu fazer poético. O você,  o tempo, as coisas concretas, a fotografia, as palavras, a quebra dos sentidos e da sintaxe, o desalinho da linguagem e dos encontros, a natureza, o rio, a rua, as cidades são parceiros nessa empreitada.

A memória inserida no tempo precisa de espaço. “Quero recuperar a lembrança/ do toque, e isso não consigo”. Em O amor está nas maçanetas, é no objeto presente, frio, que atravessa o tempo, que talvez possa sobreviver o calor do toque, enquanto forma de desejo.

No poema Fio sem fim, dedicado a Armando Freitas Filho, a esperança desse resgate caminha por um fio: “(…) Um fio fino frágil/ mas firme, da mesma fibra rio/ conduz memória e história: storage”. O fio que costura essas memórias do sujeito, constrói suas histórias de vida e da própria literatura, como os muitos cantos de galo do poema de João Cabral constroem a manhã. Afinal, é preciso que a memória coletiva tenha sustentação a partir de alguma continuidade, mesmo frágil, entre mestres passados e presentes e aprendizes que se arrisquem a tecer, com o armazenamento de ruínas e reminiscências, a renovação do sol que se levanta toda manhã. É o mesmo fio fino, frágil, firme, fibra que se estende e se torna texto na poesia nossa de cada dia.

Dessa dicção poética fica, portanto, a pergunta como Promessa, não apenas de renovação das relações afetivas, mas da própria arte, da própria vida. “Mas e se disser que é tempo/ de inverter as ruínas, como sucede/ aos braços esqueléticos das árvores/ a floração vivíssima das primaveras?”

Desalinho
Laura Liuzzi
Cosac Naify
96 págs.
Laura Liuzzi
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1985. Seu primeiro livro de poesia, Calcanhar (7Letras), foi publicado em 2010. Desalinho é o seu segundo livro.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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