“Um linha por dia” — esse é o pedido de uma professora para uma criança durante as férias, mas que parece possível para qualquer pessoa adulta que deseja ou precisa escrever. Apenas uma linha por dia: aos poucos e com insistência. Há uma recomendação, mas é verão, começavam as férias. O menino vive. E então registra como num microconto o que lhe aconteceu naquele dia. Só nessa prática, inúmeras perguntas. Por que escolher aquele fato e não nenhum outro? “Hoje eu vi um pica-pau” ou “Meu irmão ficou doente” ou “Duas tempestades caíram sobre a cidade”. Se tivéssemos que escolher uma frase para contar de cada dia, o que escolheríamos narrar?
O menino segue as instruções, não quer correr o risco de repetir de ano. Era 1939, véspera da Segunda Guerra Mundial, logo antes da invasão alemã à Polônia, mas o menino não sabia disso. Talvez alguma figura de autoridade lhe obrigasse a escrever e manter sua constância de escrita? Ou há também desejo nesse menino que escreve, de julho a setembro, com todo o esforço para que sua letra coubesse entre as duas rígidas linhas dos cadernos de caligrafia e que seu dia — a vida? — coubesse numa única frase? Um caderno que seria guardado dentro de uma pasta vermelha com o nome “Michał” na frente e que seria recuperado sob os escombros da guerra, pela mãe, que volta à casa em ruínas. Muitos anos depois, após a morte da mãe, o já adulto Michał Skibiński é surpreendido pela pasta com o caderno e outros documentos. Não sabia que a mãe o tinha guardado. Mesmo assim, ainda se passaram alguns outros anos até que seu sobrinho, finalmente, percebesse o valor daquelas palavras e direcionasse o material para publicação. Oitenta anos depois o diário do menino virou livro.
Michael estava documentando sua vida. E por mais que literatura não seja documento, hoje sabemos que documentos podem se tornar literatura. Talvez qualquer ato de deixar nosso rastro por meio da escrita possa se tornar literatura? Porque a vida de um jeito ou de outro consegue se apresentar e trazer seus inesperados para a linguagem. Eu compartilho do desejo da ilustradora, Ala Bankroft, de que Hoje eu vi um pica-pau, obra original polonesa, traduzida para diversos países, não seja um livro de guerra. Por mais que eu escreva essa resenha no dia 13 de junho com as notícias dos bombardeios entre Irã e Israel como pano de fundo da minha cena de escrita. Por mais que a guerra seja o que invade o diário do menino, como a vida em sua forma mais impetuosa e violenta pode ser.
Escolho prestar atenção no menino. As imagens em torno de uma criança que escreve sempre me prendem, convidam a me demorar. Hoje eu vi um pica-pau é um livro que me atraiu porque eu queria saber o que um menino escreveu. Aproximo-me de livros como esse como quem procura um segredo, um tesouro. Meu pensamento divaga. Como seria se o adjetivo infantil pudesse ser usado sem medo, porque já não o entendemos de forma pejorativa ou menor? E se esse adjetivo usado para marcar um tipo específico de literatura indicasse não só os leitores e a linguagem, mas também as autorias? Como seria uma literatura feita por crianças?
O menino Michał teve suas parcerias. A professora incentivou, a mãe conservou. O sobrinho percebeu. Os agentes da edição tornaram o arquivo literatura. Hoje eu vi um pica-pau é um livro da categoria dos corajosos. A quantidade de páginas é de um livro infantojuvenil, mas trata-se de um livro ilustrado. Cada dupla traz apenas uma frase do diário, e o ritmo trazido por essa escolha ratifica a cada passar de páginas o caráter constante e recorrente dos diários. O fac-símile das páginas do caderno se intercala às duplas ilustradas e nos lembra o tempo todo do menino e sua escrita. As ilustrações são dos vazios que o menino vê, nós nunca o vemos. As pistas são poucas, parecem pinturas que ampliam o que não sabemos.
Não sabemos, por exemplo, o que poderia fazer um menino diante da guerra lembrar de ir até seu caderno para escrever “Voaram estilhaços sobre nossa casa”. É curioso pensar como justamente nessa emergência suas palavras perdem certo tom de objetividade que tiveram até então. O menino demonstra seu orgulho, sua filiação a uma comunidade e o desejo de ter esperança. Sua voz é a de sua gente: “Varsóvia continua a se defender com valentia”. É também em outra frase — a frase final retirada pela edição original por não ser compatível com os fatos históricos — que o menino encontra nova possibilidade para o desenho da letra no papel. Ela usa seu diário para fabular uma vitória. Nesse final retirado, o menino desobedece a professora, as regras dos diários e o peso da vida. O menino faz literatura.