Drama e revolta

Pesquisador mergulha com rigor e profundidade em "Woyzeck", drama alemão de Georg Büchner
Georg Büchner, autor de Woyzeck
02/03/2016

No conto A janela de esquina (de 1822), E. T. A. Hoffmann atribui ao personagem “primo” algumas considerações sobre os pobres moços que viviam pelas ruas de Berlim vendendo cigarros, cujo destino não seria outro senão compor guarnições militares prussianas. E num romance do mesmo autor e da mesma época, Reflexões do gato Murr, o personagem Conde Iräneus conta que no comando do exército, “semanalmente submetia a turma de fidalgos a uma saraivada de palmatória pelas asneiras que tivessem cometido ou pudessem vir a cometer” e o tenente descontava infligindo bordoadas nos soldados.

Em entrevista a Alexander Kluge sobre o filme Die andere Heimat (A outra pátria, de 2014), o diretor de cinema Edgar Reitz aponta como fatores sociais desencadeadores do fluxo de emigração alemã no século 19, sobretudo rumo ao sul do Brasil, a estatização das florestas, o descaso do Estado em relação às famílias carentes em consequência dessa interdição do extrativismo, em detrimento de privilégios concedidos à aristocracia, bem como a introdução do serviço militar obrigatório desde a Sexta Coligação contra o Império de Napoleão (1814-1815).

Ou seja, à pauperizada população campesina e urbana de uma Alemanha ainda em processo de consolidação como Estado poucas alternativas se descortinavam para a sobrevivência, além das fileiras do exército e da participação em guerras.

Esses dados esparsos legados pela literatura e pelo cinema indiciam as circunstâncias desoladoras nas quais vivia a categoria soldadesca arrebanhada dos rincões rurais e suburbanos, e enquadram-se no arcabouço histórico do período da Restauração Alemã (1815-48). Foi nesse período que viveu o escritor Georg Büchner (1813-1837), autor de um célebre panfleto insurrecto contra a tirania e a exploração, O mensageiro de Hessen, que se inicia com a conclamação: “Paz aos casebres! Guerra aos Palácios!”. Büchner e o coautor do texto, Friedrich Ludwig Weidig, perguntam se por acaso, diferentemente do que se encontra no Gênesis, os agricultores e artesãos teriam sido criados no quinto dia e não no sexto como os nobres e ilustres, numa alusão à situação temporal da criação divina na Bíblia, segundo a qual os animais teriam vindo ao mundo no quinto dia e os homens, no sexto. O que levava esses escritores a redigir e a distribuir cerca de 1.500 exemplares do panfleto era sua convicção da necessidade de exortarem a população simples a uma revolução contra o status-quo e contra o Grão-duque, cujo poder incontestável estava implícito no próprio título nobiliárquico. Oficialmente, Ludwig II, que regeu do Estado de Hessen de 1830 a 1848, se chamava “Ludwig II, por graça de Deus Grão-Duque de Hessen e das margens do Reno”. Os revolucionários não tardaram a ser vítimas de censura, perseguição, encarceramento e de um possível assassinato.

É surpreendente o número de obras marcantes que Georg Büchner escreveu em poucos anos de vida: em clave de história o drama A morte de Danton, de cunho insurgente O mensageiro de Hessen, de trágico o fragmento Lenz, sobre os tormentos do dramaturgo homônimo (traduzido ao português por Guinsburg e Koudella; encenado no palco paulistano em 2015: Lenz, um outro) ou até mesmo no diapasão da comédia romântica Leonce e Lena. Nessa produção criativa que à primeira vista se apresenta eclética e dispersa, Anatol Rosenfeld chama a atenção no ensaio A comédia do niilismo para a afinidade íntima comum a toda essa literatura, qual seja um viés epicurista decorrente de uma “raiz amarga”, que resulta da desilusão ante “valores mais substanciais que os meramente hedonísticos”. A manifestação desse desengano é o tédio, o vazio, o niilismo portanto, que Rosenfeld assinala numa tradição que associa Baudelaire, Chekhov, A montanha mágica, de Thomas Mann, A náusea, de Sartre, e O desprezo (La Noia), de Moravia. Embora a análise se refira às personagens que em sua ação e caracterização contaminam os demais elementos dentro dessa literatura, Rosenfeld não duvida que o estilo se explique ademais, numa dimensão exterior à diegese, pela experiência traumática do jovem Büchner confrontado com a falência do idealismo e o arroubo materialista das ciências naturais daquela época.

Os estudos de anatomia e medicina, aos quais Büchner se dedicara na cidade de Darmstadt sob a tutela do pai médico, e sua atividade política num quadro social onde o soldado equivalia a reles categoria em contraposição à burguesia são fundamentais para a criação de Woyzeck.

O comentário
E é justamente essa peça dramática o centro do livro do professor de literatura e médico Tercio Redondo: Woyzeck: comentário e tradução da tragédia de Georg Büchner.

A fim de completar o parco soldo, o soldado Woyzeck se submete a experimentos científicos em troca de lentilhas e de algum trocado. Cabe-lhe viver dessa dieta restrita em grave estado de desnutrição e sujeito, por conseguinte, aos sintomáticos obscurecimento da visão e falta de vitalidade. Fica exposto durante as preleções médicas às apalpadelas e investigações degradantes dos cientistas, e as suas reações são comparadas às de asininos e felinos. À medicina, na figura do fisiologista, importa o triunfo da pesquisa; na escala da dignidade aquela cobaia é inferior às espécies anfíbias subterrâneas aparentadas com a salamandra, ao Proteus anguinus: “Se ao menos fosse um proteu que estivesse morrendo à minha frente!”.

Tampouco na relação com seu superior, o capitão, o soldado raso faz jus a qualquer distinção moral, ele constantemente recebe censuras pelo tempo célere que imprime a cada gesto e a cada passo, plenos da urgência que expressa antes de tudo a condição de estresse e decorre do extenuante esforço desprendido para cumprir tantas tarefas, de modo a garantir a sobrevivência mísera da família; afinal tem um filho a quem chama “verme”. Vez ou outra o capitão lhe insinua a infidelidade da concubina Marie. Não somente o filho bastardo e o concubinato, mas também o comportamento rude do moço que mija pelos cantos motivam o desprezo do superior militar em eminente ascensão na sociedade, porque para a classe burguesa as atitudes do trabalhador Woyzeck projetam o respectivo espelhamento abjeto.

Esse fuzileiro ordinário — segundo informação do livro o primeiro personagem proletário dentro da dramaturgia alemã — contrasta na disputa por Marie deploravelmente com o representante da pequena burguesia tambor-mor “distinto suboficial, comandante da simpática banda militar: ao passar defronte à janela de Marie, o militar faz-lhe uma vênia; no domingo costuma receber o elogio do príncipe”.

E é dessa argumentação pelo viés da dialética entre as classes sociais, ad extremum entre as espécies animais, que Tercio defende que o elemento dramatúrgico “ação” em Woyzeck não se conforma ao drama clássico do palco mágico (Guckkastenbühne), na medida em que o protagonista e a personagem Marie em falas que não constituem interação ou diálogo desafiam a compreensão com a exigência de leitura paradigmática a cada nova intervenção.

Semelhantemente à urgência no tempo, as marcações espaciais do drama adquirem autonomia e correspondem implicitamente a atributos da personagem. E cada objeto cênico assume extensões simbólicas funcionando no sentido de distinguir outros elementos. Assim, quando Woyzeck barbeia o capitão com uma navalha, o deslizamento da lâmina cortante acentua a sensação prazerosa do personagem sentado na cadeira, remete à afobação do protagonista atabalhoado pelos afazeres e, finalmente, prenuncia a ação trágica do desfecho dramático.

Um estudo minucioso da peça precede o capítulo central do livro, 7 Woyzeck: tradução e notas, se a opção for a leitura linear. Revelam acuidade tradutória as referências às notas do original, a diferenciação da grafia antiga/atual, a remissão ao histórico inquérito, as referências às expressões de linguagem, aos dialetos, regionalismos e estrangeirismos, a escolha dos pronomes de tratamento, a justificativa de certa elisão terminológica relevante no texto dramatúrgico.

A menção dos manuscritos redunda em ambígua compreensão entre o acesso direto aos manuscritos ou a obtenção das informações através de comentário da edição alemã. Ressente-se da menção de edições anteriores de Woyzeck no Brasil, como por exemplo a edição esgotada da Clássicos de Bolso Ediouro que contém a tradução de João Marschner e no prefácio o ensaio de Anatol Rosenfeld, que citei anteriormente.

O livro é resultado de uma pesquisa de doutorado que já foi publicada anteriormente pela Editora Hedra. Através da configuração atual, em sua complexa capilaridade temática — a micro-história, os manuscritos de Woyzeck, o médico Büchner, a contestação formal e ideológica configurada em drama, a tradução e as notas, o recurso ao gênero épico no drama — atesta o rigor e a profundidade da pesquisa na matéria. Esses itens que enumero não correspondem aos títulos dos capítulos do livro mas propiciam um panorama das questões tratadas nas 222 páginas que engendram questões de história, literatura, dramaturgia, enfim, uma densa sincronia da atualidade com o drama Woyzeck, de Büchner.

Woyzeck: Comentário e tradução da tragédia de Georg Büchner
Tercio Redondo
Nanquim
224 págs.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

Rascunho