Dubito ergo sum: isto não é um cachimbo

Coletânea de crônicas de Gullar sobre artes plásticas e poesia é frágil devido à falta de rigor científico
Ilustração: Ramon Muniz
01/09/2006

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Nossa vida é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de atitudes, hábitos e costumes que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvios, imutáveis. O conhecimento espontâneo e informal (também chamado de senso comum), por se basear na tradição, na intuição e no bom senso, é a primeira e a mais imediata compreensão que nós adquirimos da sociedade, das artes, do mundo, de tudo. Esse tipo de conhecimento acumula-se no cotidiano e é construído subjetivamente, de maneira fragmentária e assistemática, no convívio com os parentes, os amigos e os conhecidos. Pessoas afeitas ao conhecimento espontâneo não costumam lançar mão das categorias metódicas e racionais da ciência para resolver os problemas do dia-a-dia. Ciência e senso comum são dois tipos de conhecimento que, na sociedade industrial, estão freqüentemente em desavença. Mas, apesar do preconceito disseminado no círculo científico, estudiosos como Max Weber, Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss sempre defenderam o conhecimento não especializado, principalmente o das culturas arcaicas ou selvagens. Para eles, o senso comum é um tipo de conhecimento que deve ser encarado pela ciência como sendo de outra natureza, jamais como algo menor ou inferior. Enquanto princípio de sociabilidade, o senso comum é o consenso comum, ou seja, o acordo mínimo necessário para que qualquer sociedade funcione com eficiência.

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Tudo bem, compreendo a posição de Weber, Eliade e Lévi-Strauss. Também desconfio do discurso científico, também acredito que as técnicas do conhecimento não sistematizado, as tramas da intuição e do repertório mágico das culturas arcaicas ou selvagens são tão valiosas quanto as conquistas e o repositório da prática científica. Também acredito que na sociedade tecnológica o que está atualmente em crise não é a linguagem poética e metalingüística (artes plásticas, música, drama, literatura), mas a linguagem referencial e analítica (jornalismo, História, economia, ciência). Esse impasse da linguagem referencial e analítica — vale dizer, a crise da crítica e da análise contemporâneas — se deve a dois fatores. Ele ocorre porque, de um lado, ainda não foi superada a crença tipicamente iluminista na total eficiência das ferramentas analíticas e no valor absoluto do veredicto crítico. Do outro lado, o mau uso do jargão referencial, freqüentemente manipulado de maneira apressada e desajeitada, só faz confundir o cenário, fazendo passar por crítica bem fundamentada meia dúzia de argumentos baseados em conceitos imprecisos e desfocados.

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As raízes da crise da crítica estão fincadas na arbitrariedade que sempre existiu entre as representações da linguagem e os objetos por ela representados. O signo não é confiável, garantem os lingüistas. No dia em que todas as pessoas sofisticadas e também as mais humildes, pautadas apenas pelo senso comum, perceberem que os frutos da linguagem não têm estatuto de verdade absoluta, nesse dia o crítico literário, o historiador, o filósofo e o cientista escreverão seus tratados da mesma maneira que o poeta, o dramaturgo e o ficcionista escrevem suas peças literárias: com saudável desconfiança. Mas até que esse dia chegue o discurso científico sério é a melhor ferramenta que nós temos para manter os lobos a distância, o fogo aceso e o lar protegido.

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Salvo raras exceções, o espaço reservado à crônica, nos jornais e nas revistas de grande tiragem, tem sido por excelência o espaço do senso comum. Não importa se o cronista, ocupando agora com regularidade a cadeira do crítico, esteja se tornando também especialista na análise de livros, filmes, peças, CDs ou obras de arte. O conhecimento espontâneo e informal, por ser a plataforma comum na qual assentam-se todos os leitores do jornal ou da revista, é o que tem coordenado seu discurso. Esse é o grande problema da coletânea de crônicas de Ferreira Gullar recém-republicada, sobre artes plásticas e poesia: a falta do rigor científico, a primazia sedutora desse conhecimento espontâneo e informal, o triunfo tranqüilo das crenças silenciosas. Para ser compreendido por uma grande parcela de leitores, senão por todos, Gullar obrigou-se a fazer uso do vocabulário médio, da argumentação média, da afetividade média. Suas crônicas, apesar de certas passagens instigantes, no geral deixam a desejar devido à superficialidade e ao mau uso do jargão referencial.

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Rigor científico é sinônimo de esterilidade e aborrecimento, duas ervas daninhas muito encontradas nos jardins universitários? Na grande imprensa, é possível refletir sobre arte e poesia (música e teatro, arquitetura e cinema) de modo consistente, porém sem esquecer que estamos no território do leitor não especializado? Essas são as perguntas que surgiram durante a leitura do breve Sobre arte Sobre poesia (uma luz no chão), perguntas que ficaram até agora zanzando pela sala. Não estou sequer insinuando que Gullar devia ter exercitado o academiquês mais furioso em suas crônicas não menos furiosas sobre o atual mercado de artes plásticas. Acredito que é possível escrever com profundidade, leveza e bom humor sobre qualquer tema do nosso patrimônio intelectual, do serialismo de Webern à teoria das cordas, da economia de mercado à aplicação terapêutica das células-tronco. Isso se chama divulgação científica. Estou apenas me perguntando se a equação que relaciona o superfaturamento das grandes empresas jornalísticas à superficialidade das matérias veiculadas jamais vai caducar.

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Sobre arte Sobre poesia (uma luz no chão) pertence à coleção Sabor Literário, criada pela José Olympio para acolher as obras fora de catálogo, e até mesmo certos textos antigos ainda inéditos em livro, de autores renomados do Brasil e do exterior. Dela também fazem parte, entre outros títulos, As religiões do Rio, de João do Rio, Caminhando, de Thoreau, e Cartas de viagem e outras crônicas, de Campos de Carvalho. O volume assinado por Ferreira Gullar reúne dois livros cuja edição estava esgotada: Uma luz no chão, de 1978, agora rebatizado de Sobre poesia, e Sobre arte, de 1982, coletânea reformulada para a presente edição: saíram as crônicas mais datadas e chegaram as mais recentes.

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Sobre arte são 24 crônicas que tratam, geralmente em tom indignado (Umberto Eco diria: em tom apocalíptico), da sempre espinhosa questão das vanguardas, da sempre áspera questão da mercantilização da arte, da sempre atormentada questão da crise da crítica, da sempre pontiaguda questão da arte conceitual e da sempre sufocante questão da cadeia produtiva da arte. Mas esses problemas não são novos. Também não é nova a estratégia de reapresentá-los em tom indignado, como se a solução desses antigos impasses dependesse da vontade do leitor. Pior ainda: a questão da arte conceitual, ou a da arte ingênua, ou a das novas técnicas artísticas, ou a das bienais, ou a das instalações, tudo isso é reapresentado com o vocabulário do senso comum, cada texto sugerindo perigoso parentesco com, por exemplo, os discursos políticos — enfáticos, ultrajados, eternos, eleitoreiros — sobre a seca do nordeste ou a má distribuição de renda no Brasil. Mas é claro que esses temas (incluindo a seca e a má distribuição de renda) são muito mais complexos do que supõe a vã filosofia do leitor. Como Gullar não é candidato a nada, tenho certeza de que ele não escreve assim para se eleger. Estou certo de que o que cerceia suas reflexões são as limitações da caríssima página impressa. Quanto maior a publicação, maior é o seu custo de produção e mais leitores pagantes ela tem que cativar. Ela significa seus colaboradores, que são implícita ou explicitamente orientados a manter os artigos numa temperatura suportável para o maior número possível de leitores.

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As generalizações perigosas, as conclusões idealizadas e as metáforas desgastadas banalizam os fenômenos do universo da arte, simplificam seus conflitos. Exemplos dessa abordagem redutora, retirados daqui e dali do livro em questão: o artista é alguém que descobriu que as coisas não são apenas o que se vê, o artista é alguém que quer romper os limites de sua individualidade, toda obra de arte é um ser vivo, a arte conceitual de hoje apenas repete tediosamente o que já foi feito pelos dadaístas, ser mercadoria não faz parte da essência da arte, as exposições de arte são agora puro espetáculo, as megabienais funcionam como as feiras de automóveis e de outros produtos industriais, o grande artista quando está concebendo sua obra não a pensa como fazendo parte de uma exposição, o espontâneo trabalho dos artistas ingênuos ensina que não é a erudição que produz arte, o artista quer mostrar que cada coisa está ligada a todas as outras e ele é parte desse todo, a relação entre os artistas extravagantes e a tevê e a imprensa é espúria e perniciosa, quem transforma os objetos artísticos em mercadoria não é o artista mas o sistema em que ele está inserido, na arte é possível isolar o caráter nacional e o internacional. “Será mesmo?”, eu me perguntei a cada página. Será que a arte conceitual de hoje apenas repete tediosamente o que já foi feito pelos dadaístas? Será que, no auge do capitalismo, ser mercadoria não faz parte da essência da arte? Será que em certos casos a erudição, tanto quanto a ingenuidade em outras circunstâncias, não produz arte? Será que o caráter nacional não é a impressão digital do polegar internacional e vice-versa? Ainda faz sentido comparar a obra de arte a um ser vivo? Ainda faz sentido falar no impressionismo, no cubismo, no concretismo, como se fossem grupos fechados e coesos? Não valeria a pena falar das contradições que animaram cada um desses movimentos, de maneira que a História da arte se mostre como realmente é: caótica e plena de conflitos, como a própria vida?

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O eixo de Sobre arte são essas sentenças (uso o termo no sentido de veredicto irrecorrível) facilmente encontráveis na boca e na mente dos leitores médios. Cada sentença apontada acima até propõe uma discussão profunda, ou seja, a avaliação dos interstícios e das dobras do universo da arte, mas essa discussão não se realiza no livro. Resultado a curto prazo: o leitor médio, ao reconhecer nessas crônicas parte de seu próprio conhecimento intuitivo e assistemático — numa palavra, mítico —, passa a acreditar que também entende de arte (da mesma maneira que certos leitores médios, depois de lerem várias resenhas banais que confirmam suas noções corriqueiras, imaginam que entendem de literatura). Esse leitor cheio de verdades baseadas mais na superstição do que no raciocínio nem de longe desconfia que nada é uno no campo da arte, que nele tudo é multifacetado. Substantivos como mercado, vanguarda, artista, indivíduo, erudito, ingênuo, capitalismo e massificação referem-se a fenômenos muito vastos, cujas raízes estão espalhadas por várias áreas do conhecimento: filosofia, psicologia, antropologia, História, política, economia, ética… E estética. Aliás, vez ou outra, Gullar descuida também do uso mais funcional desse termo. Como Luigi Pareyson alerta no seu estudo Os problemas da estética, a distinção entre estética e poética é importantíssima, pois representa uma precaução metodológica cuja negligência conduz a resultados lamentáveis: “A estética tem caráter filosófico e especulativo enquanto a poética, pelo contrário, tem caráter programático e operativo”. Ao falar da estética surrealista ou da estética pop o senso comum toma como conceito geral de arte o que não é senão determinado programa de arte, no caso, a poética surrealista e a poética pop.

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A proposta de Sobre poesia (uma luz do chão) é diferente: são 30 pequenas páginas repartidas em três curtos depoimentos intitulados Introdução, Poesia: uma luz do chão e Poesia e realidade. Ilustrando esse material, alguns poemas manuscritos do autor. Apesar de as rápidas generalizações sobre os movimentos literários das últimas décadas provocarem desconforto semelhante ao provocado pelas crônicas sobre arte, há aqui algo que quebra esse leve mal-estar. É a figura do próprio autor, posta agora no centro do discurso. São três textos em que as passagens narrativas equilibram as dissertativas. Neles Gullar revisita a cidade natal ­— São Luís, no Maranhão ­—, a infância, o primeiro contato com a literatura, o concretismo, o neoconcretismo, o Centro Popular de Cultura, o exílio político, o marcante Poema sujo… Sim, nesse rápido acerto de contas com o passado as armadilhas da retórica da memória estão bem visíveis e sedutoras. Mas isso não rouba o prazer da leitura. Na verdade reforça-o, talvez porque até mesmo para o senso comum a História e as histórias estejam ficando hoje cada vez mais parecidas. Pelo visto a ilusão da ficção, seja ela autobiográfica ou não, nunca perderá o charme.

Sobre arte / sobre poesia
(Uma luz do chão)
Ferreira Gullar
José Olympio
167 págs.
Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho