Desalinho, de Laura Liuzzi, reúne poemas que, por um lado, alinham-se ao rigor e à síntese na busca da palavra e seus artifícios de expressão. Por outro, manifestam o desalinho de sentimentos e de vivências de um sujeito inquieto e decidido a ocupar seu lugar no mundo. Entre a materialidade da palavra e das coisas, que servem de matéria-prima para a construção dos textos, e a imaterialidade de sentidos precários que precisam de expressão, a subjetividade do “eu” lírico se movimenta e assume a primazia.
Temas e problemas entram em cena em variedades e particulares reincidências. Assim, o corpo que escreve ganha forma no corpo de cada texto, como em Vontade: Entrar em casa…/ sem que o sofá conservasse as/ formas do meu corpo, sem que/ (…) houvesse/ corpo. Entrar em casa como/ a música entra nos ouvidos”. A vontade de arrancar do corpo suas propriedades concretas, pulverizando seu peso, sua forma, seu sentido fixo ao pé da letra, mobiliza para sentidos figurados e poéticos. No poema Margem, “o corpo não é parede nem pedra (…)/ quando dorme/ sonha com coisas concretas/ que nunca poderá tocar”. Entre as coisas concretas e as abstrações do sonho está o corpo, que com a casa se confunde como se fosse a própria casa do homem. Mais que isso: “O corpo é o cais/ e o barco e o/ mar”. Mais que a casa, local de recolhimento e segurança, ele é o cais e o barco, que lançam o sujeito à aventura das viagens, das buscas, dos rabiscos e dos riscos de naufrágios.
Em Grave a chuva em sua natureza líquida desliza para o resgate do sujeito. Enquanto chove, “O corpo afunda/ quieto, lento, vivo./ Corpo exilado em si”. Elementos da natureza, como chuva, pedra, mar, rio, céu, sol, estrelas, bruma, bichos, manhã e outros, circulam em quase todos os poemas e negociam sentidos com aquelas “coisas concretas” que povoam o cotidiano mais banal. “O tapete da sala era branco/ e peludo, parecia um bicho/ depois da ração diária”. Em Autorretrato: “Esperaremos a manhã/ o coração e eu/ e os jornais o carteiro as babás/ colocarão as coisas no lugar:/ o coração no peito/ você à distância/ os lençóis na lavanderia”.
A rotina marca presença com esses elementos que parecem estabelecer um eterno retorno do mesmo, descortinados em desejo e memória, sentimentos e pensamentos, que escapam como punhado de areia por entre os dedos. “São óculos para encaixar/ à paisagem/ violentíssima/ do pensamento”, movidos pela necessidade de, através do racional, congelar a paisagem em molduras e neutralizar o intenso, sempre intenso, fluir dos mares e rios tortuosos da afetividade. A intensidade do sentir e do pensar se misturam “quando já não se sabe se o que atravessa a cabeça/ é pensamento. Se parece uma lufada/ de vento, com uma lambida gelada do mar nos pés”.
Problema a ser discutido
A fotografia enquanto linguagem assume várias funções nos poemas, dependendo do ponto de vista em que é observada. Em princípio, parece apenas fixar a paisagem, reter o instante: “Lembra da miudeza dos cavalos-/ marinhos aos olhos incrédulos/ das crianças no aquário municipal/ com os narizes achatados contra o vidro”. Além disso, também possibilita a construção de imagens ligadas às lembranças partilhadas do sujeito com um interlocutor passivo, entretanto, necessário para o resgate de memórias de um tempo passado. “Então como se faz/ para escrever rio se o rio/ já passou?” Dessa forma, a reflexão sobre o fazer poético mais que tema é um problema a ser discutido. Embutido, aí, está o tempo, também colocado em questão.
O você, que surge em alguns poemas, não é apenas o parceiro de fatos e sentimentos vividos. Muitas vezes, esse outro só fortalece a noção da solidão, pela distância, pelo isolamento, como se fosse “…o silêncio das ilhas fixando o oceano”. É, contudo, alguém que ajuda a escrever uma história, remetendo a lembranças de um rio-tempo, quando este ainda não havia passado. Talvez sirva também de testemunha de um tempo vivido, que se foi mas precisa ser resgatado. Assim são as perdas, “Assim é a morte. A fotografia. A fumaça”.
O aspecto congelante da fotografia, associado à morte e à fumaça, contém o paradoxo do efêmero e do perene. Fixar a imagem para não perder o que já está perdido. Fixar na escrita do poema o efêmero de um tempo que se foi, mas que se pretende eternizado pela arte. Tempo e espaço ínfimos em sua transição de vida e morte, conquista e perda. Em Instante, “Existe um curto espaço/ de tempo um pequeno/ buraco negro que engole/ todas as certezas”. A fotografia é fixação de instantes, é espaço, é paisagem, mas é também retrato de sujeitos, de cidades. É escrita e é leitura de ruínas com as quais tentamos construir sentidos para a vida nos nossos guardados. “Nos retratos guardamos nossos olhos/ o vidro dos olhos do gato/ a cama ainda desfeita/ a última tempestade e o escuro que virá”. Da mesma forma, o fazer poético é artifício de sobrevivência, reciclagem das ruínas da história que ficaram para trás, mas as trazemos coladas na pele, nas cicatrizes presentes e nas que virão. “Quando escrevo me passo a limpo/ sem riscar as imperfeições.”
Em Retrato de Szymborska, por exemplo, a poeta polonesa é fixada numa imagem que ultrapassa a figura ilustre da literatura. Como na capa de um dos seus livros, o poema insinua a subjetividade de uma “moça arguta/ que sorve o mundo/ como quem sorve/ por hábito/ o café”. O retrato que congela a imagem revela, numa rápida leitura dos olhos, da postura, da fumaça do cigarro, o lado humano e simples da mulher e da poeta.
Em sua maioria, os poemas são escritos em primeira pessoa, contudo, o sujeito lírico projeta-se para além da sua individualidade no desafio do seu fazer poético. O você, o tempo, as coisas concretas, a fotografia, as palavras, a quebra dos sentidos e da sintaxe, o desalinho da linguagem e dos encontros, a natureza, o rio, a rua, as cidades são parceiros nessa empreitada.
A memória inserida no tempo precisa de espaço. “Quero recuperar a lembrança/ do toque, e isso não consigo”. Em O amor está nas maçanetas, é no objeto presente, frio, que atravessa o tempo, que talvez possa sobreviver o calor do toque, enquanto forma de desejo.
No poema Fio sem fim, dedicado a Armando Freitas Filho, a esperança desse resgate caminha por um fio: “(…) Um fio fino frágil/ mas firme, da mesma fibra rio/ conduz memória e história: storage”. O fio que costura essas memórias do sujeito, constrói suas histórias de vida e da própria literatura, como os muitos cantos de galo do poema de João Cabral constroem a manhã. Afinal, é preciso que a memória coletiva tenha sustentação a partir de alguma continuidade, mesmo frágil, entre mestres passados e presentes e aprendizes que se arrisquem a tecer, com o armazenamento de ruínas e reminiscências, a renovação do sol que se levanta toda manhã. É o mesmo fio fino, frágil, firme, fibra que se estende e se torna texto na poesia nossa de cada dia.
Dessa dicção poética fica, portanto, a pergunta como Promessa, não apenas de renovação das relações afetivas, mas da própria arte, da própria vida. “Mas e se disser que é tempo/ de inverter as ruínas, como sucede/ aos braços esqueléticos das árvores/ a floração vivíssima das primaveras?”