Duas trágicas donzelas

Nas novelas "Ássia" e "Clara Militch", Ivan Turguêniev canalizou o que entendeu ser a essência trágica feminina na juventude
Ivan Turguêniev por Fabio Miraglia
01/06/2024

No mundo atual, no universo dos livros e dos praticantes obstinados do hábito de os ler, falar em literatura russa e conhecê-la é algo bastante natural, vale dizer até mesmo incontornável se o assunto é tratar de grandes e influentes autores. Mas nem sempre foi assim. Seja pela barreira linguística, ou por questões geográficas, ou mesmo econômico-sociais, durante muito tempo o que se produzia em território russo não repercutia pela Europa, e pelo resto do mundo, como o faziam sem muita dificuldade as obras inglesas e francesas, por exemplo. Não “fazia escola” pelas colônias americanas, como lograram fazer aquelas duas literaturas, e o caminho para que enfim os autores russos fossem lidos e apreciados não foi aberto com facilidade.

Para que nomes como Tolstói, Dostoiévski e Tchekhov viessem a se tornar o que são hoje no âmbito mundial da literatura, foi precioso abrir caminho, de modo que a Europa, e depois os demais continentes, soubessem que a velha Rússia abrigava autores de primeira grandeza, cujas obras tinham muito o que dizer ao resto do mundo. O início dessa empreitada se deu no contexto em que o Romantismo vigorava pela Europa, e estava em seu auge. Foi então que autores russos de envergadura, como Aleksandr Pushkin, ganharam notabilidade pelo continente; um outro nome que inquestionavelmente contribuiu para a visibilidade da literatura do país além das fronteiras foi Ivan Turguêniev.

Turguêniev é, dentro os grandes russos, o que talvez mais intensamente se relacionou com a literatura europeia, seja nas relações que estabeleceu com figuras célebres, como Flaubert e Zola, por exemplo, seja no próprio aspecto estético-formal de sua obra. Disso dão conta duas novelas de destaque, importantes cada uma a sua maneira na trajetória do artista, que chegam às estantes brasileiras pela Editora 34 e Grua: Ássia e Clara Militch, respectivamente.

Duas donzelas singulares
Antes de ser o autor do consagrado Pais e filhos, Turguêniev lutava contra sua condição: a de se saber um jovem talento promissor, contudo praticando sua arte de forma mais diletante que profissional.

Nesse contexto de sua trajetória, a novela Ássia, inspirada num episódio verídico de sua vida, configura-se um ponto de virada essencial; após ela é que o autor firmará os passos e escreverá suas grandes obras, incluso entre elas o célebre romance pelo qual é conhecido.

Ássia é uma novela consistente, tanto quanto Clara Militch, ambas mais caudatárias da prosa romântica que do Realismo. Nessa novela acompanhamos o narrador-personagem N., de origem russa, em sua estada numa região alemã, após uma peregrinação irrequieta pela Europa, sem outro motivo que não um desassossego interior e um capricho por ver pessoas e conhecer seus costumes. Já esse aspecto o liga fortemente ao autor. O que o retém em terras germânicas não é, contudo, o local e seus atrativos inerentes, mas um casal de irmãos conterrâneos com quem trava conhecimento. Gáguin, o irmão mais velho, é um pintor amador, um jovem apaixonado pela pintura, mas sem a disciplina necessária para o levar das leves e despretensiosas pinceladas ao domínio técnico e profissional:

Não estudei como devia, é verdade, e a maldita indolência eslava tem seu preço. Enquanto sonhamos com o trabalho, voamos como a águia, é como se pudéssemos mover o mundo. Mas, quando passamos à execução, sentimo-nos imediatamente fracos e cansados.

Como soam dolorosamente verdadeiras tais palavras aos que praticam toda e qualquer arte! Pressente o leitor, relativamente informado da trajetória inicial do autor, que nesta novela o narrador-personagem e Gáguin são extensões do escritor, em seus diferentes aspectos.

Contudo, o verdadeiro trunfo da obra está em Ássia, a irmã mais nova de Gáguin, que desperta em N. sentimentos conflitantes. Toda complexa e rica interioridade de um personagem está presente nesta garota meio espevitada, meio melancólica, a correr e saltitar em torno dos dois jovens, buscando chamar a atenção, mas também ocultando um intenso universo interior.

É interessante a mescla de sentimentos que a garota rebelde, que tangencia a nevropatia, provoca no personagem principal:

Ássia parecia evitar-me, mas já não se permitia nenhuma daquelas travessuras que tanto me haviam surpreendido nos dois primeiros dias em que nos conhecemos. Dava a impressão de, no íntimo, estar amargurada ou perturbada; até ria menos (…) Em suma, parecia-me uma criatura meio enigmática. Com seu orgulho exacerbado, atraía-me até mesmo quando eu estava irritado com ela.

O mundo oculto dessa “criatura meio enigmática” é o que magnetiza a atenção do leitor que se aventurar por essa novela, mas a grande questão de que ela trata é da incapacidade do jovem protagonista de, a despeito de seus intensos sentimentos, ser incapaz de transcender sua natureza de “homem supérfluo”, isto é: o homem que sabe ter sentimentos nobres e inteligência apurada, mas que permanece em imobilidade quando chamado pelo mundo real a agir, a tomar um passo decisivo em sua vida.

Clara Militch
De certa forma, é o que também ocorre nesta que vem a ser a última obra escrita por Turguêniev, Clara Militch. Na figura do jovem Iákov temos, mutatis mutandis, as características inerentes ao “homem supérfluo”, preso ao seu solipsismo existencial, incapaz de dar o passo definitivo em direção à ação.

Nesta novela acompanhamos o jovem autodidata que vive uma vida reclusa, na companhia da tia, focado exclusivamente em seus estudos. Instado pelo único amigo que se permite ter, acaba aceitando comparecer em uma matinê lítero-musical (ensejo para que o autor destile mordazmente alguns petardos aos círculos sociais próprios de seu país); nessa matinê, reencontra uma figura que, em outra ocasião, na residência de uma “mecenas” da arte local, havia entrevisto. Trata-se de Clara Militch, atriz promissora.

Sua performance ali não é de natureza a inebriar o exigente rapaz, mas Iákov logo tem a atenção prendida pela exótica beleza da moça, de ascendência cigana. Porém, tanto como na novela anterior, aqui a relação estabelecida entre Iákov e Clara reveste-se, por parte do rapaz, de uma ambiguidade desconcertante:

No seu modo de ver, a imagem dela não coincidia absolutamente em nada com a da mulher, da moça ainda desconhecida a quem ele se entregaria por completo, que o amaria, que se tornaria sua noiva, sua esposa… Ele raramente sonhava com isso: era virgem de corpo e alma, mas a figura da pureza que então surgia na sua imaginação era evocada por outra imagem, a da falecida mãe.

Como se vê acima temos, para além dos impulsos contraditórios que dividem Iákov, todos os elementos próprios de um Romantismo tardio. O anseio pela pureza, pelo virginal, que tanto tortura o jovem romântico, e que parece apenas ser alcançado pela figura materna. Acresce a tudo isso o elemento sobrenatural, que de forma inusitada, a certa altura da narrativa, conduz os acontecimentos a seu dramático desfecho.

À parte todos esses elementos tipicamente românticos, a força real da novela é, não apenas a forma com que traça a pintura dos perfis sociais que brevemente se fazem presentes, mas a análise interior do protagonista:

A pureza de espírito e o “idealismo” de Iákov fascinavam-no, talvez em contraste ao que ele encontrava e via todos os dias; ou talvez nessa atração pelo “idealismo” do jovem refletia-se, na verdade, o seu sangue, de todo modo, germânico.

Sem falar, evidentemente, da personagem título, em toda sua singularidade:

Duas semanas antes do casamento (ela tinha só 16 anos) foi à casa do noivo e, cruzando os braços com os dedos martelando os cotovelos (era sua pose favorita), de repente, deu-lhe um bofetão na bochecha rosada com sua mão grande e pesada! (…) “Por quê?”, ela pôs-se a rir e foi embora. (…) Corri até ela e falei: “Kátia, querida, o que deu em você?”. E ela me deu como resposta: “Se ele fosse homem de verdade, teria batido em mim, mas aquilo é uma galinha morta”.

Cotejar as duas donzelas dessas distintas novelas é um exercício interessante. Nelas, aparentemente Turguêniev canalizou o que entendeu ser a essência trágica feminina quando na flor da idade. Ássia e Clara têm em comum essa intensidade das emoções, essa precipitação no agir, esse esforço em consumar seus anseios tomando a iniciativa nas ações. O trágico da condição de ambas é verem-se às voltas com jovens invulgares, mas incapazes de serem “homens de ação”. No interior de ambos, N. e Iákov, há inteligência e riqueza de ideias, mas vacilam sempre quando chamados à atitude diante do mundo real, no simples cotidiano.

Ocorre que a natureza dessas donzelas não admite nada menos que o impetuoso, a disposição positiva. A primeira vez tem que ser a última chance. Quando postas então diante da desoladora realidade, ambas reagem com o ímpeto que desejaram encontrar em estado puro no objeto de desejo delas.

O tema amoroso é assim matizado de um trágico tom para Turguêniev. Em ambas as novelas, o plano das ideias não se coaduna com o dos sentimentos, e o amor limita-se a ser uma pintura bela, até mesmo idílica, mas apenas uma pintura.

Vale ressaltar ainda que a arte é tema transversal importante em ambas as novelas, e a reflexão sobre sua prática e de que forma deva se dar está bem presente. Não só em Ássia, como acima demonstrado, mas também em Clara Militch:

Os verdadeiros artistas vivem somente para a arte, para o teatro… Todo o resto empalidece diante daquilo que eles consideram sua vocação…

É por certo uma noção que acompanhou o autor durante muito tempo, não sem um tanto de angústia, depreende-se.

Ambas as novelas têm envergadura, mas certamente não estão dentro do que justificaria a inserção do autor no cânone da literatura mundial. Ainda assim, são obras de qualidade, ótimas portas de entrada para sua arte.

Ássia
Ivan Turguêniev
Trad.: Fátima Bianchi
Editora 34
96 págs.
Clara Militch
Ivan Turguêniev
Trad.: Giselle Moura
Grua
112 págs.
Ivan Turguêniev
Nasceu em 1818, em Oriól (Rússia). Filho de proprietários de terras, teve o conforto suficiente para se dedicar a sua carreira literária, bem como o ensejo de visitar diferentes países europeus, sendo um dos autores russos que mais manteve diálogo com a tradição literária do velho continente, bem como tornou-se amigo de grandes figuras dessa tradição em seu tempo, como Flaubert, Sand, James, Zola etc. Estreou no romance em 1856 com Rudin. Sua principal obra é Pais e filhos, publicado em 1862. Faleceu em 1883, de câncer.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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