Sentada em sua cadeira de rodas, Dolores olhava fixamente as mãos de Alceo, cruzadas sobre o peito. Mãos de homem trabalhador. Mãos que construíram casas, móveis, tudo em que a madeira pudesse ser transformada. Mãos que a amaram e acariciaram e lhe sustentaram os filhos e que no fim da vida tinham tentado assassiná-la. Agora, as mãos estavam ali, cruzadas sobre o peito, acompanhadas de flores e véus. Eram mãos mortas que nunca mais criariam nada ou seriam violentas com alguém.
Dolores ainda não conseguia explicar, naquele momento, se sentia mais saudade ou alívio. Tinha vontade de falar muito com todos os que vinham lhe dar os pêsames, mas ficou o tempo todo calada. Só “obrigados”, “ois”, “até logos” saíam de sua boca. Tinha vontade de xingar o defunto da mesma maneira que poderia enfileirar uma seqüência de elogios colecionados durante os mais de cinqüenta anos de vida em comum.
Queria contar que ele lhe encostou a faca na barriga, que lhe jogava objetos os mais variados, todos que estivessem à mão, pratos, talheres, vasos, cadeiras, tesouras, vassouras, pás e até gaiolas de passarinhos e que ela não conseguia fugir em sua cadeira de rodas ou em seu andador metálico que a faziam parecer uma criança que começava a aprender os primeiros passos. Queria contar que Alceo a amou como poucas vezes uma mulher foi amada no mundo, mas que, mesmo assim, tentou matá-la.
Não entendia o que se passava em sua cabeça da mesma maneira que não entendeu o que se passou na sua vida. O mesmo homem que a amou tanto e que lhe ajudou nos momentos mais difíceis, que lhe deu banho todos os dias por anos seguidos desde que sua perna e seu joelho não mais responderam, o mesmo homem que lhe fazia café e almoço todos os dias e ainda lavava a louça, arrumava a cama, comprava-lhe remédios e lembrava todos os horários deles, que não eram poucos, esse mesmo homem que a ajudava até a ir ao banheiro e lhe limpava, tudo por e com amor, tinha encostado a faca em sua barriga e ameaçado matá-la como se mata um porco ou ainda degolá-la como se fosse uma galinha prestes a ser depenada e ir para a panela.
Por causa desse mesmo homem que lhe cuidou por milhares de dias e do qual foi completamente dependente nos últimos anos, havia ficado quase uma semana sem tomar banho, com medo de que ele cumprisse a ameaça e a matasse no banheiro. As mãos que lhe fizeram o primeiro carinho íntimo, cheio de respeito e desejo, eram as mesmas que lhe apertaram o pescoço e a jugular, deixando-a sem ar, quase a sufocando.
Os últimos dias foram difíceis e só ela sabia o quanto. Escondeu da família o mais que pôde, mas o medo da morte foi mais forte. No último dia em que o viu vivo, ele jogou coisas em cima dela e foi buscar a faca para matá-la e ela sabia que era verdade. Quis fugir para a rua, tropeçou com aquela peça metálica que a ajudava a manter o precário equilíbrio e a fazer algo parecido com o que ela lembrava que era andar. Caiu e ainda teve forças para se agarrar e se levantar e mesmo com objetos voando e atingindo-lhe costas e cabeça, conseguiu descer os degraus e ir para a rua, enquanto Alceo procurava a faca escondida por ela e pela empregada.
Na rua, com ajuda dos vizinhos, não teve como impedir que a polícia fosse chamada. Era uma vergonha enorme, mas não pior do que ser assassinada pelo marido que amava e, tinha certeza, também a amava nos pequenos momentos de lucidez que se entrepunham entre a loucura já quase permanente. Ela foi para a casa da irmã e da cunhada, enquanto ele foi internado em um manicômio e morreu poucos dias depois.
Agora, ali no enterro, Dolores olhava para as mãos imóveis e sentia alívio e saudades. Sabia que não iria mais ser assassinada, mas não queria que isso tivesse custado a morte de seu amor. Sentia saudades daquelas mãos e por um instante sentiu saudades até do momento em que as viu procurando a faca e atirando-lhe coisas. Aquelas mãos seriam enterradas dali a pouco e nunca mais ela as veria e pensando nisso sentiu um amargor, uma saudade, quase tão insuportável quanto os momentos de terror de dias atrás.
Daqui para frente, o resto de seus dias poderia vir a ser mais tranqüilo. Poderia ter, enfim, o que se costuma chamar de uma velhice digna, se é que se pode chamar de digna essa falência corporal, essa degeneração em que nos tornamos. Como achar altivez, dignidade se permaneceria ali, entre uma poltrona e outra, entre uma cadeira de rodas e um andador primitivo, totalmente dependente dos amigos e parentes, sem vida própria, sem nem mesmo conseguir sair até a calçada ou ir até o banheiro sozinha? A última vez que conseguiu locomover-se por seu próprio e único esforço foi à custa de ter alguém atrás, tentando matá-la.
Olhou aquelas mãos mais uma vez e quase teve inveja delas por irem para o descanso. Era mais um sentimento que vinha agora misturar-se com as já conflitantes sensações de alívio e saudade. Por um momento pensou se não teria sido melhor deixar-se matar. Seria quase uma morte romântica, assassinada pelo único e eterno amor da vida dela. Bobagem? Não sabia mais dizer o que seria bobagem, mas o sentimento era tão real que quase poderia apalpá-lo, tocá-lo, como poderia, com algum esforço, tocar naquelas mãos cruzadas sobre o peito, dentro do caixão. Enquanto pensava isso, fez um movimento com as mãos, esticando os braços em direção ao caixão e uma lágrima escorreu em sua face.
Poucos ali no velório sabiam dos seus sofrimentos dos últimos dias. Os que sabiam viram a mão parada no ar e não entenderam muito. Um dos filhos foi até ela, mas ela recolheu a mão e meio constrangida disse que não queria nada, obrigado.
O constrangimento trouxe uma certa vergonha por estar tão absorta, tão calada, tão longe de tudo e todos. Vivia agora um mundo de lembranças e, naquela sala, as únicas coisas que lhe pareciam vivas e lhe chamavam a atenção eram as mãos cruzadas sobre o peito do marido. As mesmas mãos que haviam tentado matá-la e que agora ela iria enterrar. Mãos que ela viu acariciar os filhos com tanta freqüência quanto batiam neles. Mãos que foram macias no seu pescoço para amá-la pela primeira vez e que, mais de cinqüenta anos depois, voltaram ao pescoço com raiva e violência, tentando estrangulá-la.
Mal escutou a fala do padre, as preces, os intermináveis cantochões puxados por filhos e netos e colegas dos filhos e netos mais carolas e antes de fecharem o caixão, esticou novamente as mãos para a frente tentando pegar aquelas mãos cruzadas sobre o peito do marido. Não sabia se queria acariciá-las ou esmagá-las, beijá-las ou mordê-las. Não quis levantar-se para o último adeus e quando a tampa estava para encobrir de vez as mãos cruzadas sobre o peito do marido, teve a última tentação de cuspir lá dentro e não sabe se para insultá-lo ou se para viver com ele um pouco mais, enquanto a saliva não secasse.
A mão ficou parado no ar e ela quase se afogou, o que foi entendido por todos como emoção e vontade de chorar, o que também não deixava de ser verdade.