Duas cartas

A escritora Carola Saavedra e a psicanalista Luciana Salum conversam sobre as possibilidades da linguagem
Ilustração: Cássia Roriz
01/07/2023

As cartas publicadas nesta edição do Rascunho integram o livro Quando a vida não basta — Encontros entre literatura e psicanálise (ainda sem data de publicação), que reúne as conversas entre a psicanalista Luciana Salum e a escritora Carola Saavedra. Conversas que incluem cartas, fragmentos e breves ensaios, entre outras possibilidades. Um gênero hibrido e que dá formato ao caleidoscópio de ideias e descobertas que a literatura e a psicanálise podem provocar quando se encontram.

Querida Carola,

Reconhecer o trabalho de análise como um processo de escrita é ponto de partida para a minha leitura do teu romance O manto da noite.

Literatura, para mim, é a arte de nos conduzir, pela linguagem, ao limite do inteligível. É ultrapassar aquela fronteira das certezas e das identificações para questionar a noção de sentido.

O teu livro, Carola, não poderia ser, valorizando o que eu entendo por escrita e por literatura, nada menos do que subversivo.

É um texto afetado em sua sintaxe, em sua estrutura.

O que eu quero dizer com isso?

Que é um livro que rompe com a lógica fálica.

É uma escrita que perturba, no melhor sentido que poderia dar ao termo. No sentido de que transmitimos também, e, fundamentalmente, a partir do que perdemos.

O livro nos convida a um outro estado de consciência e, já aprendemos com os povos originários, ali está o saber.

A psicanálise bebe desta mesma fonte.

Para aceitar tal convite, o convite do teu livro, eu precisei me demorar em suas consequências.

Tomei ele como um grande caleidoscópio.

Foi necessário caminhar pelo livro. Não de uma forma linear. Precisei ir e vir no texto. Voltar ao início, recuperar o final.

Trago, portanto, um pouco deste efeito.

Embora eu tenha sido também apresentada como escritora, me reconheço muito mais como psicanalista. Explico para justificar que não teria como esse saber, o saber psicanalítico, não estar completamente atravessado pela minha leitura.

Sabemos que a psicanálise vem como uma resposta à invenção do sujeito moderno. Um grande interlocutor de Lacan foi Descartes. Uma resposta, portanto, a este sujeito que sabe de si, que é consciente de si.

E O manto, junto com a psicanálise, caminhando ao lado dela, é uma excelente crítica a esta noção.

(Ouvi rumores, inclusive, de uma autora que disse, em outro texto, ou talvez o mesmo, que pensava nas diversas possibilidades da escrita, de uma literatura deslocada do sujeito, onde tudo teria voz: o rio, a chuva, a floresta, o trovão, a capivara e até a cordilheira, eu acrescentaria.)

Teu livro coloca em xeque a noção de identidade e a noção de indivíduo.

A ideia de que eu seja igual a eu.

Mãe, portanto, não é igual a mãe.

E não estamos falando de tautologia.

Você faz uma fenda entre pensar e ser. Como quem pergunta ao leitor, bem psicanalítico, por sinal: “Quem disse que esse pensamento é teu?”; “Você não se mente vez por outra?”.

Evidentemente, temos uma tendência intuitiva em acreditar que nós somos nós. Mas, geralmente, não estamos assim tão seguros. Olhemos de perto, olhemos mais uma vez, voltemos ao início, em inúmeras situações hesitamos nisso sem sofrer por isso nenhuma dissociação.

Te pergunto, parafraseando você: “Como escrever sobre nós, se cada vez sabemos menos quem somos? (…) Em outras palavras, num mundo cada vez mais incerto, mais irreal, como abordar a realidade?”.

O manto da noite tem o individual e o social numa trança de impossível separação que convoca os mortos da história invocados pelos mortos da minha estória.

Numa travessia entre continentes, sempre em direção ao sul, marcamos a herança disfarçada por um acento a diferenciar pais e país.

Ainda com você: “Será que todas as histórias já foram contadas?”; “Será que todas as histórias sobre mães, sobre a mãe, já foram contadas?”.

Há inúmeros caminhos a serem feitos em busca da mãe.

Escutei certa vez que dizer mãe, na língua materna, evoca a própria mãe, evoca um lugar de origem, uma pertença. Geralmente tal busca vem somada a esta identificação. A segurança de uma identidade: Mãe é mãe.

Mas a mãe, a do livro, transborda tal sentido comum. Transborda a mulher que nos pariu ou que recebeu, por alguma razão, esse nome.

A mãe aqui vem com todos os retalhos, todas as histórias, com todas as distintas personagens: a mãe que não é a mãe somada a mãe que não foi a mãe.

É a junção de todas essas mulheres perdidas representada por esta que primeiro está morta, mas carregada pelo pai, no carro do pai, nos disse um sonho.

E depois passa a ser testemunha ativa de tantas transformações para que só num segundo momento ela possa, de alguma forma, estar escrita em mim e me ajudar a seguir com o manto que porta tamanha ancestralidade.

Eis o nosso querido Mito individual do neurótico.

Marca da impossibilidade de um caminho único, pois não se trata de meta. Caminhamos, e é ao caminhar por esses mundos estranhos que se misturam, por identidades que perdemos ou se transformaram, onde o sobrenatural faz do humano um para-aquém-do-humano, que nos aproximamos da errância como a única possibilidade de uma vida.

Te pergunto: O que precisa acontecer para ter acontecido alguma coisa?

Sua primeira memória é uma memória em trânsito.

É ao sermos atravessadas pelo espanto, todas as nossas certezas são postas em xeque. Parafraseando Montaigne, você não pinta o ser, pinta a passagem.

Não é justamente esse o conceito de sujeito em Lacan?

Isso que surge na passagem de um significante a outro?

Numa recusa a este mundo hipertrofiados de eus, você valoriza o efeito.

É como a dança. Ela não se dá no passo, mas no entre, na costura possível de um passo a outro.

A familiaridade, portanto, é acompanhada do incômodo existente na lacuna de uma palavra à outra. E é nessa lacuna, justamente na duplicação que impossibilita o eu mesmo, que somos convocados pelo texto.

Não à toa que a autora frequentemente apresenta o livro como um livro estranho.

Freud ressalta que a estranheza, o incômodo, traz a ideia de um duplo como uma segurança de eternidade, mas, posteriormente, inverte o seu sentido, relaciona-se ao seu oposto e passa a ser um anunciador do que falta, do que não completa, do que não faz signo.

Lacan complementa quando defende que precisamos nos afastar da má linguagem. E a má linguagem é aquela que supõe saber de onde se fala.

Aquela que não se estranha.

Nos diz também da possibilidade de um discurso sem palavras, que por se tratar de parole, em francês, seria melhor traduzido como um discurso sem fala, sem o portador da fala.

Quem sabe estaríamos diante da força de um texto como uma versão atualizada e revisitada de a morte do autor?

Precisamos ouvir o texto. Precisamos saber o que ele nos diz, o que conseguimos ler dele. Que, enfatizo, a cada nova leitura marca a impossibilidade da repetição.

É sempre outro livro.

Te disse, Carola, imagino que você ainda não tenha ideia da potência do teu texto, do que está escrito ali. Do que está em jogo.

A palavra aqui, no texto, é revelação.

Ela ultrapassa infinitamente toda intenção que ali podemos colocar. É ao desfazer as amarras das palavras que chegamos aos novos sentidos.

Falo do livro que li.

E é com o auxílio de vazios que a lembrança da minha leitura é revivida nesta conversa.

É por reconhecer que o simbólico não pode ser definido por realidades fixas que as relações se dão no caminhar.

Afinal, um significante sozinho não significa nada.

Toda enunciação da palavra está, até certo ponto, numa necessidade interna de erro.

Assim, voltando com a associação a um texto psicanalítico: a análise nunca é essa reconstrução da imagem narcísica a que é reduzida bem frequentemente.

Por fim: o livro caminha junto com a estrutura da linguagem, no que ela se refere ao inconsciente, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” — máxima lacaniana. É essa estrutura, então, que não tem origem, centro nem finalidade.

Comece pelo começo, sugere a Cordilheira. Pois é, é justamente esse o problema, não sei mais se há um começo

A linguagem a que me refiro já está dada de saída, desde sempre.

É difícil pensar n’O manto como um livro que se constitua gradualmente. Ele rompe, justamente, com a nossa percepção intuitiva da temporalidade.

Eu poderia apostar, inclusive, que ele é mais retroativo do que linear caso não conhecesse o futuro anterior lacaniano. Este que nos diz que o livro, a história, a nossa estória, terá sido essa.

Ou, com outro exemplo: que essa conversa que já tivemos me veio como uma emocionada grande surpresa!

Obrigada pela travessia.

Com carinho,

Luciana

Querida Luciana,

Você me diz: “Reconhecer o trabalho de análise como um processo de escrita é ponto de partida para a minha leitura de O manto da noite”. E eu, numa inversão imperfeita (haveria uma inversão perfeita?), te digo: reconhecer o trabalho literário num processo de análise é o ponto de partida para a minha leitura do teu livro Fragmentos: sobre o que se escreve de uma psicanálise. Então te escrevo. Não uma resposta porque partiria da ilusão de que há uma correspondência, e não um mal-entendido, mas um desvio onde talvez haja um encontro possível.

Li o seu livro pela segunda vez. Tive a impressão de que era outro, muito diferente do que li um ano atrás, quando surgiu o início, que dizia: “Precisava enviar a você”. E o que chegou foi o seguinte: falava da mão adormecida sob o travesseiro, que, ao acordar, você não reconhece como sua e te parece a mão de uma morta. Li como sempre li a palavra mão, que no meu mundo simbólico ressoa a palavra mãe. Inclusive quando escrevo, na minha caligrafia mão é igual a mãe. Assim, o parágrafo termina com a seguinte frase: “Permiti que a minha mão (mãe) morta adormecesse. Acordei”. Suas palavras, estranhamente, diziam (ainda dizem) algo muito profundo sobre mim, como era possível?

Mas como te disse, desta vez li outro texto. O que terá mudado? Eu, você? Ou terá sido o próprio livro? As letras dançam, se espiralam em impensadas piruetas. Dançamos. Nos metamorfoseamos as três. Mas seremos três? Quando terminei esta última leitura, percebi que entendi menos do que na primeira, e tive vontade de recomeçar, uma terceira mão ainda mais incerta, terminaria sabendo menos ainda. Será esse o objetivo, saber cada vez menos, minha amiga? Gosto da tua companhia diante da inacessibilidade das coisas. Compartilhamos um curioso entusiasmo que nos irmana, que nos emana, que nos ímana… nunca gostei de reticências, mas faço aqui uma exceção.

Ainda sobre a correspondência. Observo, ao teu lado, a paisagem. Intuo algumas coisas, essa névoa através da qual nos reconfiguramos: teu livro se desdobra, as palavras são e não são, sim e não. Mas não é só isso, ele é também atravessado por palavras anteriores, tuas. Você lê O manto da noite, e continua lendo em algum lugar. O que se escreve de uma leitura? Eu poderia te perguntar. Mas não pergunto, e continuo. Tua leitura reescreveu o meu livro, e ao mesmo tempo o inscreveu, em mim, como se o texto esperasse as tuas palavras, como é possível? Como se a tua carta, me desse a mão nessa estranha travessia. Caminho ao teu lado sem saber quem sou, quem somos. Caminhamos. Como se as coisas ainda não estivessem prontas, nunca estão, elas são fragmento-contínuo.

Mas você me dá algumas pistas, você diz: “Para saber o que isso significa, não procure saber o que isso significa”. Anoto outra frase do teu livro: “o inconsciente é o que se lê”, você cita Lacan. Penso, a partir do que você sugere, o significado vem sempre depois, e ler não é necessariamente compreender, ao contrário, ler é outra coisa. Mas o que seria? Uma travessia? Ou talvez um jogo. Um modelo para armar. Peças, sempre as mesmas, mas que podemos reduzir ao seu elemento mais mínimo, e ir reconfigurando. Por exemplo, uma cabeça de dragão. Numa primeira cena ela cospe fogo, muito bem grudada ao corpo do dragão. Continuo a leitura. Aos poucos ela começa a me parecer um pouco frouxa, talvez até penda para um lado. Me aproximo e começo a desatarraxá-la até que a seguro, solta, entre as minhas mãos. O dragão se desfaz. Mas o fogo continua lá, línguas de fogo saindo pela boca. Uso-a para acender uma fogueira. Nos sentamos em torno dela. Conversamos. Algo se ilumina na paisagem. A língua nos lança a pergunta: o que isso significa? E logo em seguida diminui de tamanho transformando-se no que me parece mais um palito de fósforo. Guardo-o no bolso do casaco. Para quando for necessário, digo sem saber o que significa, digo, como se me justificasse. Você sorri.

Destaco outra frase sua “a fim de transmitir o íntimo e não o privado”. Sobre O manto da noite, eu te disse, quanto mais eu me aproximo de mim, da minha biografia, mais distante me sinto, e quanto mais me distancio, mais me revelo. Termino afirmando, é quando a personagem se transforma em Caliban, é aí, quando eu sou realmente eu. Caliban c’est moi! Eu disse cheia de espanto com a minha descoberta, e você riu, ou algo assim. E agora reencontro essa frase no seu livro, “transmitir o íntimo e não o privado”, eu já sabia, ou não?

Você se pergunta, como transmitir uma experiência? Eu me perguntava, ao escrever o Manto, como experienciar a partir da transmissão? Talvez você tivesse uma experiência prévia, a experiência da análise, e buscasse uma forma de escrevê-la. Já eu, eu não sabia o que desejava transmitir, e a experiência foi se inscrevendo na medida em que se escrevia. Mas não totalmente. Há sempre algo que resta, sabemos disso. Mas agora enquanto escrevo, penso, talvez o nosso ponto de partida não fosse tão diferente assim. Eu também tinha a experiência da análise. E você também, ao escrever, foi experienciando. Talvez seja tudo uma única escritura, a que transmite-transforma. A escrita literária como aquilo que nos reconfigura na medida em que vai se dizendo. É preciso coragem. Nunca sabemos o que vamos nos tornar. Que bicho seremos ao terminar de escrever um livro, essa metamorfose. Nunca sabemos porque é o texto que se diz a si mesmo, e não nós que o dizemos. Uma vez te contei, te disse, eu não sei o livro, o livro é que me sabe, e você disse, mas isso é tão psicanalítico. Mas não será o psicanalítico algo tão literário? Porque em ambos há isso, essas coisas que a gente sabe sem saber. Quando eu não sabia, talvez soubesse até mais do que agora que eu sei. Onde estarão os limites?

Há muitas formas de não saber o que isso significa.

Isso eu aprendi com você.

Você quer que eu fale? Te digo então.

Com alegria,

Carola

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

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