Duelo sem fim

“Um deus passeando pela brisa da tarde”, de Mário de Carvalho, exibe diferentes nuances da dicotomia barbárie versus civilização, sem ser maniqueísta
Mário de Carvalho: texto elegante e contido.
01/08/2006

Um dos gêneros mais prolíficos da ficção portuguesa contemporânea é o romance histórico: há sagas familiares, histórias alternativas, biografias fictícias, no mais das vezes construídas sobre o signo da paródia e da ironia. E em meio ao grande número de prosadores que Portugal revelou nas últimas décadas, Mário de Carvalho destaca-se como um hábil narrador de tramas históricas: já escreveu sobre o século 18, a Idade Média e a antiguidade clássica, período em que se passa a ação de Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), lançado agora no Brasil.

Vale fazer uma rápida apresentação do autor, pouco conhecido do leitor brasileiro. O jornalista Mário de Carvalho, nascido em 1944, possui um longo histórico de engajamento político: além de ter sido preso pela ditadura, viveu exilado na França e na Suécia, tendo retornado a Portugal após a Revolução dos Cravos. Estreou em livro na ficção em 1981, com Contos da sétima esfera, reunião de histórias fantásticas um pouco cômicas, um pouco sérias. Além de dramaturgo e roteirista, desenvolveu uma vasta produção literária, que inclui, entre outros, os premiados Os alferes (1989) e A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho (1983), além do curioso E se tivesse a bondade de me dizer porquê (1986), romance escrito a quatro mãos com Clara Pinto Correia.

Para o leitor brasileiro, a referência mais próxima do autor é, provavelmente, o romance Era bom que trocássemos umas idéias sobre o assunto, de 1995, lançado ano passado por aqui. Trata-se de uma narrativa contemporânea, cínica, bastante bem-humorada, e que poderíamos chamar de metaficcional, pois o narrador comenta a feitura do romance constantemente: justifica suas escolhas, discute questões como a verossimilhança literária, explica-se ao leitor mais ansioso e até tenta se fazer de ingênuo, embora seja evidente que está longe disso.

O enredo trata de um burocrata cinqüentão, Joel Strosse Neves, que vive uma relação difícil com a esposa, motivada em grande parte pela vida desregrada do filho único. Por acaso, Joel reencontra um antigo conhecido da faculdade, o professor Jorge Matos, ex-militante do Partido Comunista Português. Joel sente-se à margem do processo histórico, e almeja a atuação política efetiva; Jorge, por sua vez, é um desiludido, que acompanhou as últimas décadas da vida política portuguesa com crescente ceticismo. No contraponto entre empolgação ingênua e cínica desilusão destes dois personagens, nasce uma impiedosa sátira à intelectualidade lisboeta, que aparece reduzida a discussões inócuas (como o debate sobre a fachada de um prédio) e aos tipos caricatos que ainda habitam as reuniões do Partido Comunista (onde se repete o jargão que dá título ao livro).

O romance destaca ainda a interessante Eduarda Galvão, uma jovem, ambiciosa e incompetente jornalista cuja principal habilidade é a autopromoção. Ela representa o tipo destinado ao sucesso, alheio aos debates éticos de outras esferas, como se fosse um novo tipo de “intelectual” esvaziado de idéias, o único tipo possível de surgir no quadro quase patético das organizações políticas contemporâneas.

Agora, por ocasião de sua visita à Festa Literária Internacional de Parati, a Flip, que ocorre entre 9 a 13 de agosto, é lançado no Brasil um dos romances históricos mais celebrados de Mário de Carvalho, Um deus passeando pela brisa da tarde, imediatamente anterior a Era bom que trocássemos umas idéias sobre o assunto. Podem parecer, à primeira vista, livros absolutamente diferentes, mas não há dúvidas de que guardam semelhanças estruturais e temáticas fundamentais.

O narrador de Um deus passeando… é Lúcio Valério Quíncio, antigo duúnviro (líder político) de Tarcisis, cidade da Lusitânia do século 2 d.C. Vivendo afastado da cidade, em companhia da esposa e de seu séqüito de escravos, Lúcio se põe a narrar os eventos que o levaram a se auto-exilar e abdicar de sua vida pública. Apesar do enredo se passar na antiguidade romana, o autor abre o livro com uma nota curiosa: “Este não é um romance histórico. Tarcisis, ou, mais precisamente, o município de Fortunata Ária Tulia Tarcisis, nunca existiu”. Ousemos discordar: mesmo a cidade sendo ficcional, a ação está circunscrita a um período histórico bastante específico, e a reconstituição dos costumes, dos objetos de cena e dos valores da romanidade é bastante eficiente, com a vantagem de não ser pretensamente didática e exaustiva, como em muitos romances do gênero.

Pode-se argumentar que falta ao enredo uma das características principais do romance histórico tradicional: a adoção de personalidades históricas como personagens coadjuvantes. Sua presença é quase obrigatória no gênero, pois confere mais credibilidade ao enredo. Além disso, limitando-os apenas aos papéis secundários, o romancista garante sua liberdade na criação de eventos ficcionais e evita grandes “sacrilégios” com a história oficial. No romance de Mário de Carvalho, de fato, quase não há personagens reais, mas com uma exceção ilustre: o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.) tem uma rápida, mas importante aparição. Além de constituir um dos diálogos fundamentais do livro, representa mais um índice relevante para sua verossimilhança histórica.

Alegoria política
Sendo assim, a afirmação do autor de que Um deus passeando pela brisa da tarde não é um romance histórico pode ser compreendida ironicamente: ele seria, então, um romance “atual”. E o primeiro impulso do leitor é considerar o enredo que tem em mãos uma alegoria política do nosso tempo.

Vejamos. Lúcio não é um homem típico de sua época, já que se mostra avesso ou indiferente aos costumes mais rotineiros da romanidade. Na verdade, o duúnviro se submete aos costumes em nome de sua governabilidade, pois sabe que fazer política envolve receber visitas, ser visto publicamente em determinadas situações e, principalmente, tomar decisões de acordo com o interesse do povo, que pode rapidamente se transformar em uma turba violenta. Eis, então, um de seus principais conflitos, que descreve assim: “A nossa cidadania, que tantos motivos de orgulho nos deu, funda-se neste subtil e complexo sistema de equilíbrios e hipocrisias. Eu era um magistrado, não um filósofo. Sendo preciso dissimular para manter a paz e a tranqüilidade, eu dissimularia”. O próprio Marco Aurélio, reconhecido pelos conservadores como o “imperador filósofo” e um pensador excêntrico, submetia-se ao convívio dos soldados e estimulava os espetáculos mais cruéis, embora não os aprovasse intimamente: “Tinha apenas de ser. Tinha de se suportar! Mas, com que limites?”

Em Tarcisis, vive-se um clima político apático e preguiçoso. Desde o início, Lúcio mostra-se um líder fraco, sujeito a manobras políticas e hostilizado por seus colegas. Sob este clima de desconfiança e falta de credibilidade, ele precisa, ao mesmo tempo, tomar medidas impopulares para defender a cidade do ataque iminente dos mouros, e controlar a revolta da população contra uma misteriosa Confraria do Peixe, liderada por Iunia Cantaber, filha de uma das mais respeitáveis famílias da cidade. A seita prega, entre outras barbaridades, a igualdade entre os homens e a existência de um Deus único, que teria enviado seu filho a Terra para redimir os pecados do homem.

Nas palavras do duúnviro, o discurso de Iunia é extravagante, vulgar, e “infantilmente subversivo”. Entram em choque, inevitavelmente, as responsabilidades do chefe da cidade e as convicções extremistas de uma líder espiritual, para quem o destino da Lusitânia nada importa, e que não reconhece qualquer autoridade senão a de Jesus Cristo. Sob este diálogo de surdos, esconde-se uma imprecisa tensão sexual: “Mas eu já havia reparado que a linguagem de Iunia não coincidia inteiramente com a minha, para não falar dos sentimentos”. Estão em conflito, mais do que duas personalidades, modos de vida opostos e contrastantes. Neste sentido, o romance é hábil ao exibir diferentes nuances da dicotomia barbárie versus civilização, sem, contudo, ser maniqueísta: o estatuto de “civilizados” oscila constantemente entre os mouros, os romanos e os cristãos.

O texto de Mário de Carvalho é elegante e contido, muito adequado à matéria que narra e à personalidade de Lúcio. E se a condução do enredo pode parecer lenta em determinados trechos, ela termina por reproduzir com precisão o enredamento de eventos aparentemente independentes em que o narrador se vê preso. O tom do romance muda consideravelmente por ocasião da chegada dos bárbaros, mas mesmo as cenas de ação que se seguem são econômicas, a despeito dos trágicos eventos que descreve. Afinal, este não é um romance de aventuras.

O primeiro parágrafo do romance, que já se tornou célebre, deixa evidente o estilo reflexivo e pausado do protagonista e de sua narrativa:

Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cômodo impera, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?

Mário de Carvalho já disse que Era bom que trocássemos umas idéias sobre o assunto nasceu como uma reação ao tipo de romance que ele vinha fazendo anteriormente, de formato mais “clássico”, e cujo auge foi precisamente Um deus passeando pela brisa da tarde, o qual considera um de seus melhores romances. Entre ambos, de fato, a diferença estilística é bastante evidente. Mas seus temas básicos são os mesmos: os dois livros descrevem o homem íntegro em conflito com um estado de coisas desalentador.

E o saldo, ao menos em um primeiro momento, é desanimador. Se na Lisboa contemporânea surgem pessoas como aquela fútil Eduarda Galvão, a distante Tarcisis já possuía seus manipuladores alpinistas sociais: Rufo Cardílio, um filho de escravos libertos, é o grande recompensado pela amoralidade do lugar. Ambos os personagens, enfim, compreendem as regras do jogo político, alheios (por ignorância ou convicção) a qualquer conflito ético. E o romance é incerto quanto à possibilidade de mudança deste estado de coisas. É certo que Roma cairá, mas também é certo que outros impérios virão.

Um deus passeando pela brisa da tarde
Mário de Carvalho
Companhia das Letras
319 págs.
Mário de Carvalho
Nasceu em Lisboa em 1944. Formado em direito, foi ativista político durante a ditadura salazarista e viveu exilado na França e na Suécia. Retornou a Portugal em 1974, com a Revolução dos Cravos. É ficcionista, dramaturgo e roteirista. Um deus passeando pela brisa da tarde recebeu diversos prêmios, como o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. É autor de Os alferes e A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho, entre outros.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

Rascunho