O marketing é a melhor e a pior invenção americana do século passado. É a melhor porque possibilita um planejamento eficaz para se vender qualquer coisa, ou qualquer idéia. É a pior porque nem tudo que o marketing vende presta, mas que vende, vende. O autor Aleksandar Hemon nasceu na Bósnia, mas caiu como luva para um planejamento de marketing no estilo que os americanos gostam. Jovem, bonitão, foi passar férias nos States e não quis mais voltar para casa por causa da guerra civil que assolou Sarajevo. Em três anos, começou a escrever em inglês, apesar de alegar ter chegado nos Estados Unidos falando apenas o básico (and pigs fly!). Enquadrou-se perfeitamente no perfil do coitadinho brilhante. Casou-se com uma americana, também bonita, claro, e editora (coincidência!). Oito anos após a imigração, lançou um livro de contos.
Foi o que bastou para começarem as comparações absurdas. Acreditem, tem gente, na cara dura, comparando-o a Nabokov. Até imagino a reunião para lançá-lo no mercado. “Um autor do leste europeu, escrevendo em inglês. Viva, temos um novo Nabokov. Viva!”, diz um gerente com MBA em marketing. É. Pena que esqueceram do mais importante, o talento. Ser do leste europeu e escrever em inglês são apenas detalhes na vida de Nabokov. O mais relevante é que ele foi um escritor genial, de talento incomparável, um dos maiores, se não o maior do século passado.
Já o jovem Hemon, como escritor, não passa de um aprendiz de cronista. Seu livro de estréia, E o Bruno?, começa errando pelo título (no original, The question of Bruno). Sem graça e pouco importante na obra, Bruno é apenas uma passagem corriqueira de um dos contos. Mas as falhas do livro vão muito além do título. A primeira delas é que a sensibilidade que Hemon busca passar sobre a guerra civil que destruía sua cidade é mais para americano ler. Não que seja inexistente nos textos, mas é abstrata, distante, até porque o autor ficou nos Estados Unidos justamente para escapar das agruras na Bósnia. E se for para glorificar um novo autor e um livro sobre as atrocidades de guerra em seu país, que este autor seja Atiq Rahimi e seu ótimo Terra e cinzas (Estação Liberdade, 2002), em que uma família é dizimada pela bomba, restando avô e o neto que fica surdo por causa da explosão. Só que Rahimi é afegão, pequeno detalhe que derruba qualquer estratégia para ser lançado com sucesso nos Estados Unidos.
E o Bruno? é uma salada de contos sem sustentação, de um bósnio em crise de identidade tentando ser engraçado e sensível como… um americano. Assim, Hemon é capaz de escrever algumas bobagens de fazer Paulo Coelho morrer de inveja. No conto Vida e obra de Alphonse Kauders, Hemon digita pérolas como “Alphonse Kauders era virgem no horóscopo. Mas somente no horóscopo”. Compreende-se que deve ser emocionante construir frases em inglês quando se está aprendendo esta língua, mas daí a publicá-las em livro é, digamos, inocência ou presunção.
Assim como é ingenuidade acreditar que uma história de imigração para os Estados Unidos nos anos 90 seja uma coisa muito fantástica. Em O cego Jozef Pronek & as almas do além, Hemon faz uma autobiografia disfarçada, na qual tenta transformar sua vida na América em aventura. Mas, convenhamos, não há muito a acrescentar no curso da história sobre o processo de mudar-se e iniciar uma nova vida nos Estados Unidos, que o digam milhares de valadarenses. Então, por mais que Hemon se ache um desbravador, é difícil perceber as dificuldades que ele quer mostrar em sua imigração e no primeiro emprego americano, numa padaria-lanchonete. Por experiência própria, posso garantir que é uma situação mais tranqüila e confortável que a que vivem muitos brasileiros de classe média, aqui mesmo no Brasil.
Como Jozef Pronek, novamente Hemon cai no besteirol. Quando vai a Washington, diante da sede do governo federal, pergunta por que a chamam de Casa Branca. “A pessoa tem de ser branca para ocupá-la?”. O trocadilho antipreconceito é de fazer hiena chorar.
E neste capítulo americano vamos dar um puxão de orelhas na tradução. No caso de Hemon, não basta aprender um pouco de inglês para virar autor nesta língua. O mesmo se pode dizer para muitos tradutores. Se hat é chapéu, baseball hat não é chapéu de beisebol nem necessariamente boné de beisebol, mas, simplesmente, boné. Então, quando alguém usa um baseball hat escrito Saints, é apenas um boné do Saints, não um “boné de beisebol em que se lia Saints” (página 143). Até porque o Saints é um time de futebol americano. Desculpem a picuinha, mas em outro livro, recentemente, outro tradutor escreveu “boné de beisebol do Knicks”, quando Knicks é o time de basquete de Nova Iorque.
Hemon não é um caso perdido. Em Uma moeda, ele mostra que é um bom aprendiz de cronista. Traz relatos interessantes sobre os franco-atiradores que aterrorizam Sarajevo. O drama que não existe na vida de Jozef Pronek nos Estados Unidos está todo na morte da tia Fátima, que apodrece no quarto porque a guerra não permite que a família possa enterrá-la. Até que o cheiro fica insuportável e resolvem jogar o corpo pela janela. Mas, mesmo sendo um bom conto, Uma moeda também tem muito em primeira pessoa. Este é o grande defeito de Hemon. Ele se acha mais importante que o que escreve, invade muito as histórias, quando sua biografia é incipiente e desinteressante.
Há salvação para Hemon. Ele é jovem e se encheu de grana com esse embuste literário que é E o Bruno?. Ainda dá para investir na carreira. A primeira coisa a fazer é nunca mais colocar a própria foto na capa e contracapa do livro, por mais que seu gerente de marketing insista. A segunda é reler Nabokov. Não apenas as obras, mas também a biografia. Antes do clássico Lolita, Nabokov já tinha trilhado um sólido caminho literário. Escrever em inglês foi apenas conseqüência disso. Antes de mudar-se para os Estados Unidos, em 1940, o escritor russo havia se formado em literatura na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Antes de escrever em inglês, Nabokov teve experiências bem-sucedidas em sua língua natal. O lançamento Detalhes de um pôr-do-sol é um exemplo disso. São treze contos escritos por Nabokov entre 1924 e 1935, quando morava na Alemanha, exilado depois que sua família perdeu a fortuna com a Revolução Russa.
Expatriados na juventude, esta é a única comparação que se pode permitir entre Nabokov e Aleksandar Hemon. Sempre sobrou ao primeiro o talento que ainda não floresceu no segundo. É pena que o estrondoso e merecido sucesso de Lolita tenha até ofuscado o restante da obra de Nabokov. Sua caudalosa imaginação já era marcante em suas primeiras narrativas, que penetram fundo na alma, como na maioria dos contos de Detalhes…
A dor, a perda e a morte estão sempre presentes, assim como os sonhos da infância, a felicidade e a falta dela. Além da construção impecável, o grande mérito do texto de Nabokov é que ele transmite toda a sensibilidade possível, mas mantém o autor a distância. Nabokov apenas revela, não julga. Se o leitor quiser, que o faça. Nabokov não dá resultados, apenas apresenta os dados e a fórmula. O leitor, se desejar, que resolva a equação, ou fique com a incógnita de mesmo valor. Aí reside a magia da literatura de Nabokov (quem sabe da literatura).
Em A campainha da porta, um filho vai ao reencontro da mãe depois de sete anos. (“Beijava-a às cegas, no rosto, nos cabelos, por toda parte, sem enxergar nada no escuro mas, com uma espécie de visão interior, reconhecendo-a por inteiro da cabeça aos pés, e uma única coisa havia mudado nela: o cheiro forte e elegante de perfume.”)
Mas o filho chega sem avisar e encontra uma mesa posta (“dois cálices de vinho e um bolo cor-de-rosa com 25 velinhas, três a menos que a idade dele”). A mãe viúva tem um comportamento estranho. Não atende e não o deixa atender a porta quando alguém bate. Depois disso, o encontro é nervoso e pouco dura. O filho parte, e o conto acaba: “E, tão pronto a porta se fechou a suas costas, ela voou para o telefone no farfalhante vestido azul”).
Se Lolita é pura arte, o ápice de um escritor clássico e universal, Detalhes… é uma obra fundamental para se tentar entender a genialidade de Nabokov. São contos do mais puro lirismo melancólico. A melancolia de uma Rússia que fica para trás, embalsamada pela revolução. Até parece que Nabokov sabia que nunca mais voltaria, que partira para ser cidadão do mundo por meio da literatura. Tratou de pagar logo no início da carreira uma dívida cultural com a pátria, como para que tirar dos ombros o fardo de ser russo, quando a única guerra fria conhecida no mundo era a de bolas de neve.
Mesmo melancólico, em Detalhes… Nabokov não deixa de lado o humor aparente, mas clássico (muito diferente de ser apenas engraçadinho). Em Um mau dia, um cavalo defecando é descrito com a mais profunda seriedade, que até parece um ato solene: “De tempos em tempos, um dos cavalos erguia ligeiramente a cauda e, sob sua tensa raiz, um bulbo de carne se intumescia, expelindo uma pelota fulva, depois outra, e outra mais, após o que as dobras de pele escura voltavam a se fechar e a cauda era abaixada.”
Já em E o Bruno?, Hemon conta que muitas pessoas morriam na Bósnia por causa da disenteria. Ele descreve isso em As ilhas: “Morriam de tanto cagar”. Pode até ser engraçado para um público que gosta de beisebol, mas no mundo da verdadeira literatura é pouco, e muito pobre. A verdadeira questão de Bruno é: onde está o talento? Em Vladimir Nabokov, está até nas pelotas fulvas do cavalo.