Toda mulher aos quarenta (ou à beira de completar) já se questionou sobre o real desejo da maternidade. A exceção fica por conta daquelas que chegaram à idade já tendo experimentado ter filhos. A aposta na desaconselhada generalização é justificada, porque bem sabemos dos olhares e comentários anunciando o que é esperado das mulheres durante a chamada idade reprodutiva. Não raro, tem gente que prefere guardar para si suas opiniões a respeito para evitar o tribunal público. A protagonista de Julia Dantas em A mulher de dois esqueletos fala em nome daquelas que alguma vez se sentiram pressionadas a ter de responder a si mesma e depois aos outros se querem ter filhos. A proximidade dos quarenta levanta o questionamento sobre a maternidade em meio ao grande desejo da protagonista, este sim declarado sem pestanejar: o de escrever.
A indecisão quanto à maternidade esbarra no desejo de escrever e se materializa em uma narrativa com alternância de capítulos, ora contos escritos pela protagonista, ora textos escritos em primeira pessoa por esta mulher, abrindo assim dois espaços ficcionais dentro do mesmo romance. A divisão dos capítulos expressa exatamente as duas dimensões, a da vida íntima e a da escrita, embora esta última também seja encrustada de subjetividades antes mesmo de ser entregue aos leitores.
A autora do ótimo Ela se chama Rodolfo (2022) e de Ruína y leveza (2015) encontrou assim um modo de demonstrar os dilemas da narradora, que poderia ser na verdade qualquer mulher de sua geração, nascida na década de 1980, quando os chamados “movimentos de mulheres” se popularizaram no país. Seria de se esperar que mulheres criadas a partir desta época encontrassem outro contexto quatro décadas depois? Talvez. Mas é bom que se diga que a reivindicação da narradora de Dantas é antiga. Na década de 1980, Helena Parente Cunha, Marina Colasanti, Myriam Fraga e Lya Luft, para citar alguns nomes, eram algumas das escritoras que chegavam ou já estavam na faixa dos quarenta anos com carreiras consolidadas. É interessante notar que neste pequeno recorte ilustrativo estão escritoras que se ocuparam de escrever sobre os conflitos das mulheres com o espaço familiar e as inadequações sociais em razão de gênero.
O desejo de escrever e a defesa de fazê-lo são também bastante conhecidos em textos e biografias de diferentes escritoras e intelectuais de todos os tempos, não apenas de Simone de Beauvoir a Virginia Woolf, mas de referências contemporâneas como Chimamanda Ngozi Adichie e Conceição Evaristo. O espaço de criação intelectual não é natural às mulheres, enquanto para os homens isso é dado sem disputas. Além da necessidade de defesa de sua capacidade, há outras opressões de gênero que se renovam ou surgem com as nuances de cada época. Dessa forma, o tratamento dado por Dantas se soma aos de outras autoras que decidiram abordar temas espinhosos para as mulheres, o avesso da maternidade ou a sua não romantização, a violência sexual e a apropriação dos corpos das mulheres pelo capitalismo.
Mas se por um lado A mulher de dois esqueletos, atualiza a discussão sobre o direito ao espaço intelectual e do trabalho pelas mulheres em um contexto privilegiado e progressista (embora isso apareça sem focalização, mas pelas ranhuras do texto), nem mesmo assim consegue expurgar das mulheres a marca de segunda classe imputada por uma sociedade forjada majoritariamente por homens. Por esta razão também, as perguntas da narradora não são apenas perguntas pessoais, são perguntas públicas, sociais, que acompanham as trajetórias das mulheres até a vida adulta e o envelhecimento.
Seria cômico se não fosse…
No capítulo A boneca, a narradora conta da sugestão de uma amiga para que ela se imaginasse vivendo com um filho. O texto se estrutura a partir da narração do cotidiano da narradora potencial candidata a mãe com uma boneca de papel. Sim, ela cria uma boneca de papel para simular um filho, inspirada em um filme em que adolescentes recebiam uma boneca a pilha da qual deveriam cuidar como parte de um programa de prevenção à gravidez precoce. O que pode soar humorado ou descontraído logo se transforma em uma sequência angustiante de dificuldades ou constrangimentos que mulheres e mulheres mães enfrentam.
Na última semana, andei dormindo menos por causa da filha de papel. Meu companheiro acha que eu devo jogá-la no lixo, mas isso arruinaria todo o experimento. (…) conclui que deveria ter uma experiência mais realista e comecei a de fato fazer pausas no trabalho a cada três horas. Tiro o seio para fora da blusa e seguro a boneca de papel contra o peito.
Por vezes irônica, Dantas também escancara a estratégia que muitas mulheres, mesmo no século 21, adotam em busca de uma mínima sensação de proteção diante dos homens, seja ao pegar um carro de aplicativo à noite ou quando precisa fazer algum tipo de negociação com um mecânico ou um mestre de obras. E nesse ponto, mais uma vez, não será leviano supor que muitas leitoras se identificarão, enquanto os homens patinam sem saber da raiva que essa mesma escolha provoca. É acesa a sirene de que apesar de tantos avanços no campo educacional e do trabalho, ainda falta tanto:
Meu companheiro não é meu marido. Eu só tenho marido quando falo com prestadores de serviços. Quando vem o entregador de gás: se precisar de ajuda, eu chamo meu marido lá dentro (…) Quando quero dispensar orçamentos: preciso falar com o meu marido.
A avaliação masculina aparece também de modo sutil como no capítulo Invasões em que seu companheiro diz que ela não pode escrever um conto sobre a pandemia de covid-19 com senso de humor. “Tudo bem, ele diz, o artista faz o que quiser, mas é imoral. Isso não ajuda muito: tudo bem, mas é imoral”. Daí em diante, segue-se uma reflexão sobre o próprio sentido da arte quando o mundo se aproxima do fim, o que cabe inclusive agora quando “superada” a covid, retomamos a emergência climática como pauta global prioritária.
Se o romance traz um duplo questionamento da narradora, daí o título indicando as duas vidas dessa mulher, os dois esqueletos que vertebram a sua existência, o ritmo da narrativa também acompanha as dúvidas e indecisões da narradora. Além da alternância já citada, podemos ler os capítulos-contos como janelas de produção dessa mulher escritora em meio ao cotidiano de uma mãe inventada que ela empreende ou que ela não sabe se quer ser. Como na vida como ela é, que não podemos sucumbir aos problemas e angústias e mesmo em situações adversas precisamos tocar o barco, deixar passar uma raiva e trabalhar ou concentrar as energias em algo que precisa ser feito em vez de chorar por um desgosto, essa narradora anfíbia segue o fluxo das suas próximas insinuações. O resultado é o próprio texto como sentencia a escritora e psicanalista Natalia Timerman na orelha: “a certeza e a pergunta, a existência mesma no livro é a resposta”.