Poucos personagens lendários são tão recorrentes e bem-sucedidos na cultura pop quanto os vampiros. Oriundos de crenças populares e do folclore de países europeus e asiáticos, tornaram-se rentáveis produtos da indústria do entretenimento, conforme atesta a imensa quantidade de filmes, livros, HQs e seriados de tevê que tratam dessas criaturas das trevas.
Embalado por uma campanha de marketing, que inclui as redes sociais, e uma nova “onda” vampírica, o primeiro volume da Trilogia da escuridão, Noturno, escrito pelo cineasta mexicano Guillermo Del Toro, em parceria com o escritor americano Chuck Hogan, acrescenta mais um elemento à mitologia: o gene do mal. Nesta primeira parte da saga, os autores remodelam, numa composição mais moderna, a figura do morto-vivo que tem mais de duzentos anos na ficção literária, passando por nomes consagrados como Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Alexandre Dumas, E. T. A Hoffman, H. G. Wells e Guy de Maupassant, entre outros.
Romantismo
A besta de caninos salientes, olhar hipnótico e vestindo capa preta ficou célebre no século 19 com o conto The Vampyre (1819), de John William Polidori (1795-1821), escrito com base em um esboço feito por Lorde Byron. Polidori era médico pessoal de Byron, e acompanhou o poeta inglês em uma viagem à Europa, em 1816. Numa estada na Suíça, junto com o casal Percy e Mary Shelley, foi proposto que cada um elaborasse um relato sobrenatural. O material mais bem sucedido deste encontro foi Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1817), de Mary Shelley. Byron fez o plot daquilo que mais tarde Polidori publicaria como a primeira história de vampiro em língua inglesa.
Apesar de não ser o primeiro registro vampiresco da literatura, foi o primeiro a alcançar sucesso. Produto do espírito do romantismo, o vampiro encarnaria, nas décadas seguintes, a versão do mal segundo o cristianismo, sendo combatido com crucifixo e água benta, além de seduzir moças virgens, representando o pecado da luxúria nas sociedades puritanas da época.
Neste sentido, a melhor síntese do vampirismo é Drácula, do escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912), que estabeleceu as regras básicas da mitologia vampírica, como a morte pela estaca no coração ou pela decapitação, a metamorfose em lobo ou morcego, a imagem que não reflete no espelho, e limites como não poder entrar numa casa sem ter sido convidado antes, não poder atravessar a água corrente nem dormir durante o dia num caixão com terra natal. Foi este romance que também serviria de base para adaptações cinematográficas, de Nosferatu (1922) ao Drácula (1992) de Copolla.
Noturno, primeiro projeto nas letras do cineasta cultuado por O labirinto do fauno, Blade 2 e Hellboy, é uma releitura de Bram Stocker, mas não somente isso. Na primeira cena, temos um Boeing 777 da Regis Airlines, vindo de Berlin, que pousa no aeroporto JFK de Nova York em pane completa e com tripulação e passageiros mortos, com exceção de quatro sobreviventes. Na carga, um misterioso caixão cheio de terra. A referência é Deméter, navio de bandeira russa que transportou o caixão do conde Drácula para Londres. No romance de Del Toro, o vampiro é perseguido pelo professor Abrahan Setrakian, versão do professor Van Helsing e uma homenagem a Abraham Stoker, nome de batismo do criador de Drácula.
Espada de prata
A originalidade da Trilogia da escuridão está em seguir a cartilha de outro escritor do gênero, o inglês M. R. James (1862-1936), que creditava a eficiência de uma boa ghost story ao seu cenário contemporâneo, para aproximar o leitor de seus medos. E o que mais apavora o americano, o homem ocidental, hoje? Terrorismo, crise financeira e pandemia viral. São esses os elementos de horror, mais concretos que os castelos da Transilvânia, que assombram o leitor em Noturno.
Despidos de suas vestes góticas, os vampiros de Del Toro são apenas veículos de parasitas que carregam um estranho vírus, cuja origem desconhecemos neste primeiro volume da trilogia (será alienígena?). O vírus “vampírico” transforma o hospedeiro em um organismo que se alimenta de sangue humano, extraindo dele o oxigênio e os seus nutrientes. Para isso, ele desenvolve um ferrão que se projeta da traquéia pela boca, como se fosse a língua de um réptil, dando um aspecto mais macabro ao vampiro. E, neste processo, contamina a vítima e espalha o vírus em progressão exponencial, gerando uma nova pandemia.
A trama do livro consiste na corrida de um casal de epidemologistas — Ephraim Goodweather e Nora Martinez —, ajudado por um sobrevivente do Holocausto, o professor Setrakian, para conter a praga antes que ela tome conta dos Estados Unidos. Sem chances de encontrar uma vacina, a única forma é recorrer ao extermínio, matando os zumbis com uma espada de prata ou com luzes de radiação UVC, potente germicida.
O enredo se desenvolve em duas narrativas que interagem entre si, durante os três dias seguintes ao primeiro contágio. Na primeira, temos os desdobramentos das investigações sobre o avião “morto” pela equipe do Projeto Canário, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Nova York. As investigações levam os cientistas até o Mestre, o sétimo dos vampiros originais, conhecidos como “os Antigos”. Após uma disputa — que também não é explicada no primeiro volume — os sete se dividiram em clãs: três deles permaneceram na Europa e outros três migraram para o Novo Mundo. Em 1873, o Mestre assumiu o corpo do polonês Jusef Sardu, um gigante com mais de dois metros de altura, e que desapareceu aos 15 anos de idade durante uma caçada na Romênia. Ele é o vampiro rebelde que ataca os Estados Unidos.
Durante a Segunda Guerra, Sardu se banqueteia nos campos de concentração com o sangue de judeus debilitados, cujos corpos são incinerados pelos nazistas. A destruição dos corpos impede a proliferação do vírus e mantém, assim, o equilíbrio biológico com a raça humana. Ao que parece, a convivência com os nazistas teria despertado um ímpeto totalitário e maligno no Mestre, o que o leva a romper o armistício com os clãs. Mais detalhes sobre os Antigos e uma inédita aliança com os humanos, para destruir Sardu, abrem o caminho para os próximos livros da trilogia.
Eclipse
O segundo fio narrativo tem como cenário o lar do americano médio, desnudado em seu senso de oportunismo, dependência química, filhos desajustados, subalternos latinos e intrigas com os vizinhos. A velha fórmula consagrada por Stephen King de transportar o horror para cenas cotidianas. Os ataques ocorrem depois que os transformados são impelidos a retornar às suas casas, para disseminar a infecção entre cônjuges e filhos. Deste modo, de lar em lar, o gene do mal se espalha silenciosamente.
Do vôo que traz a peste dos vampiros para Nova York aos ataques zumbis nas casas de subúrbio, o medo traz a marca do 11 de Setembro, com os escombros do World Trade Center conferindo um ponto geográfico essencial para a trama de Noturno. O eclipse que anuncia a chegada do Mestre é também o presságio da queda do império americano, arruinado em sua economia doméstica pela especulação imobiliária e pelas guerras sem fim no Oriente. O vírus que vem de terras orientais exige dos americanos uma mudança de crenças, pois nem a ciência e tampouco a tecnologia — como os aparelhos celulares das vítimas desaparecidas que tocam em vão nos túneis de metrô — serão eficientes contra a natureza “demoníaca”.
É óbvio que não devemos esperar do livro mais do que diversão de boa qualidade. E isso os autores oferecem, mantendo o suspense e o terror familiar aos tempos atuais, deixando, ainda, “iscas” para serem digeridas nas continuações. O livro é também um respeitável candidato a bíblia do vampiro moderno, laico e darwinista, com sua inesgotável fonte de pavor e atração pelo desconhecido, pelo sobrenatural. Medo que se traduz na incerteza gerada com o fim do sonho da democracia ocidental universalizada ou da supremacia da humanidade sobre um planeta povoado por vírus e bactérias que, de uma hora para outra, podem comprometer seu balanço e nos extinguir, por um simples capricho da evolução. Talvez somente a arte, no final, consiga expurgar a escuridão que nenhuma luz elétrica pode expiar. Ou, ao menos, nos trazer momentos de bom e velho escapismo.