Duplo refletido

"Carga viva", de Ana Rüsche, espelha dois planos temporais num enredo multívago que aborda política, epidemia, metalinguagem, poesia e crise climática
Ana Rüsche, autora de “Carga viva” Foto: Luiza Sigulem
01/08/2025

Carlos Alberto, ou Cacá, é um advogado paulista que “sempre tocou a vida com alguma poesia, poucas preocupações e um sorriso doce”. Então uma tosse insistente começa a lhe baquear a saúde até se agravar em escarros com sangue. Como forma de desopilar, ele faz as malas com o namorado, o bailarino Félix, e vão se isolar no litoral, numa casa de praia localizada entre Ubatuba e Paraty. O dono da propriedade é Mark, um amigo alemão que tem um cargo de prestígio num banco internacional. Casado com Gisela, o burocrata leva uma vida secreta, transando casualmente com outros homens em saunas gays ou em surubas. O ano é 1985, período de tensas transformações políticas e sociais no Brasil, com os movimentos de redemocratização, as Diretas e a chegada do vírus HIV. Esse é o primeiro plano temporal de Carga viva, romance de Ana Rüsche. Uma livre associação de fatos históricos convertidos em cômputo ficcional, que se completa com um duplo refletido três décadas depois.

Salta-se para o início dos anos 2020, quando a professora Maria Inês, grávida do anestesista Patrick, passa pela tensão de uma pandemia que a coloca em condição de risco. O país rumina os efeitos de uma eleição que, pela primeira vez após o fim da ditadura militar, teve o impacto da explosão da extrema direita. O resultado é uma sociedade polarizada, com a insurgência de uma parcela da população preconceituosa, negacionista e doutrinada por pensamentos reacionários e fake news. Logo Inês vai descobrir que a covid-19 não é o único perigo que a ronda, com o namorado assumindo uma postura agressiva, machista e radicalmente contra o uso de máscara. O alvo preferido do médico é Maria Gilda, sua cunhada, uma mulher de espírito livre, a quem ele chama de “drogada, feminazi e comedora de terra”. O núcleo se fecha com Cida, a tia-avó que assumiu o cuidado das irmãs quando estas ficaram órfãs ainda na infância, uma força acolhedora, mas que ressoa da distância, isolada na região serrana do Rio de Janeiro.

Pilares gêmeos
De imediato, fica claro o manejo da autora em estruturar o livro em dois pilares gêmeos. O enredo, desenvolvido através de breves capítulos que se revezam entre presente e passado, espelha seus componentes narrativos, dos dramas pessoais às motivações, do espectro das doenças às fervuras político-sociais. Tudo corre em linhas do tempo paralelas até que, a certa altura, algumas revelações irão estabelecer uma ponte entre os planos. Rüsche conduz o texto sem pressa, de modo a valorizar as inter-relações e os choques entre os personagens, utilizando a História como fundo espasmódico, em ecos, referências ou assento para determinadas viradas de trama. Trata-se de um romance essencialmente prosaico, até a aparição de um elemento estranho que combina ficção científica com realismo mágico.

Numa manhã de névoa baixa, Cacá caminha sozinho pela praia, preocupado com a febre e a piora da tosse, quando resolve mergulhar no mar. Nadando contra as ondas frias, de repente ele avista uma mancha prateada cintilando. Parece uma poça de óleo, contudo é como se tivesse “luz própria, um espelho líquido sobre o mar”. Talvez uma substância vazada da usina Angra 1, ainda assim o advogado decide se aproximar. Um cheiro florado o atrai e, ao entrar em contato, algo muda em si. Executando o método de espelhamento temporal, no futuro, a ingestão do prata-viva é usada como ação terapêutica contra o coronavírus, sendo Maria Gilda uma adepta declarada e incentivadora do consumo pela irmã grávida. Inês, no entanto, não pode sequer citar o nome da substância em casa, pois Patrick reage com fúria a toda medida de combate ao vírus, chamando-as de “mentiras comunistas”. A professora vive refém de um medo, do qual apenas se desgarra na investigação acadêmica dos livros e de vestígios artísticos de Ismael Carlos Teixeira, um poeta obscuro dos anos 1980. Com a incorporação da poesia, o enredo se filia a outra identificação temática, que opera uma virtude e também um deslize.

Ao se refugiar no litoral com Félix, Cacá busca um pouso para seu corpo e espírito, usando da experiência do vivido como inspiração para deixar um registro em versos. O exílio com o namorado, suas interações e trocas, e depois a chegada de Mark na casa, inspiram uma série de poemas que retratam os dias vigentes e os que ele não sabe se existirão. A autora inclui alguns desses (bons) poemas em hiatos do romance, lançando mão de um exercício de metalinguagem para construir mais uma conexão ladina entre os planos. A poesia ora é metafísica, ora divagadora, de quem conversa consigo sem rumo certo. Por outro lado, a aplicação de um verniz poético no estilo narrativo não é bem regulado em algumas seções, sobretudo nos capítulos iniciais, incorrendo na pieguice (a exemplo da frase que começa essa resenha), num punhado de chavões, tal qual no trecho: “— A gente precisa escrever poesia de ouvido./ — E não tem o coração?/ — O coração da poesia mora nos ouvidos”, e em frases de sentido duvidoso ou sem sentido algum: “O vento animado capaz de manchar com carneirinhos brancos as águas mais profundas”.

Questão climática
Felizmente o enfeitamento da forma vai se arrefecendo na articulação do conteúdo, e, entre as inúmeras andanças do enredo, a última parte ainda traz, para esse leque de temas, a questão climática. A repercussão da descoberta da mancha prateada atrai biólogos para o litoral, cuja pesquisa acarretará numa aproximação com Cacá, Félix e Mark, desencadeando disjunções e novas conjunções afetivas, além de uma percepção antroposófica sobre os efeitos da substância. Rüsche imagina um fim para a epidemia, deslocando-se da realidade, para depois voltar com tudo, por meio de uma tragédia que evoca os desastres naturais que recentemente acometeram o país. Um fim satisfatório, no entanto, numa trama repleta de fios abertos, a autora acha por melhor amarrar as pontas da linha mestra.

Quase como um epílogo, as páginas finais promovem um encontro entre personagens de períodos distintos, revolvendo a memória de modo a buscar respostas num romance que se caracteriza pela extensão lacunar e pela estrutura não convencional. Nada acrescenta e cria uma redundância desnecessária, uma revisão elementar, em contraste com a natureza livre do texto, de salto de tempo de uma frase a outra, de vaivém entre verdade e invenção com fluidez. Carga viva entra no quadro recente da literatura brasileira que se volta para as agruras do passado de modo a repercutir os mesmos sintomas no presente, oscilante entre o documento e o imaginário, transitando pelas fronteiras do corpo e da sociedade para mostrar experimentações de crises trágicas, novas e antigas. Excede-se na sensibilidade da linguagem, mas consegue amarrar bem os múltiplos temas que explora, garantindo uma leitura que se transforma durante seu curso, que transiciona sua tessitura para plasmar criação dentro da criação e cura para males que estamos longe de aplacar.

Carga viva
Ana Rüsche
Rocco
216 págs.
Ana Rüsche
É escritora e pesquisadora. Finalista do Prêmio Jabuti, estreou com poesia, publicando obras como Rasgada, Nós que adoramos um documentário e Furiosa. Em prosa, lançou as ficções Do amor: o dia em que Rimbaud decidiu vender armas e A telepatia são os outros, entre outras, além dos ensaios reunidos em Ferozes melancolias. Seus títulos já foram traduzidos para diversos países, como China, Colômbia, Coreia do Sul, Estados Unidos, Itália e México.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

Rascunho