A metáfora da matriuska, a boneca russa que se renova insistentemente, é aquele tipo de mito que pode abrigar todas as possibilidades. O escritor Sidney Rocha a toma agora para falar de uma realidade onde as relações entre homens e mulheres se dão no instante em que o amor foi embora e restaram somente as feridas. E neste campo de batalha quem manda é a insensatez, o desvario. Daí a intensa oralidade dos textos.
Inicialmente, é interessante falar de um pecadilho que tem se tornado recorrente em nossa literatura e que atinge Matriuska, o livro onde Sidney Rocha retoma a larga metáfora russa, a inconseqüente mania de se buscar a agressão gramatical como acesso à vanguarda. Mais uma vez é preciso buscar apoio em Osman Lins. O escritor pernambucano ensinava da necessidade de se conhecer profundamente a gramática até para desrespeitá-la. De maneira mais risível, Luis Fernando Verissimo se define como um gigolô das palavras, que até bate nelas para que saibam quem de fato manda no texto.
Sidney renuncia a algumas maiúsculas como forma, ao que parece, de dar à narrativa um ritmo mais próximo da oralidade. Vejamos. “detestaria humilhá-lo, mas ‘O apartamento é meu, aqui pago tudo’. tirou o livro da bolsa e leu na página 63: talvez ainda estivesse lá, então continuou rodando.” O trecho aponta para aquela intenção, no entanto os pontos, as aspas e outros tantos sinais mantêm a função de trazer a prosa para o ritmo comum das leituras e, aí, o esforço resulta em vazio. Talvez a solução estivesse numa maneira mais ortodoxa de escrita, no uso insistente da vírgula, como faz José Saramago.
O conto que dá título ao livro, Matriuska, se faz um bom exemplo de como o uso da vírgula favorece o ritmo da narrativa.
foi naquela vez que nos vimos que me mostrou todas as suas importâncias: eram fotos na carteira, a solidão de um brinco que largara no mundo o seu par, um cartão de visita com alguns números de manaus, para casos de emergência, um pingente di noir, dois sonhos já desistindo, ir a cuba e comprar com o suor do rosto um fiat uno que fosse, um bilhete dinamarca/brasil, de viagem que fez uma amiga para nunca mais voltar praquele gringo, O filho da puta, um absorvente e duas lembranças de um aborto,…
E por aí segue na construção de uma narrativa segura, ritmada, precisa em sua configuração psicológica.
Sem borboletas
Passado o incômodo, a maçada da vanguarda desnecessária, fica um livro de qualidades narrativas indiscutíveis, um livro que traz em si uma linguagem crua, cortante, precisa. Ou, como escreve Marcelino Freire na apresentação, “o pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra!” Despido de borboletas e firulas, Sidney Rocha vai direto ao ponto, encurrala seus personagens em situações de dor e sofrimento, mas que são vivenciadas em cada esquina, no corre mesmo das horas. E foge da mesmice ao se projetar somente como narrador, fugindo de lições e conclusões mais sociológicas que literárias.
Para isso, sua preocupação básica é mesmo com os personagens, promovendo por todos os contos uma plena ausência de paisagem. Algumas cidades chegam a ser nomeadas, alguns rios, outros tantos mares, mas tudo de passagem, sem qualquer necessidade maior para o texto senão a configuração de um lugar. São espaços somente, microcosmos por onde transitam os personagens. O mecanismo impregna os contos de certa dose de universalidade. Embora sejam espaços brasileiros, o país se mostra como reflexo do mundo todo.
O fundamental é colocar os personagens em situações de tragédia, de fortes dores. E como o riso é parente da dor, constantemente as situações tornam-se risíveis. Com razão o crítico Mário Hélio fala de ironia e humor negro. “Há muitas ironias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define ‘pause’, quando o que se tem mesmo é o começo do fim. Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: ela precisa de dois dias’.”
Com relação aos títulos lembrados por Mário Hélio, eles vêm carregados de ironia por se contraporem ao contexto geral do conto. Os termos são modernos, mas as situações que nomeiam são arcaicas, velhas, antiquadas. Situações onde prevalecem o desprezo, o ciúme, o medo, a morte, e mais um tanto de sentimentos e acontecimentos dignos de antigos boleros. Contradições entre ontem e hoje.
A curiosidade aponta para o fato de os contos serem, em sua grande maioria, dedicados à condição do amor. Longe do amor bandido, mesmo assim aqui o amor é cruel, vive de desprezos e fatalidades, como ensina a protagonista do conto Feedback, a desesperada amante de Nestor. “mas vim pra ouvir o seu lamento outra vez, e dizer de novo que o amei como a macho nenhum nesta vida, é verdade, mas o amor tem um ranço no final, que não larga mais a gente e a gente vira limão quase, seca e bota amargor em tudo, que mulher é assim.”
Neste aspecto, a dualidade entre amores e crueldades, Sidney se filia ao universo de Dalton Trevisan. Usa constantemente o diminutivo para designar pessoas e fatos, como o velho vampiro, aumentando com maestria a ironia emplastrada no absurdo dos fatos que conta.
Matriuska é um livro que renova pela linguagem, pelo ritmo preciso, pela forma que é oral, mas nunca banal, por saber trabalhar o contraditório que é a própria existência.