Numa conversa recente, Astrid Cabral falou-me sobre seu novo livro, Ante-sala, oferecido ao seu marido, o poeta Afonso Felix de Sousa, falecido não faz muito tempo. Disse-me: “Há certos veios criativos que não se esgotam num livro. Continuam fluindo, irrigando o solo de nossa interioridade até aflorar em novos poemas. Aconteceu com o meu Visgo da terra, que foi crescendo de edição para edição. Idem com Jaula. No livro de estréia Ponto de cruz, a série de poemas Pequeno mundo, quase vinte anos depois, originou a coletânea Intramuros. Assim, o poema Ante-sala, que integrava Lição de Alice, publicado em 1986, foi o embrião para este livro atual. Partindo da vida como véspera da morte e do oculto espaço pós-morte, outros poemas brotaram e se aglutinaram explorando a metáfora e a temática”.
Ao dedicar seu livro a Afonso Felix de Souza, Astrid tem o zelo de dizer que agora o poeta está em plena sala. Isso revela a densidade da poesia que o leitor terá pela frente, poesia pela poesia, para a própria poesia que se enaltece na palavra dessa mulher que tem no poema uma condição de vida.
Prova disso é o poema Prazos, um retrato dolorido de uma condição entre tantas outras circunstanciais que se apresentam a cada passo, a cada palavra, certamente a cada poema:
Antes, chá nenhum esfriava
nem ponteiros se moviam.
Tinha pressa e não devia.
Pairava cega no vasto prazo
onde esferas, onde estrelas.
Agora, estou no tempo dos insetos
e até se me quedo imóvel,
vôo.
Não significa apenas um poema. Essa palavra tem direção certa e sabe o que quer do poema e da vida do poema. No entanto, nem tudo se resume num exercício literário. Por isso, Astrid Cabral entra no seu poema, na primeira pessoa, como se ao poema oferecesse um depoimento existencial, marcado pela dor. A poesia brasileira se ressente de sentimentos humanos. A poesia brasileira deixou de ser humana. Por esse motivo, livros assim remetem ao que deixou de existir diante de um caos estabelecido como determinação dos novos tempos: a negação da palavra e da própria poesia.
Mas existem ainda os poetas brasileiros do resgate, como Astrid. A ante-sala é um invólucro de perdas, de espantos, de soluços, de acenos: “Aqui a noite/ opaca e parca/ de estrelas./ Aqui os olhos/ embrulhados/ em dobras e sombras./ Esta a ante-sala:/ áspera espera/ de outra era”.
O que mais o poema poderia exigir de quem o escreve? “Sou muito curiosa e a porta fechada, que é o mistério da vida, sempre me perturbou”, diz ela. “Sinto-me sitiada e minha poesia abriga reiteradas interrogações sobre o lado de lá, de onde ninguém dá notícias. A fé absoluta de alguns leva a preenchê-lo de confortáveis expectativas, mas sou criatura da esperança e do desejo de Deus, nunca da certeza, infelizmente. Assim fico bordando em cima do enigma da finitude.”
O poema Ilusões explica melhor: “Ó ilusões, fantasias/ neblina em pupilas/ névoas contra vidros./ Embaçais o espelho./ O vulto do corpo/ procuro e não vejo./ Por vós deixei sandálias/ sobre calçadas./ Por vós alcei-me/ transviada no rumo/ de andrômedas./ Asas abertas”
O que mais poderia se exigir de uma poeta?