E assim surge um grande contista

Resenha do livro "Violências", de Igor Galante
01/11/2007

E da avalanche de lançamentos, Violências, de Igor Galante, se embrenha por veredas inacreditáveis e pára em pé. Seis contos que aliam habilmente forma e conteúdo. Narrativas que irradiam aquilo que outros podem definir como cheiro de arte ou clima de obra-prima. Os seis textos ficcionais de Galante podem transportar o leitor para o mesmo universo de prazer estético que é deflagrado diante de um filme como Mais estranho que a ficção ou de um álbum como Tambong, de Vitor Ramil, ou ainda para o espaço-lugar-paraíso que somente a leitura de um excelente livro leva.

As narrativas articulam como há abismos intransponíveis entre seres próximos, mesmo para quem vive numa mesma casa, como os dois personagens do conto O velho e o menino. Abismos e segredos afastarão irreversível e irremediavelmente os dois sujeitos já separados por anos de gerações e “de repente uma palpitação no peito cálido do menino. Um princípio de ventania, que fez vibrar portas e janelas. E um cheiro terrível de terra no ar”. Não apenas abismos. As narrações de Galante contêm omissões e elipses. O autor leva em consideração a presença e participação mais do que ativa de nós leitores: nesta proposta ficcional, o leitor se faz necessário, se faz co-autor.

E se todo livro existe devido à presença do leitor, em Violências essa cumplicidade precisa necessariamente existir, sobretudo num conto como Noite de chegada ou partida (fragmentos). Há uma família e muitos silêncios. O não-dito ecoa. Também em quem lê. Sobretudo em quem relê. Cenas de um cotidiano fraturado. Muito separa os personagens do início até a derradeira imagem: “De frente para o espelho, enxugada em robe de seda, Heloísa se olha. Tudo o que ela precisa agora está na bolsa. Heloísa se olha. Uma imagem embaçada de si mesma, que ela encerra com um sorriso”.

Já em O reencontro é a passagem do tempo — e ilusões, vertigens e delírios — a separar Chico e Celi. Se encontraram durante a faculdade. Algo os aproximou, aproximava. Muito os separava, separou. “E Chico entendeu que qualquer tentativa de torná-la sua amante destruiria o que havia entre eles, aquilo para o qual não havia nome”. E um encontro marcado para anos depois com expectativas se tornará frustração sem cura, ele pronto pra ela, ela com marido e filhos: “Ela ainda o convidou para jantar, no que ele recusou, polido. Não trocaram telefone, endereço, nem acenaram com a chance de um novo encontro. Trocaram sim um último olhar, um triste olhar. Chico virou as costas e foi até o carro. Teria pela frente oito horas de estradas dentro da noite escura”.

Pontuar Violências como livro de estréia e usar um adjetivo como promissor seria diminuir esta realização literária — mas é fato. Igor Galante debuta com Violências, da mesma forma que em 1959 Dalton Trevisan estreou com Novelas nada exemplares, assim como Rubem Fonseca surgiu em 1963 com Os prisioneiros e Luiz Vilela veio em 1967 com Tremor de terra. Galante não é mero estreante e nem soa como epígono de Trevisan, Fonseca ou Vilela.

Se a prosa de Dalton é enxuta, a de Galante também é em alguns momentos, mas Galante não enfatiza apenas ação com elipses e abre espaço para nuances psicológicas, como faz Vilela em algumas ocasiões, mas não é só isso; e a opção de partir da violência da realidade rumo ao texto inventivo, a exemplo do que faz Fonseca, não reduz Galante a um contista com dicção fonseciana. Isto fica nítido, por exemplo, em Duas amigas, conto em que duas personagens brincam com fogo até se queimar. Desejavam seduzir dois desconhecidos num bar até que “os dois homens deram a elas a mais repugnante espécie de sexo. Arrancaram à força suas blusas, suas saias, suas calcinhas. Xingaram-nas de vagabundas, de cadelinhas, putas filhas de putas, não é pau que vocês querem, então tomem ninfetinhas escrotas. Fizeram de tudo. Estupraram-nas do pior jeito. E bateram, bateram e bateram. Um jogo letal, a se saber para quem. Quando saíram de cima, suados, arranhados, as duas pareciam mortas”.

E assim surge um contista. Dos bons.

Violências
Igor Galante
7Letras
60 páginas
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho