Driblando a morte

Resenha de "Quando fui morto em Cuba", de Roberto Drummond
Roberto Drummond, autor de “Quando fui morto em Cuba”
01/02/2012

O livro de contos Quando fui morto em Cuba, de Roberto Drummond, reeditado recentemente, foi publicado pela primeira vez em 1982. Traz as marcas de um complexo momento histórico vivido pelo povo brasileiro, rescaldos da ditadura militar, do crescimento econômico desordenado, de reviravoltas culturais, políticas e sociais instaladas pelo mundo.

O autor, que se tornou conhecido mais amplamente pelo seriado televisivo Hilda furação, tinha já uma obra construída em diferentes gêneros: crônicas, contos, romances. Daí ser bastante oportuna, hoje, a iniciativa de reedição. A distância de alguns anos pode ser uma boa lente para ampliar nossa leitura e nos ajudar a refletir sobre a nossa história recente. Trata-se, entretanto, de uma obra ficcional, a maneira como os textos se organizam em termos discursivos e as escolhas de linguagem não deixam a menor dúvida. Os contos são bem diversos entre si, têm em comum a morte como elemento presente, ou como eixo temático ou apenas como aspecto circunstancial, dialogando com outros aspectos. Estruturam-se no livro como num campo de futebol, durante um jogo: 17 contos divididos em Primeiro tempo (oito), Intervalo (um) e Segundo tempo (oito). Mera referência à grande paixão do autor? Ou, além disso, a escolha de uma forma que promete acolher um conteúdo significativo próprio? Especulação ou não, vale considerar que o efeito de tal organização é bastante expressivo.

Quando fui morto em Cuba são dois contos, o primeiro, versão erótica, entra em campo nos primeiros minutos do primeiro tempo e o outro, na versão política, entra nos últimos minutos do segundo tempo, finalizando o jogo, ou melhor, o livro. O narrador personagem de cada um deles conta os sobressaltos que sofre com a ameaça permanente de morte em sua visita a Cuba. Em ambos os contos, apesar da perspectiva diferenciada do ponto de vista temático, a morte que ronda é mais do que a morte física e definitiva. É uma morte simbólica que vai tomando em vida a identidade do sujeito, tanto do ponto de vista sexual e erótico quanto da perda de sonhos, esperanças e perspectivas políticas. No primeiro conto, a diluição identitária desse sujeito subjugado aos valores já corrompido por um sistema utilitarista e cruel corrói o pouco que sobrou dos esforços de uma luta individual e coletiva de sobrevivência digna, humanamente impossível, mas, apesar disso, perseguida. Elementos fantásticos mesclam e direcionam a consciência dessa realidade absurda. Enquanto fatos, observam-se as metamorfoses do personagem em diferentes personas, independentemente de sua vontade, ao mesmo tempo que vai tomando consciência de seu passado e de seu presente com a proximidade da morte, através do olhar ou da leitura de uma vidente. O personagem contextualiza suas transformações:

Nessa época, já como herói unissex da abertura, fiquei famoso no Brasil como um show-man ou uma woman-show (…): posei para anúncios de xampu, de bancos, refrigerantes, cadernetas de poupança, automóveis e também de brincos e de batom, porque era Marta Rocha, era Raquel Welch, era Vera Fischer…

No último conto, a atmosfera de suspense permanece, mas o enfoque político é mais direto, reporta-se à ditadura militar, ao assassinato de companheiros, a uma visita a Cuba como redenção e realização de um desejo dos companheiros mortos. Contudo, como na outra versão, a morte e o assassino nada oferecem de espetacular ou glamouroso ao nosso anti-herói. O discurso panfletário não tem vez. Não se morre pela causa, mata-se a identidade, mata-se a utopia, morre-se uma morte besta, tão absurda quanto a realidade concreta e inverossímil que viveu o povo brasileiro naqueles anos.

Últimos instantes do grande Heleno de Freitas no hospício de Barbacena (segundo a narrativa de um louco, feita no estilo de um locutor esportivo transmitindo um jogo de futebol): eis aqui o título e o subtítulo do conto que compõe a parte intermediária do livro, ou seja, o Intervalo. Como a locução, o discurso é acelerado, na voz de um louco, o texto surge fragmentado e recheado de nonsenses. “Momentos de grande expectativa aqui no hospício de Barbacena, estimados ouvintes: o tempo é bom para a prática da Morte! Céu Plúmbeo em Barbacena, a Cidade das Rosas, cai uma chuva fininha,…” ou “– Alô, alô, Ernesto Che Guevara, estou enviando, através do grande Heleno de Freitas, um santo e miraculoso remédio para a sua asma, que, segundo eu soube, anda incomodando sobremaneira o caro amigo nas lutas guerrilheiras no céu”. Segundo o discurso de um louco, Heleno de Freitas se constitui no grande herói brasileiro, que vai driblando: “dribla a fome brasileira, dribla a solidão…, dribla a mortalidade infantil brasileira, … deixa o desemprego de quatro na grama” e, por que não, dribla a própria morte.

Muitos são os recursos que constroem esses contos na polissemia de vozes e no hibridismo de gêneros e linguagens. São inúmeros os exemplos: a crônica jornalística do cotidiano, o discurso radialístico, a linguagem cinematográfica de cortes, imagens, fragmentos e movimentos (Sessão das quatro e O rio é um deus castanho), o texto dramático teatral, todo em diálogo que quase prescinde de um narrador (Pela porta verde), mudanças de foco narrativos pontuados (Por falar na caça às mulheres), o “grafite, spray, sangue e piche” nos muros da cidade, etc. Isto provavelmente nos leve a considerar o caráter experimentalista e pós-moderno do autor. Inútil, entretanto, tentar enquadrar sua literatura em qualquer “ismo” absoluto ou definitivo.

As referências contextuais chegam, às vezes, a sugerir textos datados e, de certa forma, anacrônicos, se não fora essa profusão de linguagens e recursos estéticos que provocam desvios e quebras de expectativas do leitor. Esses escritos são mesclados de marcas publicitárias, cinematográficas, datas e locais que de certa forma foram constitutivos da linguagem coloquial de uma época e, muitos dos quais, encontram-se hoje apagados ou desconhecidos pelos mais jovens.

Seus personagens entram no jogo como num campo de batalha, entre o grito e o silêncio imposto, entre a busca de sentidos e o absurdo, entre a vida e a morte. Ganhar ou perder, pouco importa, é preciso sobreviver, apesar da morte certa e iminente, a vida pulsa na dor, na tortura, na resistência, dribla a morte. E mesmo vencida, sobrevive enquanto fantasmas ou fragmentos de lembranças que precisam de registro, de uma história que precisa ser contada, que jamais pode ser esquecida.

Quando fui morto em Cuba
Roberto Drummond
Geração Editorial
204 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho