Dona da própria narrativa

"História para matar a mulher boa", de Ana Johann, aborda com originalidade temas como culpa, violência e repetição
Ana Johann, autora de “História para matar a mulher boa” Foto: Isa Lanave
01/10/2023

Em meio a traumas e violências que parecem apontar para o eterno retorno, Helena, protagonista de História para matar a mulher boa, de Ana Johann, aos poucos encontra a coragem para confrontar a realidade e, enfim, fazer o que deseja. Para isso, precisa enfrentar um inconsciente capaz de sabotar várias de suas tentativas, já que se livrar dos ensinamentos de uma família conservadora, da culpa imposta pela religião e, sobretudo, da brutalidade do machismo não é tarefa fácil.

Já nas primeiras páginas do livro isso fica evidente por meio de Miguel, seu marido, que, além de negligenciar a filha do casal, é um homem bastante violento, capaz de criticar a aparência da esposa, menosprezar sua inteligência, desqualificar sua opinião, golpeá-la com socos, estuprá-la e, em seguida, se fazer de desentendido.

Do ponto de vista narrativo, esse está entre os primeiros dos muitos méritos da estreia da cineasta Ana Johann na literatura. Isso porque a autora já insere os leitores e as leitoras em uma cena bastante violenta, claustrofóbica e — para Helena e tantas mulheres — cotidiana.

Torna-se, a partir daí, inevitável o desejo de saber como essa história começou e há quanto tempo Helena vive dessa forma. Para responder essas e tantas outras perguntas, temos uma trama que caminha entre o passado e o presente de forma orgânica, ao fazer uso de relatos que se aproximam da associação livre.

No primeiro mergulho ao passado, fica perceptível que Helena parece já ter nascido predestinada à subversão: é a primeira filha a não ter nome começado em M. Essa pequena mudança no comportamento metódico de seus pais, no entanto, logo se mostra apenas o falso indício de uma transformação real.

Não por acaso, Helena sente os primeiros desconfortos com a família ainda na infância. Aos seus olhos criativos e exploradores, aquele ambiente dogmático não parece nada promissor. Não há espaço (e muito menos paciência) para as dúvidas infantis de alguém que teve a sensibilidade de criar, ainda enquanto criança, o “inventário de possibilidades humanas”, uma lista poética com as primeiras observações de Helena sobre as pessoas ao seu redor.

Diante do pouco espaço encontrado em sua casa, é na escola que ela experimenta a liberdade pela primeira vez, mesmo que a instituição coloque alunos do 1° ao 4° ano todos juntos, na mesma sala, e ainda delegue às crianças tarefas como varrer o prédio e seus arredores.

Nos livros, depara-se com um universo novo em folha. Começa a fazer mais perguntas e a chegar a conclusões mais abrangentes sobre o funcionamento do mundo. Mais tarde, já em outra escola e um pouco mais velha, começa a conhecer o próprio corpo e a se esfregar no sofá como forma de satisfazer uma vontade potente e, para ela, ainda inexplicável.

Entre santas e putas
Logo surgem as primeiras paqueras e os primeiros beijos. É nesse contexto de descoberta que Helena percebe, a partir da própria família, que as mulheres se dividem entre santas e putas. O novo aprendizado se instala em sua mente bem ao lado da máxima da mãe: se algo ruim acontece é porque você não está rezando o suficiente.

Helena tenta não encarar os clichês familiares como deterministas, mas enfrenta bastante dificuldade para simplesmente ignorar o que foi dito e repetido ao longo de sua vida. Como consequência, enxerga com certa passividade as primeiras violências de Miguel quando se conhecem e engatam um namoro, na adolescência.

A história dos dois é marcada por idas e vindas, traições, violência, dependência e chantagens emocionais. A relação, aliás, leva Helena a procurar na Espanha, durante o período em que cursou pós-graduação, novas experiências proporcionadas por drogas e sexo, sem, no entanto, jamais encontrar aquele que seria o seu primeiro orgasmo.

As passagens sobre sexo, vale dizer, desempenham um papel bastante relevante no enredo do livro, não apenas por evidenciar o quanto homens podem ser egoístas na cama, mas também para demonstrar que a busca de Helena passa, obrigatoriamente, pela libertação sexual.

Ainda nesse campo, fica perceptível que em muitas vezes a personagem se reprime, ao desejar algo que, por escolha própria, não se realiza. Essa aparente contradição tem nuances e não é, necessariamente, uma regra ao longo da história.

Os acontecimentos mais contrastantes em sua vida e o movimento de alternância entre passado e presente fazem com que Helena perceba suas próprias memórias, mesmo as mais dolorosas, e compreenda um pouco melhor quem realmente é, especialmente quando encara o medo constante de se tornar alguém como sua mãe.

É nesse ponto que a personagem se assume como narradora da própria história e se mostra disposta a matar a “mulher boa”, algo que, de certa forma, já tentava fazer desde a infância, com perguntas desconcertantes e o inventário de possibilidades humanas, do qual agora se torna parte.

Movimentos em cena
Além de apresentar um enredo original, atual e potente, a autora chama a atenção pela voz literária bem definida e pelas escolhas narrativas acertadas, capazes de prender a atenção do início ao fim. História para matar a mulher boa tem personagens bem construídos, movimentos irresistíveis e uma originalidade que impressiona.

A obra também se destaca pelo uso de elementos que remetem ao cinema (Ana Johann é cineasta e roteirista), com destaque para a construção de cenas em que pequenos elementos ganham notoriedade, como se a autora utilizasse o plano detalhe e a semiótica para ressaltar a importância desses detalhes para a narrativa.

Em um livro de estreia bastante maduro, Ana Johann entrega uma narrativa ágil, que faz paralelos entre a ficção e a vida real e brinca com a ideia da repetição, ao mesmo tempo em que alerta sobre seus riscos. História para matar a mulher boa explora possibilidades literárias e não-literárias e traz subtextos tão interessantes que funcionam como convite para uma segunda leitura imediata.

História para matar a mulher boa
Ana Johann
Nós
256 págs.
Ana Johann
Nasceu em 1980, é escritora-roteirista e diretora. Tem especialização em documentário pela Universidade de Barcelona e mestrado em cinema. Dirigiu e roteirizou sete filmes. Com o longa A mesma parte de um homem (2021), ganhou os prêmios de destaque feminino Helena Ignez no 24º Festival de Tiradentes, o de melhor roteiro original da Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), em 2022, e o de melhor filme no RIFF Awards Roma. História para matar a mulher boa é sua estreia na literatura.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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