Duas tessituras opostas e tão semelhantes

"Pedro Páramo", do mexicano Juan Rulfo, e "Morte na água", do japonês Kenzaburo Oe, entrecruzam vivos e mortos, memória e realidade
Juan Rulfo, autor de “Pedro Páramo”
02/06/2021

Acabei de ler Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, e me pergunto como foi possível que livro tão modificador escapasse entre as malhas das minhas leituras. Ninguém me aconselhou esse romance, nem mesmo Affonso, a quem pertence o exemplar que me caiu nas mãos — um exemplar com a folha de rosto arrancada, que pode ter sido de outra pessoa, comprado na Livraria do Estudante, em Belo Horizonte, e impresso em 1969. Tudo acrescenta sentido quando nos apropriamos de um livro através de tato, olhos e leitura.

Como diz Otto Maria Carpeaux na introdução: “Os personagens do romance são mortos e vivos ao mesmo tempo, ou antes: não há tempo”.

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe me disse, e eu prometi que viria vê-lo logo que ela morresse. Apertei suas mãos (…) para as minhas mãos custou trabalho libertar-se de suas mãos mortas.

Assim começa e assim continua o mais mexicano dos romances desse país que, único no mundo, tem um culto festivo da morte. Vivos de mãos dadas com os mortos, dialogando com eles, fazendo cobranças e recebendo instruções, amando-os e sendo amados eternamente, perguntando o que os matou, se a aflição ou as murmurações, falando de enterros e flores e terra como se nada, “ruídos. Vozes. Rumores. Canções longínquas: minha noiva me deu um lenço/ com bainhas de chorar”.

Comala é uma cidade vazia, mais morta que decadente, há muitos, incontáveis, anos submetida ao comando de Pedro Páramo, agora velho e encastelado em sua propriedade Media Luna. Propriedade imensa que Pedro, homem incialmente pobre, obteve através de sucessivas apropriações de terras alheias mediante extorsão, pressão e assassinato. Quando o romance começa, Miguel Páramo, o filho reconhecido e amado, acabou de morrer numa queda de cavalo. E o animal, tendo sido sacrificado, continua galopando noite afora e escuro adentro em busca do dono. Todos em Comala ouvem o ecoar de seus cascos sobre a terra. Mas Miguel era mais feroz que seu pai. Estuprador compulsivo, mais de uma vez assassino, ninguém chorará seu desaparecimento.

Não é só a historia que impacta. É, como sempre em literatura, a maneira de contá-la.

Os diálogos surgem abruptos, em blocos, sem que por vezes se saiba quem está falando, se vivos ou mortos, e o que aquele diálogo acrescenta à história que está sendo narrada. É uma lenta tessitura, em que muitas vozes se entrecruzam como fios, sendo que algumas não são identificadas e outras têm mais de um nome. Há murmúrios fantasmagóricos nas ruas, murmúrios que podem matar, que já mataram. Há uma solidão nas casas que de repente se revelam vazias. E o vento sopra constante, pastoreando nuvens.

Um exemplo de diálogo:

— Não me ouves? — perguntei em voz baixa.

E sua voz me respondeu:

— Onde estás?

— Estou aqui , em teu povoado. Junto de tua gente. Não me vês?

— Não, filho, não te vejo.

Sua voz parecia abranger tudo. Perdia-se mais além da terra.

— Não te vejo.

Fim do bloco, fim do diálogo.

A linguagem poética e feroz expõe um mundo de oprimidos e algozes, que se reproduz acima e abaixo da terra, um mundo de ilusões que para nada serviram.

Reproduzo parte do texto da quarta capa, que se adapta como pele ao nosso Brasil tão desigual:

Este mundo que esmaga as pessoas por todos os lados, que vai esvaziando punhados de nosso pó aqui e ali desfazendo-nos em pedaços como se orvalhasse a terra com nosso sangue. Que fizemos? Por que apodreceu nossa alma?

A brutalidade e a delicadeza
Agora estou lendo Morte na água, do autor japonês contemporâneo Kenzaburo Oe, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Este romance também entrecruza vivos e mortos, memória e realidade. E acrescenta a este entrecruzar a transposição de uns e outros para a linguagem teatral, agindo como terceiro olho. Mas quanta diferença no modo de narrar!

O alter ego do autor, o também escritor Kogito Choko, quer extrair um romance da morte do seu pai por afogamento, projeto que vem adiando desde a juventude. Para isso, retira-se na casa familiar da floresta, próxima ao rio onde em noite de chuva e de lua cheia o pai meteu um bote na água, entrou nele, e acabou se afogando na correnteza. Conta, para alavancar o projeto, com uma mala de couro vermelho legada pela mãe, para só lhe ser entregue dez anos depois do seu falecimento. Ao abrir a mala, que imaginara cheia de documentos e de cartas, começa a dialogar com os mortos, que se fazem vivos novamente, e cruza coisas da vida do pai com a história do seu país. O romance que pretendia escrever, História de um afogamento, não será escrito.

Enquanto Rulfo escreve com a aspereza e a brutalidade que caracterizam os latino-americanos, Kenzaburo molha a pena na delicadeza nipônica. Mais palavrosa e menos cortante, menos surpreendente e mais envolvente, onde a poesia impera, aberta a diferentes interpretações.

Quanta diferença nos diálogos! Que no japonês se fazem longos, quase intermináveis. Basta dizer que uma personagem importante fala com o escritor, sem qualquer interrupção, ao longo de seis páginas.

Confesso minha dificuldade em avançar na leitura, depois do impacto de Pedro Páramo com sua escrita cortante. Mas a poesia me move a continuar.

São dois romances grandiosos, onde sentimentos e emoções, vivos, mortos e suas histórias se entrecruzam como fios de dois tecidos quase opostos: algodão áspero ao tato e suave seda.

Pedro Páramo
Juan Rulfo
Trad.: Eric Nepomuceno
José Olympio
176 págs.
Morte na água
Kenzaburo Oe
Trad.: Leiko Gotoda
Companhia das Letras
456 págs.
Kenzaburo Oe
Nasceu em 1935, no vilarejo de Ose, no Japão. Premiado desde sua estreia na ficção, quando recebeu o Akutagawa, publicou romances, contos e ensaios. Ganhou o Nobel de Literatura em 1994. Uma questão pessoal, Jovens de um novo tempo, despertai! e Morte na água são alguns de seus títulos lançados no Brasil.
Marina Colasanti

nasceu em Asmara (África), então colônia italiana, em 1937, chegando ao Brasil aos 11 anos de idade. Estreou na literatura em 1968 com o livro em prosa Eu sozinha. Em 50 anos de atividade literária, do ensaio à crônica, do conto à poesia, publicou mais de 50 títulos no Brasil e no exterior, sendo uma das autoras mais premiadas da literatura em todos os gêneros.

Rascunho