Dos opostos que se atraem

"Amor e lixo", do tcheco Ivan Klíma, reflete a “ditadura cansada” da antiga Tchecoslováquia
Ilustração: Ivan Klíma por Oliver Quinto
01/10/2022

Detentor de obra numerosa na literatura e dramaturgia, Ivan Klíma ainda é um autor pouco conhecido do público brasileiro. Recentemente, a Carambaia relançou Amor e lixo, tido como o seu romance mais célebre. A bela versão em capa dura, traduzida diretamente do tcheco por Aleksandar Jovanović, conta também com uma conversa do autor com Philip Roth, publicada originalmente em 2008. Nela fica evidente não apenas a admiração de um dos maiores escritores norte-americanos, mas, principalmente, proporciona ao leitor algumas informações importantes sobre Klíma.

De origem judaica, Ivan Klíma nasceu em 1931. Durante a Segunda Guerra, com a invasão nazista à Tchecoslováquia, foi prisioneiro em campo de concentração. Após o fim do conflito, consolida-se como escritor, sendo tomado como radical pelo regime soviético, sofrendo censura e consequente limitação de suas publicações, restando a ele trabalhos como o de motorista de ambulâncias.

Por sua complexidade e riqueza, ao ser lido, Amor e lixo requer uma atenção especial. Isso porque o autor manipula impressões que normalmente criamos quanto aos fatos do Leste Europeu. É notável a sua postura contrária ao regime socialista da Tchecoslováquia. Mas, não expressa isso por meio de uma linguagem panfletária, fazendo-o, contrariamente, através de recursos que tocam algumas das inquietações de um indivíduo comum.

Concebida ao longo dos anos de 1980, Amor e lixo reflete a “ditadura cansada” de seu país, segundo os termos do próprio autor. Está evidente ali o seu incômodo com as limitações sobre a liberdade artística, cuja expressão mais significativa se dá pela censura à publicação do livro até 1989, quando ocorreu o processo de redemocratização.

Diante deste quadro, podemos dizer que o livro não se furtaria a uma crítica ao regime socialista, bem como às consequências do autoritarismo tchecoslovaco. Correto? Sim e não. Como autor de seu tempo, calejado pela experiência com a escrita, reflete as circunstâncias estruturais nas quais se encontra submerso. Contudo, não se restringe a isso. Transita com propriedade entre o real e o ficcional, conseguindo construir personagens de uma realidade vivenciada por todos nós. Mostra, assim, como o que há em um país de sistema político, social e econômico fechado está presente em quaisquer lugares. A Tchecoslováquia deixa de ser um lugar exótico a partir da aproximação com temas também presentes no ocidente moderno.

Um gari
Basicamente, Amor e lixo conta a história de um jornalista e escritor tcheco, relativamente reconhecido em seu país, que optou por deixar as redações dos jornais e universidades, onde ministrava aulas de literatura, para trabalhar nas ruas, como gari. Naturalmente, para muitos, isso causaria um grande incômodo — no máximo seria pensado como um experimento social, ainda mais se se tomar o histórico de seu autor. Porém, durante praticamente todo o tempo, a trama foca em sua dúvida nos relacionamentos que mantêm com a esposa e a amante.

Klíma poderia nos apresentar um escritor militante que tenta, através de sua experiência como varredor de ruas, despertar elementos explícitos a sustentarem a reflexão na ideia dos conflitos de classes sociais derivados das posições diferentes ocupadas pelos seus colegas garis e pelos seus companheiros do meio artístico. Situações essas que não seriam mitigadas a partir da implementação de um regime supostamente mais igualitário. Contudo, não faz isso. Opta por desperta no leitor a curiosidade para com a situação de seu protagonista. Deixa-o constantemente à espera de um inconformismo que não vem — a situação política das repúblicas soviéticas no final dos anos de 1980 não presumiria outra reflexão. Pelo contrário, segundo demonstra e chega até a ser explícito, há um prazer em seu novo ofício.

Em uniformes laranja, caminhávamos com dignidade pelas ruas de Nusle, pessoas à nossa volta apressavam-se para ir ao trabalho; não tínhamos pressa, pois já estávamos trabalhando.

O cenário, portanto, tende a aparentar uma monotonia absurda. Com tudo igual, exime-se da diferença, sufocando-a e, por sua vez, conferindo uma ideia de que os indivíduos tendem a ficar completamente limitados em seus problemas, tendo em vista que nada mais adianta fazer, a não ser esperar o tempo passar. Logo, espera-se um tédio gigantesco derivado das sombras dos fantasmas pessoais, pois tudo já se encontra previamente determinado.

Klíma contorna essa aparente modorra sustentando uma curiosidade quanto às vidas dos colegas de trabalho de nosso protagonista. Os casos e as experiências de vida são elevados a um primeiro plano, fazendo-o resgatar constantemente sua relação com o pai e, notavelmente, ressaltar os traços que há de mais interessantes em sua esposa e em sua amante. O gozo e o prazer, típicos de uma sociedade burguesa de moral retida ávida pela sua realização constante, ficam em segundo plano.

Assim é que as entrevistas que concede a alguns jornalistas que reconhecem o seu trabalho literário, bem como as celebrações universitárias que fazem à sua obra, tornam-se secundárias à demonstração de seu enfado. Ora, logo nas primeiras páginas, o protagonista descreve um jantar com o reitor de uma universidade norte-americana onde deu aula. O desdém impera e fica ainda mais evidente quando a atenção do leitor é chamada para a vida com os demais varredores de rua.

Por conseguinte, os personagens de Klíma acabam sendo bastante sóbrios. Não seria diferente com o protagonista. E, claro, o leitor não poderia ser concebido de maneira distinta. Trata-se de uma sobriedade a sugerir uma atenção nossa quanto à real aceitação de um sistema ideológico, como aquele que era autoritariamente imposto na Tchecoslováquia do pós-guerra. Mas como seria sustentada a tensão da obra?

Casado há muitos anos com Lída, com quem tem dois filhos, o protagonista repassa constantemente o seu matrimônio evidenciando o companheirismo da esposa. Está desvelada uma relação saudável, normal e, pode-se dizer, até desejada por muitos. Paralelamente, temos Daria, uma exótica e passional artista plástica que também possui um casamento ao qual, supostamente, estaria disposta a terminar para que ficassem juntos. Nenhum dos dois dá o passo final.

Angústia
Ivan Klíma sustenta a trama na oposição entre a tranquilidade encontrada pelo escritor em sua vida como varredor de ruas e a sua vida pessoal. A angústia quanto ao que deve ser feito habita todo o romance — mesmo com a manifesta passividade letárgica do protagonista. O ambiente político, aparentemente, fica em segundo plano, mas, não deixa de condicionar as posições ocupadas por todos ali. Por exemplo, devido a questões deixadas em suspenso, não ficam claros os motivos pelos quais não pode sair do país, insinuando apenas problemas com o seu passaporte. Afinal, ali, tais limitações são comuns.

É interessante como que na entrevista concedida a Philip Roth, disposta no final do livro, encontramos a mesma impressão. Questionado pelo escritor norte-americano sobre o eventual encantamento que a abertura política da República Tcheca poderia custar, joga-se para o leitor como a liberdade não seria um passe, um vale, facilmente adquirido e consequentemente manipulado, sendo capaz de resolver todos os problemas. E nem resolveria, tendo em vista os inúmeros dilemas nos quais os indivíduos encontram-se imersos.

Por mais que uma ideologia, um regime, um sistema, ou seja lá o que for, digam que o sujeito é livre, isso não é possível. Klíma deixa claro ao manipular constantemente a angústia de seus personagens, seja no agonizante adoecimento do pai, nas histórias da colega gari com os seus filhos, ou no simples casamento feliz que o sujeito possa ter.

Alguns diriam que, neste caso, ele estaria depondo contra a sua própria postura política de opositor do regime ao afirmar que, portanto, nada precisaria ser feito. Errado. O que ele faz é evitar cair em uma ingênua sedução de canto de sereias. Basta lembrar, como dito, que a Tchecoslováquia dos anos de 1980 agonizava politicamente. E, neste caso, a crítica mais forte se encontra na monotonia sufocante na qual o protagonista se encontra.

Amor e lixo é metafórico. Amor e lixo são metáforas para a condição de um sujeito com vida aparentemente normal. A turbulência gerada pela vida dupla do protagonista perturba o leitor ante a toda angústia gerada. Klíma não entrega um caminho fácil para quem tem o livro em mãos. Não há quem possa ser defendido. Não há personagem preferido. Todos estão corroídos pelos dilemas de uma vida monótona e previamente determinada, em que a única certeza são os lugares ocupados por cada um no interior da planejada sociedade tchecoslovaca.

É ilusão achar que o mar estaria sempre calmo, que seria possível gozar de um prazer permanente, independentemente de sua condição de trabalho e as opções que detém, do reconhecimento que se possa ter. Todo amor conviverá ao menos com um pouco de lixo e, de certa maneira, será possível encontrar amor no lixo e lixo no amor. Complexo, porém, simples. Afinal, é o próprio autor quem descreve que no “mundo tudo converte-se em lixo, rejeitos que é preciso eliminar da face da Terra, da qual nada se pode eliminar”.

Em um ensaio publicado no Brasil no princípio da década de 1990, A literatura da fé material, Ivan Klíma faz uma interessante aproximação entre fé e razão, argumentando que as duas são praticamente irmãs gêmeas. Chega-se ao ponto em que a distinção se torna impossível — tal como é difícil distinguir entre o que seria o amor e o lixo. Existiria muito de fé na razão, mas, igualmente, existiria muito de razão na fé. O cálculo, portanto, não seria suficiente para que se conseguisse resolver tais ou quais questões. E, talvez, isso seja uma marca interessante em sua obra.

Entretanto, a despeito da existência dos dois polos, aparentemente irreconciliáveis, um acaba por alimentar o outro. Trata-se de um movimento contínuo que faz com que haja uma dependência de ambos. Não há uma fórmula simples para a solução e, refletindo de maneira ainda mais profunda, não deve haver.

A racionalidade de um sistema político como o da Tchecoslováquia do pós-guerra exige uma fé gigantesca em seu funcionamento, de maneira a permitir que os indivíduos possam minimamente pensar em aderir a ele. Só com essa fé é que isso seria possível. Da mesma forma, uma instituição tão afetiva como a do casamento não funciona sem o cálculo racional das perdas e ganhos que lhe são imprescindíveis. Amor e lixo demonstra isso muito bem. O grande ponto a ser celebrado por Ivan Klíma, a partir de sua obra, é a da fuga dessa ingenuidade e a capacidade da arte, sobretudo a literatura, de expressá-la.

Ao anular essa percepção, manipulando elementos tidos como comuns na vida do indivíduo, Klíma entrega uma obra madura. Mesmo com sua concepção durante um período ditatorial, com diversas limitações na expressão artística, o autor apresenta um material que transcende a sua época. Assim é que cobra a sua leitura na contemporaneidade. Enfim, estamos diante de um livro bastante atual.

Amor e lixo
Ivan Klíma
Trad.: Aleksandar Jovanović
Carambaia
256 págs.
Ivan Klíma
Nascido em Praga em 1931, é considerado um dos maiores escritores da República Tcheca. Atuou como professor de literatura na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Autor de inúmeras obras, entre romances, contos e dramaturgia, traduzido para diversos idiomas, tem também publicado no Brasil Nem santos nem anjos, (Record).
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho