Duplos, clones, cópias

No romance "Menino oculto", Godofredo de Oliveira Neto reinaugura seu estilo de escrever
Godofredo de Oliveira Neto: prosador inteligente.
01/12/2005

Com a publicação de Menino oculto, pela editora Record, Godofredo de Oliveira Neto inicia uma nova fase em sua destacada obra de ficcionista. De uma primeira novela — Faina de Jurema (1981) —, em que mescla experimentalmente uma diversidade de gêneros discursivos, que vão da poesia ao telegrama, Godofredo passa, com O bruxo do contestado (1996), a se inserir na tradição do romance político — ciclo que completaria com mais duas narrativas: Pedaço de santo (1997) e Marcelino Nanmbrá, o manumisso (2000).

Não se trata de uma trilogia. Num certo sentido, são romances históricos — ou de reflexão histórica, para ser mais exato — porque tentam captar alguns momentos importantes do século 20 brasileiro pelo viés de personagens mal adaptadas às respectivas circunstâncias. No Bruxo, é o camponês Gerd Rünnel, vivendo em pleno Estado Novo e sonhando com os ideais que provocaram a Guerra do Contestado, durante a República Velha. Em Pedaço de santo, a ação e o tempo se dividem entre o Rio e Paris, para expor o drama de Fábio, exilado brasileiro em plena ditadura militar. No Marcelino, trata-se da descoberta do mundo e de suas contradições por um pescador de Santa Catarina, durante a Segunda Guerra e às vésperas da queda de Getúlio.

Após duas felizes incursões na literatura “infanto-juvenil” — com Oleg e os clones (1999) e Ana e a margem do rio (2002) —, Godofredo reinaugura seu estilo de escritor, ao mesmo tempo em que retoma e aprofunda algumas preocupações fundamentais de seus livros anteriores.

A novidade fica por conta da linguagem: estamos longe da prosa lúcida e equilibrada de Pedaço de santo e da organização arquitetural de O bruxo do contestado. Godofredo optou por um texto que mimetiza a língua oral contemporânea, mas que conserva sua estatura literária. Essa forma leve, despojada, se alia a uma estrutura narrativa de planos múltiplos, que não obedece à cronologia dos fatos.

O argumento é simples: Aimoré Seixas, o protagonista, é um português que veio ainda jovem para Santa Catarina. Mas não é uma personagem comum: além de uma inteligência acima da média (foi o primeiro colocado em um concurso público para professor de literatura), de uma memória excepcional (é capaz de recitar páginas inteiras dos principais autores brasileiros), de uma vasta cultura artística (que vai, pelo menos na área musical, do clássico ao popular), Aimoré é capaz de reproduzir perfeitamente telas de grandes pintores. E é em torno de seu envolvimento com negociantes de quadros falsos — que encomendam a ele uma cópia do Menino morto, de Portinari — que se dá a ação do romance.

Enquanto é interrogado (e não se sabe exatamente quem são os interrogadores) sobre o quadro falso, que se acha desaparecido, Aimoré grava numa fita sua história. Num fluxo desordenado, destacam-se alguns episódios: o do cego Baltazar, na baía da Babitonga, em Santa Catarina, por meio de quem entrou em contato, durante a juventude, com um mundo mitológico e fantástico, constituído pelas histórias do cego, e cuja perda viria a ser fundamental para o colapso da sua noção de realidade; o encontro com um travesti, a quem assassina violentamente; os delírios em que se imagina regente de orquestra, apresentando-se para uma platéia em que figura o próprio compositor da peça executada; e a relação erótica e afetiva com Ana Perena, cujo desaparecimento o transtorna de forma irreversível.

Embora estimulada por uma intriga de feição policial, a motivação da leitura (que se faz de um fôlego só) está na decifração da personalidade do protagonista. À medida que o texto avança, ficam visíveis, no discurso de Aimoré, certas impropriedades, certas extravagâncias que se avizinham da loucura. Esse é, me parece, um tema recorrente na obra de Godofredo.

A loucura é, essencialmente, um problema de identidade. Loucos são aqueles que não conseguem obter dos demais indivíduos uma autenticação, um reconhecimento da própria “pessoa”, que se manifesta em atitudes “excêntricas”. O Gerd Rünnel, tomado pelo messianismo visionário que o faz acreditar na ressurreição do Contestado, é uma espécie de louco. O Marcelino Nanmbrá, com o arrebatamento final que o faz se isolar no topo de uma árvore, é outra espécie de louco.

Todos esses textos fazem parte de uma tradição já longa na literatura brasileira, que vem desde O Alienista de Machado de Assis e desemboca em romances como Fronteira, de Cornélio Pena, A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, ou A gaiola de Faraday, de Bernardo Ajzenberg.

Já na fábula do lagarto Olegárcio — ou Oleg —, que se defronta com os clones em que se fragmenta, propõe-se o mesmo problema, embora de maneira diversa. A questão aí não é mais a de uma identidade não autenticada, mas a da identidade paradoxalmente indistinta, porque perde a condição de única e passa a ser plural. É o dilema dos famosos “duplos” literários, como os de Conrad, Borges, Dostoiévski e Paul Auster.

Evolução
O que faz de Menino oculto um romance singular é a associação entre a loucura de Aimoré e sua vocação de clone — ou duplo. Embora a narrativa tenha diversas idas e vindas no tempo e no espaço, é possível perceber um certo gradiente, uma certa evolução no comportamento do protagonista. Primeiramente, Aimoré reconhece que executa cópias de quadros; depois, rejeita o rótulo de falsário e nega que seus quadros sejam cópias (o que é interessante porque nos leva também a refletir em que medida seriam cópias, se são idênticos aos originais); e finalmente tenta resistir à imitação, à duplicidade, e introduz sutis modificações nas telas, como se buscasse uma auto-afirmação, um espaço pessoal no mundo.

Aimoré passa a ser ameaçado pelos criminosos que lhe encomendam a cópia do Menino morto justamente quando entra nesse processo de resistência à loucura e deixa a tela inacabada, como se corresse o risco de se transformar no próprio Portinari. E é nesse embate para conquistar ou reconquistar uma identidade perdida (porque duplicada) que ele decide superar a obra-prima original para “recriar” Portinari.

Este é certamente o mais belo e o mais importante momento do texto.  Mas há muito mais coisa: erotismo, poesia, mitologia, múltiplas referências ao mundo contemporâneo, particularmente à música pop, e à arte erudita, além de um delicioso jogo de apropriação de textos de outros autores, cuja descoberta provoca um grande prazer.

Menino oculto é um romance inteligente, interessante, que se lê sem vontade de parar, que se insere originalmente na linhagem dos bons romances sobre a noção imprecisa de autenticidade e que, por tudo isso, se justifica.

Menino oculto
Godofredo de Oliveira Neto
Record
222 págs.
Godofredo de Oliveira Neto
Nasceu em Blumenau (SC), em 1951. É autor de diversos livros, como Faina de Jurema, Marcelino Nanmbrá, o manumisso, Pedaço de santo, O bruxo do contestado, Oleg e os clones e Ana e a margem do rio. É também professor da UERJ.
Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho