Escrever sobre futebol é fácil. Não é à toa que a maioria dos jovens candidatos a jornalista é empurrada para a editoria de esportes das redações. Também não é para menos que os piores textos dos jornais estejam justamente nesta seção. Isto, no entanto, não é, necessariamente, motivo de complexo para o jornalismo esportivo. Muito escritor tarimbado se perde ao colocar no papel o esporte do pé na bola. Escrever bem sobre futebol é difícil.
A tentação é grande, principalmente no Brasil, onde o futebol é paixão nacional. Na teoria, um livro sobre o assunto deveria vender mais do que Paulo Coelho. Na prática, não acontece. Primeiro, porque os leitores parecem preferir ficar com as mal traçadas páginas dos cadernos esportivos dos jornais (pelas belas fotos, talvez). Outro motivo é que poucas obras conseguem retratar no texto as emoções das quatro linhas.
Uma pesquisa nas prateleiras virtuais dos sites de livrarias brasileiras indica mais de cem obras sobre futebol. Poucas merecem uma vaga na primeira divisão. A maioria não serve nem para gandula ler no intervalo.
A obra mais recente lançada sobre futebol, Febre de Bola (Rocco, 245 págs.), do inglês Nick Hornby, recebeu muito mais crédito do que merecia. Digamos que o livro seja diferente, mas é ruim. Hornby mesmo se explica na introdução: “Este não é um livro sobre futebol, mas sobre o torcedor de futebol.”
O que poderia ser um atrativo, tornou-se o gol contra do livro. É muito difícil escrever sobre o torcedor de futebol sem aprofundar-se no esporte. Seria preciso uma grande variedade de personagens, cada um externando de uma forma sua paixão. Sabe quantos personagens Hornby usou? Um, ele mesmo. E o inglês é o fanático no sentido mais chato da palavra. Daqueles que pensam que o planeta gira em torno de seu time. Se ele fosse flamenguista, corintiano ou torcesse para outro time com uma tradição mais entusiasmante ainda vá. Mas Hornby torce pelo insosso Arsenal do insosso futebol britânico.
Na verdade, Nick Hornby usou o futebol para fazer uma autobiografia. Só que o autor não é Garrincha, Pelé nem Tostão. É um moderninho escritor inglês cuja vida infeliz só encontra um pouco de emoção nos jogos de seu time.
O texto de Hornby é tão ruim quanto o das páginas esportivas. Ele quis escrever sobre o torcedor, mas não exatamente precisava ter escrito como um torcedor. Numa das poucas chances que teve para falar de futebol de verdade, Hornby revelou-se um perna-de-pau. Ao tentar descrever as maravilhosas proezas de Pelé & Cia na Copa de 1970, Hornby comparou as jogadas de nossos craques a assentos ejetáveis. Isto mesmo. Assentos ejetáveis. O inglês disse que “o único padrão de comparação que tinha na época era o universo de carros de brinquedo que possuía, alguns deles equipados com artefatos sofisticados, tais como assentos ejetáveis”. Haja imaginação.
Além da falta de habilidade com o assunto (gostar de futebol é uma coisa, entendê-lo é outra), o livro de Hornby parece prejudicado pela tradução. Não sei o que o autor escreveu no original, mas com certeza a edição brasileira poderia ter melhorado frases como: “Esse relacionamento começou como uma mera gamação (sic) colegial”. Ou: “Foi um dos gols mais calamitosamente idiotas já sofridos.”
A edição brasileira não deveria nem ter existido. Febre de Bola é um livro para ser vendido apenas na portaria do estádio do Arsenal.
A empreitada desastrosa pelo futebol não é exclusividade de Nick Hornby. O escritor Paulo Mendes Campos, um dos maiores cronistas do Brasil, também teve altos e baixos quando entrou no gramado. Em O Gol é Necessário, lançado no ano passado pela Civilização Brasileira, o texto de Campos não tem a mesma vitalidade que nas suas obras consagradas como O Amor Acaba.
A organização de O Gol é Necessário, feita por Flávio Pinheiro, não foi eficaz. Ao contrário, depõe contra o escritor. Há preciosidades, pois o talento de Mendes Campos é incontestável. Mas foram incluídas crônicas mais de torcedor do que de escritor. Mesmo assim vale a pena um passeio pelas 93 páginas do livro.
A cena da pelada na rua em que a bola sobra para o cavalheiro que passa é comemorável: “o homem, sem perder a gravidade, rebate a bola com o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um chute”.
Mas Flávio Pinheiro poderia ter poupado Paulo Mendes Campos. Crônicas como Botafogo dos Botafogos e Botafogo e Eu poderiam ter sido deixadas no vestiário. Mendes Campos era torcedor do Alvi-Negro da época de Garrincha, mas com certeza hoje não revelaria esta preferência. Aliás, talvez a abandonasse ao saber que o último ídolo do time foi um patético atacante chamado Túlio.
É paradoxal que no país do futebol ainda não tenha surgido um livro de porte, um grande romance, sobre o assunto. O melhor candidato é Estrela Solitária, a biografia de Garrincha lançada por Ruy Castro em 1995 (Companhia das Letras, 400 págs.). É um livro forte, com um texto contagiante e passagens reveladoras.
Castro fez uma garimpagem exemplar sobre a vida de um dos maiores craques do país, mas que trocava o estrelato pela cachaça e por caçar passarinhos em companhia dos amigos.
Estrela Solitária é de goleada o melhor livro já feito no Brasil sobre o futebol, mas reduz-se à época e aos fatos em torno de Garrincha. E o livro ganhou força porque o “anjo de pernas tortas” teve uma história de vida trágica.
A poucos interessa, por exemplo, ler biografias de craques como Zico, Pelé ou Romário. Não passam de casos de sucesso, com muitos gols em campo, mas poucas emoções fora dele.
Já a história de Garrincha é chocante. Talvez até porque seja o perfil do típico brasileiro pobre e bêbado que participa do futebol de algum modo, na arquibancada ou nos campos de várzea. A única diferença é que Garrincha, além de alcoólatra, foi um dos maiores jogadores do mundo.
Mais recentemente, o único livro que faz jus ao tamanho do assunto futebol é o de Tostão (Lembranças, Opiniões, Reflexões sobre Futebol; Bookmen, 168 págs., 1997). Depois de anos recluso em seu consultório de psicanálise, o ex-craque voltou à cena esportiva e revelou-se um cronista de mão cheia. Tostão escreve bem, é inteligente e conhece a fundo o esporte na teoria e na prática.
Além do texto leve e bem-humorado, Tostão analisa o futebol com explicações claras dos esquemas táticos, algo impossível de se ver nas mesas-redondas que pululam por aí.
Aliás, na crônica diária esportiva, recheada de jornalistas que nunca marcaram um gol na vida e ex-jogadores que não sabem fazer uma tabelinha com as letras, Tostão é um “Chicabon numa tarde de sol na arquibancada”, como diria o célebre Nelson Rodrigues.
Autor de A Pátria Minha em Chuteiras (Companhia das Letras, 1994) e À Sombra das Chuteiras Imortais (Companhia das Letras, 1993), Rodrigues foi o mestre que deixou a crônica futebolística órfã (nem me falem do chatérrimo e bajulador Armando Nogueira) até que Tostão resolveu voltar a campo.
Rodrigues teve seu trabalho recém-analisado na tese de mestrado do pesquisador José Carlos Marques (O Futebol em Nelson Rodrigues, Educ, 2000). O livro é bom, mas erudito demais para explicar aos ratos de arquibancada quem foi Sobrenatural de Almeida.
O mesmo acontece com Footballmania — Uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938 (Nova Fronteira, 374 págs.), lançado no ano passado por Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Novamente o assunto virou tese, desta vez de doutorado em História Social.
O problema destes livros acadêmicos é que são escritos para acadêmicos. Footballmania até que tem dados interessantes da história do futebol, mas a leitura não deslancha. Confesso que nem cheguei à metade e desisti, irritado de tanto engolir frases como… a explicitação dessa origem, e ….o cronista explicita já de início (tudo na mesma página).
É melhor reler Estrela Solitária e deliciar-se com a descrição dos três minutos iniciais da estréia de Garrincha na Copa de 1958, contra a poderosa Rússia. Alguns consideram este momento entre os mais emocionantes da história do futebol. A Rússia era franca favorita contra os brasileiros. Didi, Nilton e Belini convenceram o técnico Feola a escalar o reserva Garrincha. Em sua inocência, o craque de Pau Grande (literalmente, segundo a biografia era a razão de seu sucesso com as mulheres) ficou os três primeiros minutos do jogo saracoteando com a bola nos pés, deixando os russos em pânico e incapazes de recuperar o foco durante toda a partida, vencida pelo Brasil por 2 a 0. A uma história destas, até Dostoievski teria que se curvar.