Dupla exumação

Raymond Carver e a figura do editor no livro "Iniciantes"
Raymond Carver, autor de “Iniciantes”
01/12/2011

O cotidiano e sua precariedade formam a base dos contos de Raymond Carver. A rotina dos casais, em grande parte. O tédio diário, inevitável para os personagens de Carver, algumas vezes quebrado por ações violentas, assassinatos não são incomuns. Fotografou com precisão, sem a objetiva dos sentimentalismos e melodramas, esse universo dos desencontros.

O Raymond Carver, de Iniciantes, não é o mesmo Raymond Carver que ocupou o parágrafo que você acaba de ler. Mórbido e oportunista leitor, por favor, me acompanhe nessa dupla exumação.

Iniciantes, quando tinha a paternidade dividida atendia por Do que estamos falando quando falamos de amor. A partir da interferência “nada oportunista” da viúva do autor, o livro teve sua identidade modificada. No entender deste aprendiz, para pior, rumo ao limbo habitado pela maioria dos contistas.

Você poderá compará-los facilmente, ambos foram publicados pela Companhia das Letras. Oportunidade para medir os cadáveres. O famoso, Do que estamos falando quando falamos de amor, que rendeu a Carver o rótulo de minimalista; Carver a criatura de Gordon Lish, o editor que cortou e modificou os contos. Sobre a mesa ao lado o cadáver original, exposto com todas suas adiposidades e aderências, o Carver de Iniciantes, o autor e seus excessos. Mais um contista, nada além disso.

O editor cortou, cortou sem piedade, mas não parou por aí. Um exemplo do trabalho de Lish é Cadê todo mundo?, aparece com esse título em Iniciantes, e você, descrente leitor, poderá compará-lo com a versão que contou com a “tesoura” do editor em 68 contos de Raymond Carver. A primeira mudança ocorre no título Mr. Coffee e Sr. Conserta-Tudo, e segue com mudanças de nomes de personagens, de tamanho, Lish o reduziu a metade, e o final, também alterado, traz mais impacto.

Foi com Do que estamos falando… que Raymond Carver foi considerado um expoente do minimalismo, seguia o caminho de Hemingway. Poucos sabiam que tal caminho era indicado/iluminado pelo seu editor. Nesse mundo a exigir enquadramentos e rótulos, onde a literatura desponta como um dos ambientes mais propícios a tal prática, minimalista é uma classificação a ser exaltada.

Não é de hoje que o terreno literário aceita, e bem, uma floresta de excessos. O conto, embora sua suposta exigência de síntese, também se alastra enquanto a qualidade definha.

Pois bem, Carver alcançou fama e reconhecimento, apesar de sua temática repetitiva, graças à tesoura e, vá lá, ao conhecimento do terreno de Gordon Lish. Isso feito, vem a público a versão out Gordon, e, pelo menos aqui no Brasil, num pouco costumeiro surto ético, tenta-se justificar e criar uma diferenciação positiva pendendo para Iniciantes. A exumação exige calma e atenção, o cadáver de Iniciantes, percebe-se, foi conservado sob as mais requintadas técnicas, mas Do que estamos falando… ainda exala certo perfume de inquietação. Fundamental às artes e à vida.

Iniciantes
Raymond Carver
Trad.: Rubens Figueiredo
Companhia das Letras
296 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho