Concordo com Millôr Fernandes: que é que tantos tanto vêem em Dom Casmurro, de Machado de Assis?
O estilo é uma mistura de prosa doméstica com meia-pompa erudita (já que no livro nada é inteiro, tudo é dissimulado, tudo é muito sugerido e mal revelado, as meias palavras a dizer mais que as inteiras. Há quem veja mérito literário nisso. Vejo apenas sintoma da falta de caráter do narrador protagonista).
A visão de mundo do protagonista é um espelho das convenções e valores da sociedade escravocrata, machista e culturalmente colonizada, plenamente assumida, sem qualquer remorso ou indício de crítica do autor subjacente ao seu personagem. Como sentimos, por exemplo, em São Bernardo, de Graciliano Ramos, onde o também narrador protagonista Paulo Honório se mostra tão dolorosamente fragilizado com as conseqüências de seus atos, e então vemos o autor e sua visão humanista por trás do protagonista desumano.
Ao contrário, em Dom Casmurro autor e personagem parecem se fundir em simpatia e empatia perfeitas, até porque o modo narrativo escolhido, além de ser na primeira pessoa, é enfeitado por digressões, alusões, citações e elucubrações tidas como “literárias”, e que, no entanto, tornam a narrativa pedante, arrastada, cansativa e, numa palavra, tediosa. A menos, claro, para quem cresceu ouvindo que Machado de Assis é um gênio e Dom Casmurro uma obra-prima, e, obediente às convenções como também é Bentinho, lê com o espírito pronto a concordar letra por letra com tal julgamento tão corrente que se tornou também uma convenção.
Relerei O alienista, que na juventude me pareceu instigante e crítico, o contrário do espírito conformado e da narração tediosa de Dom Casmurro e Brás Cubas. Mas não posso deixar de me parabenizar por não ter lido Dom Casmurro nem no colegial nem na faculdade, para trabalhos escolares que consegui enrolar ou assinar grupalmente. Nas duas oportunidades, foi porque achei a narrativa muito tediosa, num tempo em que lia Melville, Faulkner, Hemingway, Graciliano, Erico, Escorza, Guilhén, Henry James e Henry Miller, entre muitos outros.
Depois fiquei curioso de ler Dom Casmurro desde que, há duas décadas, numa praia, conversei com um engenheiro alemão, casado com brasileira, que estava lendo (com um dicionário e a metódica aplicação dos alemães) o livro do “maior escritor brasileiro”, para entender nossa cultura, e me questionou confuso:
— Mas ninguém acha ruim um herói tão sem caráter e uma narrativa tão enrolada?
Recentemente, graças a uma salmonela, tive tempo de ler muitos livros seguidos, inclusive os dois de Machado e… Há passagens, sim, há passagens destacáveis, como a do almocreve, em Brás Cubas. Mas, de resto, são o tipo de livro que se deve manter longe dos colegiais, ou indicar que leiam mas, com tantas ressalvas críticas e éticas, que eles certamente perguntarão:
— Mas se é assim, por que devo ler isso?
Professores, pais e cidadãos de bom senso: vossos filhos não perdem nada se não lerem Dom Casmurro e Brás Cubas. Se ética é o que mais falta em nossa civilização, falta de ética é o que sobra nesses dois romances. E não venham dizer que Machado pretendeu nos oferecer um retrato crítico da sociedade de seu tempo através de seus protagonistas dândis e eticamente monstruosos. Ao contrário, o que parece oferecer claramente é uma visão do homem que ele mesmo gostaria de ter sido, se não tivesse nascido mulato e pobre.
Lendo com meus olhos, pensando com minha cabeça e julgando com meus valores, “nosso maior escritor”, nos seus livros tidos como melhores, para mim é uma lástima. No entanto, o artista (como todos nós) pode ser mais de um. Relerei O alienista, com a prévia impressão de que, justamente por ser agudamente crítico, é o livro que deveria estar nas relações dos vestibulares, mas que, por isso mesmo, não está. (Se a impressão se confirmar, pedirei a este jornal que troque para O alienista o título de um de seus cadernos…)
Nossa elite intelectual de direita gosta de enganar, a de esquerda gosta de ser enganada, e no caso de Machado as duas estão de acordo. Por mim, como o bêbado da peça O rinoceronte, de Ionesco, mesmo que todos (menos Millôr) continuem a dizer que Dom Casmurro é a obra-prima de um gênio, continuarei a dizer: — Não! Eu resisto!
Quem merece tal história?
Dom Casmurro começa com o narrador Bentinho (depois de dois capítulos para dar título à obra e para comunicar que escreverá sobre sua própria vida) lembrando que, adolescente, ouviu o agregado José Dias prevenir sua mãe de que ele andava “metido nos cantos” com a vizinha Capitu, o que podia comprometer os planos de ser enviado ao seminário para ser padre.
Os fatos se embaralham com volteios, firulas e apreciações sobre personagens, que pouco acrescentam à história, e depois de 40 páginas ainda estamos com Bentinho atarantado com a descoberta, pela boca de outro, de que está amando Capitu… Vê que Capitu escreve seus nomes num muro, sinal de paixão. E Capitu o convence a pedir a José Dias que peça a sua mãe para estudar Direito, em vez de entrar para o seminário. O rapaz não consegue tomar decisões quanto ao próprio destino, manipulável e fraco como um boneco.
Promete “rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José arranjar que eu não vá para o seminário”… Mas lembra que já tem promessas não cumpridas… E acaba pedindo a José Dias que peça a Dona Glória dispensa da promessa de enviar o filho ao seminário. Para isso, acena ao agregado com a possibilidade de ser seu acompanhante nos estudos na Europa. Mas logo em seguida já revela ao leitor que tinha mesmo era vontade de continuar no Rio, “a Europa era muito longe, muito mar e muito tempo”.
Conta a Capitu a conversa com o agregado, e ela pede detalhes, confere, “pois Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem”… (o que endossa a opinião de Millôr Fernandes de que é Bentinho é gay). Noutros dias, Capitu insiste em ver resolvida a situação, com que Bentinho se conforma. Mas, depois que se beijam, ele se orgulha: — Sou homem!
Continua, porém, sem enfrentar o desejo da mãe, a quem até pergunta quando irá para o seminário… E, quando ela o tranqüiliza de que logo gostará de viver lá, ele diz: — Eu só gosto de mamãe. E “esclarece” ao leitor: “Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la, por fazer crer que ela era a minha única afeição: desviava as suspeitas de cima de Capitu”. Mentira e dissimulação vão se mostrando esteios do caráter de Bentinho, para quem “a mentira é, muita vez, tão involuntária quanto a transpiração”, mas tudo se desculpa porque “as contradições são deste mundo”.
Acaba revelando à mãe que não tem vocação para padre, mas “repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era”. Conta o fato a Capitu, que, “com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse: — Medroso!” Ao escárnio Bentinho reage… dizendo que “afinal de contas, a vida de padre não era má”… Capitu tripudia, contando como bem se vestirá para a primeira missa dele, ao que ele replica pedindo duas coisas: que ela se confesse com ele padre, e que também seja ele o padre a oficiar o casamento dela. Ao que ela responde que só pode prometer outra coisa: “que há de batizar o meu primeiro filho”. Momoqueios maiores nem mesmo nos romances românticos de Alencar.
Mas se reconciliam, e Bentinho a faz prometer que com ele se casará quando voltar dos estudos… no seminário! — para onde vai com a esperança de agradar a mãe mas de não acabar padre finalmente, dando-se o prazo de dois anos para a experiência vocacional, com o que a mãe concorda. A procrastinação é outro esteio do caráter de Bentinho.
Despedindo-se do pai dela, ele lhe dá de lembrança um cacho de cabelos, que tinha cortado para dar a ela mas… Vai para o seminário confiando que José Dias, em um ano, convencerá a mãe de que melhor destino é a Europa e o estudo de medicina… No seminário, conhece o esquivo Escobar, para quem “a princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado em minha confiança. (…) Escobar veio abrindo a alma toda” e “como as portas (da alma) não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou”… A relação entre os dois é resumida nessas penetrantes ou penetratórias imagens.
Bentinho deixa-se enrolar por José Dias, com vagos planos de futura viagem à Europa, enquanto, em visita à casa da mãe, representa, em cumplicidade com Capitu, que um dia será padre e até a casará, para que não desconfiem do namoro secreto. E assim vai Bentinho aprimorando seu caráter…
O mundo do trabalho
Capitu vê Bentinho e Escobar em “despedidas tão regadas e afetuosas”. Bentinho tem ciúme de Capitu que da janela troca olhar com um cavaleiro da rua, e fica com ganas de ser mesmo padre, claro, com tão firme caráter… Mas volta a se reconciliar com Capitu, que ganha crescente simpatia da futura sogra e também “ia crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora”, cuidando de uma amiga doente. Já Bentinho, só a custo e só graças à própria fraqueza de caráter, concorda em visitar um amigo recém-falecido, destilando cinismo: “Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito”.
Mas pensa em ir ao enterro no dia seguinte, porque assim “não iria ao seminário e podia fazer outra visita a Capitu”. Vai pedir isso à mãe, que não consente, com o que fica amuado, mas disso logo passa, tal a leveza de caráter do nosso herói, que parece amar mais ser conduzido do que conduzir-se. Recebe a visita de Escobar, “que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas”… Ao amigo conta, assim casualmente, que a mãe tem casas e escravos de que o filho mal sabe… Bentinho vive da mãe, que vive da herança do marido. O mundo do trabalho passa longe da obra-prima de Machado de Assis.
José Dias conta a Bentinho que a mãe está disposta a consentir que ele deixe o seminário, desde que vá a Roma… pedir a absolvição ao papa! Mas Capitu tem idéia melhor: que, para pagar a promessa, a futura sogra dê à Igreja algum “mocinho órfão” a ser ordenado à sua custa… com o que, claro, prontamente concorda nosso nobre Bentinho. Escobar também deixa o seminário, e Bentinho vai estudar Direito.
Escobar casa com Sancha, a amiga de Capitu. E Bentinho e Capitu se casam, Escobar ajuda Bentinho a conseguir clientela, Escobar tem uma filha, e depois Bentinho e Capitu têm o seu, Ezequiel. Mas o menino cresce, tem mania de imitar pessoas, às vezes até parecendo o padrinho Escobar… E a mãe de Bentinho deixa de visitar o casal… enquanto José Dias chama o menino de “filho do homem”, e o menino tem de Escobar gestos, modos e risos que Capitu procura repreender.
Mas é olhando um retrato de Escobar na escrivaninha de trabalho, e a dedicatória ao “querido Bentinho”, que Bentinho se sente “fortalecido” nos pensamentos… Escobar, porém, morre afogado no mar. E “os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva”. No enterro, Bentinho lê um discurso “obrigado a dizer e dizia mal (…) temendo que me adivinhassem a verdade”. Que verdade? Tudo é mal desvelado, tudo dissimulado, como o caráter, claro, do protagonista narrador, que mal se revela às próprias memórias.
Bentinho torna-se melancólico… até porque o filho Ezequiel vai se tornando um Escobar redivivo. Bentinho confessa ter sentido ganas de matar mãe e filho, mas… acaba é colocando o filho num internato, solução típica de seu caráter: afastar o problema. Que, quando visita os pais, é “um Escobar mais vivo e ruidoso”, de quem Bentinho procura manter distância, passeando “pela cidade e arrebaldes o meu mal secreto”.
Bentinho, então, pensa em se matar, compra veneno, mas vai ao teatro ver o suicida Otelo e resolve que Capitu é quem deve morrer… Em casa, já resolve novamente se matar, escreve cartas de despedida. Lembra que Catão leu Platão antes de se matar, e então lê também, e amanhece, e o criado traz café, que ele quase bebe com o veneno, quase dá a Ezequiel… tudo quase. Dom Casmurro é quase uma celebração da vacilação e da pusilanimidade, e “quase” apenas porque tais qualidades não comportam celebração.
Mas, depois de quase envenenar o menino que o chama de pai, beija-lhe “doidamente a cabeça”, enquanto tem finalmente a coragem de dizer “eu não sou teu pai!” (Ufa! Finalmente um enfrentamento dos fatos, que continua com Bentinho acusando Capitu de infidelidade, embora com meias palavras indiretamente narradas, claro, “não disse tudo”. “A separação é coisa decidida” — resolve — e “era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio”. Bentinho é o arquétipo da dissimulação.
Com a separação, Bentinho deixa de lado o suicídio. E, indo à Europa, deixa Capitu e Ezequiel na Suíça! “Assim regulada a vida”, volta ao Brasil. Retorna duas vezes à Suíça, “com o intuito de simular” (…) “como se acabasse de viver com ela” e “enganar a opinião” (das pessoas).
Morrem-lhe a mãe e José Dias, e manda demolir a velha casa da mãe, construindo outra igual em outro bairro… metáfora da tentativa de recuperar o passado. Até que, um dia, recebe a visita de Ezequiel, “o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar”, em luto por Capitu. Faz o rapaz esperar na sala, até se lembrar “que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo”. Bentinho não tem personalidade, é um títere das convenções sociais.
Custeia viagem arqueológica de Ezequiel ao Egito, onde o rapaz morre de doença. Ao saber da notícia, Bentinho arremata capítulo: “jantei bem e fui ao teatro”. No fim, solitário e amargo a ponto de ganhar o apelido de Dom Casmurro, Bentinho conclui: “é a suma das sumas (…) que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me…”
Enfim, a história de um anti-herói, ou melhor até, um des-herói, tão sem caráter que não chega a tomar consciência de que é homossexual, torna-se corno e até para se vingar é sub-reptício. O tipo de história e de protagonista que nenhum colegial merece.