Duvido, logo existo

Novelas de Leonardo Brasiliense elegem a incerteza como um dos temas mais característicos da humanidade
Leonardo Brasiliense: autor de “Três dúvidas”
01/08/2011

Três dúvidas, de Leonardo Brasiliense, se encerra com o seguinte apêndice, escrito pelo próprio autor:

É simples: Um dia em comum, A grande ventura de Paulo Sérgio contada por ele mesmo três dias antes de morrer e O visitante referem-se a um dos fundamentos da humanidade, a dúvida. A primeira trata de dúvidas existenciais; a segunda, de uma dúvida essencial; e a terceira, da essência da dúvida. Toda a literatura que mereça esse nome trabalha com uma ou outra. O resto é sociologia.

De fato, nessas três respectivas novelas, o que se pretende, em síntese, é fazer com que um ponto de interrogação fique pairando acima do que se está narrando, concentrando toda a força da enunciação numa verdadeira apologia da dúvida. Talvez, aí resida a maior qualidade da obra. O fio que conduz o narrar é tênue, porque quer apenas ser o suporte do instável, do que a nada se agarra, nem se prende, do que não se sustenta por não sustentar certezas, mas por deixar, intencionalmente suspenso, qualquer vestígio, apoio ou referência ao real.

Presente nos três eixos temáticos, nota-se a maestria em lidar com universos particulares, microcósmicos, numa perspectiva, ora intimista, ora onírica, mas sempre concentrada, em que a economia de meios se justifica, para tentar tocar o essencial, que é fugidio e incerto.

Poço vazio
Em Um dia em comum, João Francisco (de 59 anos) e Carmem (de 46, mas aparentando 30) levam uma vida banal, num casamento de anos e sem filhos, que era um “marasmo estável”. Mas tudo que aparenta ser “estável”, guarda algum tipo de inquietação. A crise se desencadeia nele, no momento em que se aposenta:

Ele passou as últimas horas sentado no quintal, ora cochilando, ora olhando o poço. Sente que passou a manhã toda olhando o poço. Pior, sente que ainda passará o resto de seus dias assim, diante daquela construção vazia, inútil. Apesar da secura, e talvez por ela mesma, o poço é sólido, imperioso e, devido à escuridão, não se sabe até onde vai, o quão profundo. José Francisco sabe é que não tem água. Dele sai um ar úmido de poço seco. Um ar frio que penetra no corpo de quem o respira. Penetra até a raiz do medo, lá onde o que se teme é desconhecido, tem-se o que vier. É um medo que José Francisco não tinha quando criança, um medo que criança nenhuma tem. Criança, quando chega à boca de um poço desses, grita para ouvir o eco. José Francisco já não pode fazer essa brincadeira, teme o que possa ouvir.

E a pergunta atroz e impertinente, que passa a perturbá-lo, como uma idéia fixa, reverbera qual eco imaginário desse poço, que oculta os fantasmas do ser:

Toda escuridão é como um poço vazio, falta o reflexo que dê noção da profundidade. “E se eu matasse meu irmão, quem eu seria amanhã?” A frase aumenta, eco de uma segunda pedra jogada no fundo do poço, pedra batendo em pedra: “Quem seria eu amanhã?”

Estranho rosto
Paralelamente, por sua vez, ignorando o que está acontecendo com o marido, a mulher, também começa a se desestruturar, ao receber o telefonema de um ex-namorado:

“Você tem medo de quê?”, Tarcísio perguntara ao telefone.

Carmem não disse, mas sabia exatamente do quê. Tinha medo de se perder, de não saber mais quem era, não saber o que significava sua vida, a que tinha até a véspera, a que enxergava todo dia quando se olhava no espelho. Ao escutar a voz do ex-namorado, foi como estar diante de um espelho e não reconhecer o próprio olhar. Ele falava para outra Carmem. Mas a desconhecida, que até havia pouco lhe causava medo, começou a despertar curiosidade. Enquanto ouvia Tarcísio insistir no convite para vê-la, Carmem se chegava mais para perto daquele espelho, passava a mão naquele rosto estranho, começava a senti-lo fisicamente.

Toda a ação se concentra no transcorrer de um único dia, em que ambos, cada qual isoladamente, passam a lidar com as raízes fundas de seus respectivos medos. Afinal, o que se esconde por trás de toda a segurança de uma identidade? O que se revela quando o eu, que constitui o centro da expressão equilibrada e coerente de indivíduos inseridos na realidade, se depara, de improviso, com o “poço vazio”, símbolo de uma vida vã, ou com o outro rosto, o duplo desconhecido de si mesmo, que se projeta nos espelhos da existência?

Mais do que responder a isso, a intenção do narrar, sempre no limite da total entrega a essa despersonalização, seja a de José Francisco, seja a de Carmem, que se vêem perdidos de si mesmos, pretende eleger como protagonista, detentora de toda a atenção, a dúvida, que na verdade, é a única certeza da condição humana:

Que armadilha a da sua consciência: tudo é como sempre foi e, num instante, de uma hora para a outra, se transforma em dúvida, tudo.

Do ego
Esse parece ser, também, o mesmo leitmotiv a nortear as duas outras novelas. Paulo Sérgio é o narrador da segunda história, que se inicia apoiada em fatos bem verossímeis, para aos poucos, ir se afastando tanto do eixo principal, que se tem a impressão de que atravessamos a fronteira entre o sonho e a realidade. O recurso ao expediente do onírico, nesse caso, exacerba o teor da dúvida, lançado em Um dia em comum, apelando a fluxos de consciência, que desenham o esfumaçado necessário, para que não se percebam mais os limites entre o acontecido e o imaginado. Assim, estaremos diante de uma segunda instância dessa complexa arte da construção da dúvida, agora, regida pela máxima pronunciada como veredicto pelo pai do protagonista, que reverbera na memória do mesmo, tanto quanto os ruídos secos vindos das pedras que batem no poço vazio, que assombravam o José Francisco do primeiro enredo:

O ego é um reflexo do que os outros pensam de ti. É uma ilusão, uma mentira que te impede de ver a realidade.

Vai se saber, depois, que se trata de uma paráfrase que o pai dele extraía das leituras que fazia de Osho. Nessa novela, a busca angustiante de Paulo Sérgio pelo próprio pai, figura inalcançável, adquire um forte tom dramático, no plano do inconsciente, surgindo-lhe como delírio, no momento em que está morrendo:

(…) e eu corri, corri e vi o meu pai deitado de olhos fechados sem me notar, e eu numa jangada no pátio da casa verde, perdido no oceano, morrendo de sede e vendo logo ali o farol, meu pai, o farol indiferente, eu falava sozinho, morria sozinho, de sede, cercado de água, falava com a voz enfraquecida, ninguém me ouvia de dentro do bueiro, minha voz enfraquecendo e sumindo, sumindo que nem eu me ouvia mais, eu falava mas outro eu não me ouvia…

Embora cada caso se desdobre em situações inusitadas, o que mantém os três episódios unidos é exatamente esse sopro de dúvida extrema, cujas perguntas partem do outro que habita em cada um de nós, o desconhecido que de repente aparece no reflexo do espelho em que nossa imagem se projeta.

Duas versões
Se os infinitos desdobramentos do eu estão latentes em todo ser humano, não há integridade, nem identidade segura e possível. No limite, não há verdade… Com efeito, é o que a terceira novela, O visitante, pretende revelar. Aqui, o jornalista Marcos Bertolini, vai desesperadamente à procura de um furo de reportagem, que o faça avançar na profissão, mas acaba presenciando um acidente, em que a névoa espessa que incidia no local, assume a força simbólica da zona limítrofe entre a realidade e o imaginário, dissipando qualquer tentativa de reconstrução factual, que continuará à mercê das diferentes vozes que narram o ocorrido:

Agora o destino deles está em mim. Vou escrever a matéria, vai ser uma bomba. Muita gente vai se dar mal, muita gente vai cair. Mas qual deles está falando a verdade? Ora veja, ambos contaram a mesma história, duas versões, só que a história é a mesma. Todo mundo sempre conta a sua versão, não há como ser diferente. A história é a mesma para todos, mas ninguém enxerga tudo. Ninguém pode entender tudo, cada um entende do seu jeito e tem a sua versão. Portanto, o que interessa são as versões, logo… Tanto faz…

Do simbólico
Retomando, com originalidade, o preceito básico da mentira que nutre toda a ficção, Leonardo Brasiliense, nessas Três dúvidas, vai além, investindo no primado lacaniano de que o real é que é impossível. Nesse sentido, o real nos atravessa, nos constitui em nossa materialidade concreta, mas guarda silêncio, aquém ou além das palavras. Assim sendo, o real está aquém ou além do simbólico. O código lingüístico, as regras e prescrições da cultura, a lei que os preside e organiza, tudo isso gera a possibilidade de infinitos discursos sobre o real.

O simbólico é a matéria-prima que está a nosso alcance, pois toda a existência humana nele se funda. Se as versões dos fatos é que interessam, mais do que os fatos em si, como descobre o narrador de O visitante; se o ego é uma ilusão, como reafirma Paulo Sérgio; se José Francisco e Carmem não sabem em que se transformarão amanhã, a literatura, como transfiguração do real, ao gerar uma supra-realidade se apropria do simbólico, respectivamente da névoa espessa, do farol distante, do poço vazio, para carregá-los de significado. Daí porque a literatura, talvez seja, tanto quanto toda arte, a mais fidedigna das representações: ela não busca certezas, mas vive das dúvidas. E, obviamente, da incessante capacidade de se deslocar, saindo de si mesma, para buscar o outro:

Nesses lugares fechados, esfumaçados, as pessoas se aproximam e compartilham suas almas, revelam segredos. E se não há por que fazer segredo de coisas boas, pior ainda é o que se esconde de si próprio. A salvação é surpreender-se com os outros…

Três dúvidas
Leonardo Brasiliense
Companhia das Letras
176 págs.
Leonardo Brasiliense
Gaúcho de São Gabriel, nasceu em 1972. Formado em medicina pela Universidade Federal de Santa Maria, trabalha na Receita Federal. Publicou O desejo da psicanálise, Meu sonho acaba tarde, Desatino, Adeus, conto de fadas (prêmio Jabuti de melhor livro juvenil em 2007), Olhos de morcego e Whatever.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho