Desde que comecei a observar e estudar atentamente o mercado de literatura infantil e juvenil brasileira, em 1990, tenho visto como o mercado editorial nessa área é suscetível aos reveses dos planos econômicos. Em primeiro lugar porque é um mercado que vive atrelado ao de livros didáticos e este funciona em uma relação de total interdependência com o governo. Se o governo compra livros, as editoras vivem tempos prósperos, se o governo questiona valores educativos e breca compras, as grandes editoras perdem fôlego e investem somente em reedições de autores consagrados e traduções de clássicos. As de médio porte diminuem sua produção e as pequenas estacionam perto da falência à espera de tempos melhores. E o mercado de livros infantis e juvenis é uma pequena ilha nesse arquipélago dos didáticos e vive atrelado à compra dos chamados livros paradidáticos. Se o governo não faz compras, apesar de ter verbas anuais destinadas a isso, simplesmente por questões ideológicas, como foi o caso do governo Pitta em São Paulo, as editoras ficam a ver navios mesmo anos a fio.
Mas, entre marés altas, baixas ou pequenos maremotos, o mercado de literatura infantil e juvenil até 1995 apresentava um perfil relativamente estável, composto por grandes, médias e pequenas editoras. Publicava entre 450 a 600 títulos nos anos de recessão e 600 a 850 em anos de bonança. As editoras grandes que publicavam em média 40 títulos por ano eram: Ática, FTD, Melhoramentos e Moderna. As de porte médio publicavam 20 títulos por ano, como a Atual, Ediouro, Formato, Lê, Paulinas, Saraiva e Scipione. E as editoras pequenas, mas muito pequenas mesmo, cujos novos títulos eram esporádicos, traziam inovação para o mercado, em termos de forma e conteúdo: Agir, Augustus, Berlindis & Vertecchia, Braga, Brinque-Book, Callis, Cia. das Letrinhas, Compor, Dimensão, Global, Miguilim, Nova Fronteira, Paulus, Projeto, RHJ, Salamandra, Santuário/Vale livros e Studio Nobel.
Nessa toada, a literatura infanto-juvenil conseguiu viver bons momentos. Esse mercado voltado para leitores na fase de formação educacional e cultural conseguiu, pouco a pouco, construir uma identidade cultural brasileira. Um país como o Brasil, feito de disparidades, destacando-se por sua tecnologia de ponta como na produção de aviões e pesquisadores de reconhecimento internacional e por outro lado, aparece listado junto a países da África e Ásia por altos índices de fome e analfabetismo, desrespeito aos direitos humanos e recursos naturais. Apesar disso, o Brasil sempre conseguiu alimentar sua identidade cultural por meio da literatura e das artes em geral. E a literatura infantil e juvenil brasileira se inclui e tem papel muito importante na reflexão sobre a identidade brasileira, uma vez que está lidando com a criação de personagens em situações das mais frugais, inusitadas ou polêmicas, em gêneros como o policial, a aventura, o suspense, o terror, romance e a autobiografia, todos eles transpirando seus valores de diversidade étnica e cultural. Todos dedicados a um público em formação e que serão os adultos de amanhã. Essa constatação traz implícita uma grande responsabilidade dos profissionais envolvidos nesse processo. Laura Sandroni já dizia da noção de criança que Lobato semeou em sua obra, é de uma criança questionadora e autocrítica que pudesse colaborar com o crescimento de seu país. Noção que ganha uma visão ampliada em termos ideológicos no trabalho de pesquisa de José Roberto Whitaker Penteado, que prova que a ideologia contida nos livros de literatura de Lobato foram contribuição decisiva na formação de toda uma geração que ele nomeia de “filhos de Lobato” (Os filhos de Lobato, Dunya), geração que incluí nomes como os de Ana Maria Machado, Sylvia Orthof e Ziraldo.
Na toada do escritor
Vamos relembrar um ponto fundamental de sua história: seu famoso “boom” se deu justamente na época em que foi sancionada lei nos anos 70 que obrigava a leitura de autores nacionais nas escolas. Uma lei que poderia ter aproximado da literatura infantil autores reacionários, resultou em uma curiosa atração de autores politizados, que sem possibilidade de criticar as relações opressivas, cheias de preconceitos e ignorância impostas pela ditadura no Brasil, encontraram na literatura infantil uma forma de questionar e achar soluções que favorecessem uma vida democrática, em que as diferenças educacionais, sociais e culturais fossem respeitadas, em que todos tivessem voz e expressão.
Foi nessa composição que surgiram os nomes de Ana Maria Machado, João Carlos Marinho, Ruth Rocha, Ziraldo, Joel Rufino dos Santos, Sônia Robatto e outros. Nomes que encontraram acolhida no esteio da literatura de Lobato e que criaram o ninho para todo um mercado que melhorou ainda mais nos anos 80 com Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, Ricardo Azevedo, Ciça Fittipaldi, Eva Furnari e tantos outros. Mais uma vez a utopia de uma vida democrática foi criada na literatura como uma antevisão do que a nossa sociedade civil hoje vivencia em diversas áreas e momentos. Finalmente, vivemos um governo democrático em processo de maturação. Bonito isso! Lygia Bojunga Nunes foi contemplada com a medalha do Andersen no começo dos anos 80, o maior reconhecimento mundial para um escritor de literatura infantil e juvenil. Duas décadas mais tarde, Ana Maria Machado também recebe esse reconhecimento. Isso significa que a fertilidade do texto literário nessa área tem semeado novas e ricas expressões, questionadoras em essência, sintonizadas com as questões existenciais e sociais das novas gerações de crianças, pré-adolescentes e adolescentes por 18 anos, o que é maravilhoso.
E o reconhecimento internacional, por um acaso, só tem nos dado alegrias e causado orgulho!? Ledo engano. Ana Maria Machado e alguns outros escritores de literatura infantil e juvenil sabem distinguir muito bem o que é o reconhecimento internacional e que sua importância só acontecerá realmente quando as boas traduções de nossas obras clássicas forem acolhidas no exterior. Ana Maria disse isso no seu belíssimo discurso da entrega do Prêmio Andersen, o que merece uma reflexão de todos nós porque todos reconhecemos que isso realmente não acontece. Quem é que encontra Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo ou mesmo Lobato traduzidos no exterior que não seja na língua espanhola? Ninguém. Qual deles adentrou o mercado de literatura alemã, francesa, inglesa, americana, italiana ou japonesa? Nenhum. Esse fato só serve para reforçar a afirmação de que os países colonizadores e independentes vêem com desprezo os países da América Latina mesmo. Uma questão cultural coberta de preconceito que não consegue ser superada nem mesmo pela excelência de qualidade dos autores, que se reflete no mercado editorial mundial e que é praticamente ignorada pelo corpo diplomático brasileiro no exterior, que poderia se empenhar em diminuir esses disparates.
Os editores brasileiros interessados vão a Bologna todos os anos em busca de negociar títulos e tudo que conseguem é voltar com muitas propostas de lá para cá, mas quase nenhuma de cá para lá. É realmente curioso esse fato. A Itália é de uma pobreza enorme na área de livros infantis e nem por isso demonstra interesse pela nossa literatura. Sua produção de livros infantis, em sua maioria, é bem no estilo banca de jornal, ou seja, péssimas adaptações de clássicos, que não exigem pagamento de direitos autorais, ilustrações elaboradas por amadores e que são bem baratas e papel da pior qualidade ou livros cartonados de letras douradas escritos por escritores desconhecidos que escrevem apenas textos referenciais ou informativos, com exceção da rica e divertida produção de Gianni Rodari. O excelente escritor de livros infanto-juvenis alemão Michael Ende tem por volta de dez títulos traduzidos no Brasil hoje e nós não temos um autor brasileiro com dez títulos traduzidos lá. Estou afirmando isso baseada nas informações colhidas na Biblioteca Internacional de Munique, em entrevista com senhor Weber, que coordena a área de literatura Ibero-americana de lá, um centro de referência fundamental para editores de toda Europa. Em agosto de 1995, ele disse que desses 30 anos de produção brasileira havia somente três títulos de Ana Maria Machado traduzidos lá: Bisa Bia Bisa Bel pela Dressler, Era uma vez um tirano pela Lamuv e Por que o golfinho deu cambalhotas e outras histórias pela Ravensburg. Lygia Bojunga Nunes publicou Os colegas pela Dressler e Paulo Rangel com Assassinato na floresta foi publicado pela Hammer (essas informações estão na Revista Releitura de junho de 1997).
O desafino da toada
Mil novecentos e noventa e cinco foi um ano divisor de águas, de águas límpidas para águas barrentas e lodosas. De lá para cá, o fenômeno de uma globalização prematura, com a selvageria das editoras em busca de lucros maiores tem levado o mercado brasileiro a acolher uma quantidade cada vez mais maciça de títulos estrangeiros escolhidos pelo baixo preço em detrimento de sua qualidade, sem a preocupação se o texto vai ou não promover um diálogo com a nossa cultura. Um fenômeno absurdo foi o que aconteceu com o Brasil, quando homenageado na Feira de livros infantis de Bologna, Itália. Foi aí que aconteceu o inesperado: os editores europeus, sem possibilidade de expandir seu saturado mercado livreiro, ofereceram sua produção a editores brasileiros. E de lá para cá o mercado está cada vez mais encharcado de obras estrangeiras. Com o fenômeno Harry Potter então, essa questão está se tornando mais perigosa ainda. Todo editor pequeno vê os best sellers de literatura infantil e juvenil no exterior como possibilidade de um ganho extraordinário. Comprar um título estrangeiro é quase como fazer uma fé na mega-sena.
E mais, um grande número de donos de gráficas resolveu investir na produção de livros para infância e adolescência, visando as licitações públicas. Com isso, o mercado está pondo nas livrarias livros mal-elaborados graficamente, de conteúdo fraco em dissonância com o mercado existente, visando sua entrada em uma lista de compras de algum governo, cujo montante resulta em um valor exorbitante frente ao investimento feito. A Fnac tem dado destaque a eles, mesclando-os aos livros de boas editoras. São gráficas que contam com conselhos de “corredor” porque não criam uma estrutura de departamento editorial ou mesmo de distribuição, porque seu único objetivo é “aparecer” nas livrarias e lucrar com a compra de alguma prefeitura, ou seja, “ganhar na loteria”, já que o investimento é baixo e a ambição por lucros é alta. O imediatismo e a falsa ilusão estão dominando esse mercado de profissionais inexperientes na área de publicação de literatura infantil e juvenil. E isso é grave, pode comprometer junto ao público a boa imagem que a literatura infantil brasileira luta por manter e que envolve o trabalho de profissionais sérios dedicados por mais de três décadas. Mas paralelamente a isso, ainda há editoras que valorizam a produção de nossos escritores e ilustradores como a Agir, Atual, Cia. das Letrinhas, Callis, Berlindis & Vertecchia, DCL, Formato, Mercúrio-Jovem, Miguilim, Moderna, Paulinas, Salamandra e Studio Nobel que esperamos garantam a expressão e difusão da boa literatura infantil e juvenil.
E no refletir sobre toda essa nova e triste realidade é fundamental e necessário que essa área de livros que perdura 30 anos amadureça em suas reflexões teóricas, torne-se mais séria e comprometida em termos de produção, mercado e atuação política por meio de encontros, discussões e ações conjuntas. É preciso apontar para o lado perverso e ingênuo da nossa democracia, que foi o de abrir-se totalmente e sem critérios aos efeitos da globalização, permitindo a entrada de uma enxurrada de textos sem que essa seja uma negociação de duas mãos e sim de mão única. É na verdade quase uma tentativa de afogamento da produção de autores e ilustradores brasileiros construída com muita luta e esforço conjunto. Aí paro para me perguntar se na verdade precisamos ainda de um decreto que valorize a expressão da cultura brasileira na figura do escritor e a resposta infelizmente parece ser que sim, porque nessa área o processo democrático tem sido muito lento. É ingênuo achar que o mercado literário brasileiro está pronto para entrar na era da globalização. Se o mercado literário ainda funciona extremamente atrelado ao processo industrial dos tempos da Revolução Industrial inglesa do final do século 18, se ele é ainda totalmente voltado ao mercado das escolas e dá as costas à mídia de qualquer tipo, se ele é indiferente à criação de um mercado livreiro de porte e mesmo de uma política séria e responsável de criação de uma rede de bibliotecas pelo país — que é o que mantém os editores contentes e satisfeitos com a relação entre investimento e lucro em boa parte do mundo —, é claro que não está preparado para lidar com o fenômeno da globalização. E será que a responsabilidade é totalmente dele ou da falta de uma política governamental que saiba criar um diálogo mais maduro com as editoras, escritores, teóricos e educadores? Fica aí a questão. Se os Parâmetros Curriculares Nacionais apresentam uma forte preocupação com os temas transversais, que dizem da importância das discussões em torno da identidade e alteridade culturais, de questões como o consumo e o sistema capitalista, soa muito dissonante que as crianças e adolescentes brasileiros reflitam sobre tudo isso debruçados na leitura de escritores estrangeiros, não é mesmo?
Enfim, só espero que essa reflexão não esteja em sintonia com o Coelho da Alice, e que seja tarde, muito tarde para pensar na importância da identidade da nossa literatura e de sua importância junto às nossas crianças, pré-adolescentes e adolescentes de hoje e de amanhã.