Duas vezes Cabral

Ensaios discutem a obra de João Cabral de Melo Neto através de olhares bem distintos
João Cabral de Melo Neto por Osvalter
30/07/2015

João Cabral de Melo Neto habita o centro e o alto da história da poesia brasileira. Autor de obra vasta, regularmente publicada, que impressiona pela originalidade e pela solidez de sua dicção, Cabral alcançou, milagrosamente, prestígio dentro e fora das instituições acadêmicas, feito que para a literatura brasileira do século 20 costuma oscilar entre o improvável e o impossível. Não se afirma com isso que o autor de Pedra do sono desfrute de grande popularidade, mas não se pode ignorar que Morte e vida severina, por ele publicada na década de 1950, está entre os livros de poesia mais vendidos da história do Brasil, e, adaptado, chegou ao teatro e à televisão. No outro lado, dentro do saber institucional, ainda em vida o autor testemunhou a grande atenção crítica de que sua obra desfruta, atenção essa efetivada pelo incalculável número de teses e dissertações consagradas ao estudo de sua obra, o que também se comprova pelo vultoso ensaísmo produzido por especialistas renomados. Registre-se ainda que, durante trinta anos, João Cabral de Melo Neto ocupou a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, instituição que, embora acadêmica já em seu nome, parece gozar de mais prestígio fora da academia (falo do conjunto das universidades) do que em seu interior.

A relevância da obra poética em questão ganha mais evidência pela publicação de dois novos estudos por ela motivados: Imaginando João Cabral imaginando, de Cristina Henrique da Costa, e João Cabral: uma fala só lâmina, de Antonio Carlos Secchin. Ainda que entre si haja substantivas diferenças de concepção e de qualidade na execução interpretativa, os dois ensaios confirmam a centralidade do poeta pernambucano em nossa literatura, e dão a ver a complexidade e a beleza de sua arte poética.

O poeta imaginado
Apresentado como desdobramento inovador de uma tese de doutoramento defendida na França — João Cabral de Melo Neto: de l’homme qui vient à l’image —, em 2002, Imaginando João Cabral imaginando é uma audaciosa exegese da obra cabralina, visto que contesta sua cristalizada imagem de objetivista e, acrescenta a autora, realista. Ao esclarecer o propósito de redigir um trabalho legível que explicasse a controvérsia na qual se amalgamam um Cabral “tão fácil e prazeroso” e outro “tão difícil e intelectual”, Cristina Henrique da Costa informa seguir por uma via até então inviável, pela qual não passaram outros intérpretes do poeta pernambucano: “Em nome dessa política do legível, o livro discute abertamente com a crítica cabralina, e questiona o conceito de racionalidade que sempre se aplicou ao poeta”. Mais adiante, a intenção refutadora é aprofundada. A citação é longa, mas seu emprego revela, além da referida intenção, outros aspectos que pedem observação:

João Cabral, é inegável, nunca se cansou de imaginar um mundo pessoal, ou seja, um mundo afetivo, pleno de sentimento, e subjetivo. A palavra está lançada: trata-se aqui de desfazer o mito do poeta objetivo e realista (que ele felizmente não foi), mostrando que houve um mal-entendido: a linguagem metapoética, que “define” conceitualmente a poesia que se lê em João Cabral, é exatamente nele o processo que é preciso ultrapassar. E, aliás, é para essa ultrapassagem interna e corruptora de teoria que o poeta vive apontando. Tanto a vontade de fazer poesia quanto a veemência no dizer poético são valores que nele se fundam na sua capacidade de imaginar “outra coisa”, solicitando a mobilização do subjetivo. O desafio de ir além das palavras e o gosto de continuar fazendo nada têm de racional, de conceitual, de realista. Pelo contrário, são mesmo incursões imaginativas do desconhecido, como num sono profundo.

O conjunto de afirmações chama atenção especialmente pelo que entra em colisão com a face literária de João Cabral, construída por ele e por seus estudiosos. Afinal, ao poeta antilírico, termos como “pessoal”, “afetivo”, “pleno de sentimento” e “subjetivo” — postos assim, numa só tacada — soam incompatíveis não apenas por destoarem do que lhe é habitual, e sim por imprimirem ao destom uma inegável exacerbação. Por essas afirmações, não se trataria de dizer que João Cabral não foi apenas o que se convencionou, e sim que João Cabral nada foi daquilo que se formulou a seu respeito.

A tese de Cristina Henrique da Costa, portanto, figuraria como um estudo revolucionário, mas a insuficiência de seus recursos desautoriza a hipótese. Observe-se, inicialmente, uma contradição de caráter estrutural, que se dá, ironicamente, pelo fato de a autora considerar apenas parcialmente as eventuais contradições em torno do poeta em destaque: ele, tão fácil e tão difícil, tão prazeroso e tão intelectual (valho-me dos termos dispostos pela autora), é concebido pela tese como apenas subjetivo e emotivo, e não como um possível emaranhado ou como hipotética alternância de razão e sentimento: “No presente ensaio, tentarei mostrar que esse alguém, longe de ser um espírito racional ou neutro, antes foi um sentimental”. Uma vez que, acerca do que se diz nas partes citadas, a autora não recorre a exemplos com solidez, o leitor minimamente familiarizado ao universo cabralino verificará extrapolações que não se efetivam como desfazimento do “mito do poeta objetivo e realista”.

É provável que tais extrapolações — a décima quinta nota do capítulo Os primeiros poemas diz, ao citar O cão sem plumas, que “Os cachorros de João Cabral são símbolos da existência afetiva” — se fundem numa tentativa de moldar o objeto estudado à feição do sujeito estudioso. Os textos de dedicatória, agradecimentos e de introdução do livro, por exemplo, exibem forma discursiva repleta de subjetividade — “Não consigo apresentar nenhum trabalho em 20 minutos”, diz-se no primeiro; “Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião”, sentencia o último. Há nisso um traço de personalidade ou de escrita (ou de ambos) inevitavelmente estendido ao que se estuda: “João Cabral sabe o que faz, e não sabe do conceito nem da teoria, e muito menos da objetividade”; “Poeta incapaz de teorizar sem sofrer com o terrorismo que se esconde nas mais inocentes como nas menos inocentes teorias. Vivendo a humilhação do recalque do sentimento: o desafio é submeter quem o recalca”; “Achei João Cabral muito teimoso na forma de escrever; resolvi ser muito teimosa na forma de ler”.

Com um texto correntemente confuso e apinhado de generalizações, muitas das quais tocam no ingênuo — “Há anos ninguém dá conta de João Cabral” — e no óbvio — “O leitor só acredita no que quiser acreditar” —, Imaginando João Cabral imaginando não alcança o êxito interpretativo anunciado por seu ousado propósito.

O poeta interpretado
João Cabral: uma fala só lâmina, de Antonio Carlos Secchin, é por assim dizer uma obra completa do crítico sobre o poeta. Do livro, consta, inicialmente, uma versão revista e aumentada de João Cabral: a poesia do menos, tese publicada em 1985. A ela se somam, numa segunda parte, cinco ensaios publicados esparsamente, e, como precioso anexo, há ainda um caderno iconográfico, com a fotografia da primeira edição de cada um dos livros cabralinos, todos de propriedade do ensaísta, também notabilizado pela bibliofilia. A mais, destaque-se o sofisticado acabamento editorial do livro, que o enriquece visualmente.

O que se publica agora é um trabalho tão exato quanto transbordante. Aparentemente, os adjetivos não se coadunam, sendo especificamente o segundo incompatível com o poeta e crítico literário, dada a elegância de sua acurada linguagem, infensa a excessos. Mas o que transborda é também o que se manifesta com intensidade, e se em João Cabral de Melo Neto se encontra uma escrita contida e vibrante, não será diferente o encontrado no estudo de Secchin, pois nele o que explica também comove, pela argúcia da percepção, pelo engenho do raciocínio e pela beleza da linguagem:

Não há na poesia brasileira uma linhagem nítida em que comodamente se possa instalar a obra de João Cabral de Melo Neto. Essa espécie de orfandade, que faz dele um autor-ilha, não implica, insistimos, uma trajetória criadora isenta de história, inclusive porque uma ilha só se percebe em relação ao continente. Em face desse continente literário, com suas famílias e genealogias bem assentadas, a ilha cabralina é uma poesia encharcada de silêncio por todos os lados. Autor situado no tempo, mas não sitiado por ele, capaz, portanto, de grafar-lhe as marcas da recusa, da negação, da dissonância.

O emparelhamento entre o ensaio de Antonio Carlos Secchin e a poesia de João Nabral de Melo Neto é dos feitos mais difíceis para estudiosos em geral. Do crítico, espera-se a originalidade que lhe revele autonomia, ao mesmo tempo em que se exige dele uma capacidade interpretativa coerente com o objeto de estudo, para que o analista não violente a coisa analisada. Em João Cabral: uma fala só lâmina, esse encontro dialógico se dá de maneira estrutural, já sendo exibido em suas palavras iniciais, quando o dizer da crítica abraça o dizer da obra

Este livro procura interpretar a poesia de João Cabral de Melo Neto a partir da hipótese de que ela se constrói sob o prisma do menos. Com isso, queremos dizer que a criação de seus textos é deflagrada por uma ótica de desconfiança perante o signo linguístico, sempre visto como portador de um transbordamento de significado (…). Se a obra cabralina comporta esse viés de análise, é evidente que nele não se esgota. Por isso, sobre enfatizarmos os processos especificamente ligados à nossa proposta geral, procuramos depreender outros aspectos a ela não imediatamente vinculados, mas também relevantes para a compreensão da poesia do autor.

Em seu trabalho interpretativo, Secchin analisa todos os vinte e três livros de poesia publicados pelo poeta pernambucano, reservando um capítulo a cada um deles, indo de Primeiros poemas (composto por textos de 1937, mas só lançado em 1990, pelo que é designado o mais antigo e mais recente livro do autor) a Sevilha andando, publicado em 1989. No percurso, é espantoso verificar o adensamento da escrita cabralina, e como, a partir de certo momento, o adensamento se torna coeso, e como a coesão não incorre em fórmulas repetitivas. Já que estamos falando da paridade entre estudado e estudioso, espanta igualmente a capacidade do crítico de captar minudências de livros e poemas, e construindo a partir delas significados que reverberam na macroestrutura da arte poética de João Cabral. A esse respeito, são pedagógicos os capítulos A família reescrita (a demonstrar as relações estruturais entre A escola das facas, de 1980, e o livro que o precede, Museu de tudo, de 1975), e Sob o signo do quatro, dedicado a Serial (1961), no qual se mostra como toda a concepção e a estruturação do livro se dão de modo quaternário.

Para o espaço desta resenha, não seria possível (nem recomendável) traçar o mesmo caminho, para ressaltar os principais destaques que Antonio Carlos Secchin faz da obra em rígido progresso. Vale, então, sublinhar duas passagens capitais para a formação do poeta, quando ele conciliou rigor teórico e referencialidade. O cão sem plumas (1950) é um curto livro composto por um poema longo, e ele marca uma substantiva vertente da poética cabralina: a reflexão a respeito dos problemas sociais pernambucanos. O cão sem plumas (o poema) é um longo curso-discurso feito pelo e sobre o rio Capibaribe, e nele, como nos outros escritos de João Cabral sobre mazelas coletivas, não se ergue o clamor da piedade. A seu respeito, Secchin observa: “Mais do que qualquer obra anterior, é O cão sem plumas que exprime com maior consistência as relações entre discurso poético e espaço referencial”. Essas relações implicam em outras, como as que envolvem poesia e comunicabilidade. Sobre esse ponto, Secchin diz ser O rio, de 1953, o texto que provavelmente “responde mais de perto às reflexões teóricas de João Cabral sobre a necessidade de restabelecer o circuito entre o público e a poesia”.

Como João Cabral de Melo Neto habita o centro e o alto da história da poesia brasileira, o livro de Antonio Carlos Secchin habita o centro e o alto dos estudos cabralinos.

Imaginando João Cabral imaginando
Cristina Henrique da Costa
Unicamp
456 págs.
João Cabral: uma fala só lâmina
Antonio Carlos Secchin
Cosac Naify
480 págs.
Antonio Carlos Secchin
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1952. É professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e desde 2004 ocupa a cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras. Publicou, dentre outros, os livros Todos os ventos (poesia) e Memórias de um leitor de poesia (ensaios).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho