Durante a Bienal do Rio do ano passado, Millôr Fernandes chamou a atenção para o lançamento de Equador, de Miguel Sousa Tavares. “Dan Brown, aprenda!”, era o seu comentário. Millôr se referia à qualidade do texto do autor português em relação à dos best-sellers do americano, e concluía: “Mas trata-se de um romance romântico, diga-se!”.
O livro, só em Portugal, vendeu mais de 230 mil exemplares. Já está traduzido na Holanda, França, Grécia, Espanha, Itália e Alemanha. No Brasil, tem tido boa acolhida: está já na terceira reimpressão de sua primeira edição. Se Millôr estiver certo e Equador tratar-se mesmo de um romance romântico, como se explica o sucesso não só em sua terra natal, mas também alhures? Cabe no século 21 um livro escrito aos moldes de Alexandre Dumas, Balzac e Stendhal?
Luís Bernardo, protagonista da trama — uma reconstrução de época, cenários e até aromas à altura de obras-primas como Salammbô, de Flaubert —, é sim o herói problemático do qual falou George Lukács. Ele difere em tudo do Ulisses ou da maior parte dos heróis épicos gregos e romanos; difere dos personagens destemidos e grandiloqüentes da saga camoniana expressa em Os lusíadas.
Escolhido pessoalmente por D. Carlos, rei de Portugal, Luís Bernardo, um homem de idéias “liberais”, membro da aristocracia lisboeta, dono de dois navios que faziam comércio entre Portugal e várias outras nações, amante do bom vinho e dos relacionamentos amorosos fugazes, aceita o pedido do rei e ruma para S. Tomé e Príncipe, ilhotas cortadas pela linha do Equador no litoral da África. Ali, assumiria o posto de governador da colônia.
Os ingleses, principais compradores do cacau produzido nas ilhas, alegam haver por lá trabalho escravo, há muito abolido e proibido em acordos internacionais, e ameaçam boicotar a produção caso a situação dos trabalhadores não seja regularizada. A missão de Bernardo é convencer o cônsul inglês, David Jameson, que chegará a S. Tomé em alguns meses, de que o trabalho na ilha é assalariado e que os homens vindos de Angola são livres, podendo partir para sua terra quando bem quiserem, ou ao final de cada contrato vigente.
A descrição dos ambientes e das paisagens do longínquo exílio equatorial de Luís Bernardo é feita geralmente com riqueza de detalhes e muitas vezes com belas imagens poéticas. Tavares domina com maestria a transformação dos acontecimentos sonoros, visuais, olfativos e mesmo tácteis em palavras, uma explosão de sentidos em pleno deserto verde da África. Cenas de caráter sexual — entre Luís Bernardo e Matilde (em Lisboa) e entre o governador e Ann, mulher deslumbrante, esposa do cônsul da Inglaterra que passa a viver em S. Tomé — aproximam a narrativa do que foi convencionado chamar de naturalismo, com detalhes precisa e voluptuosamente descritos, fazendo aí uma homenagem a mestres do gênero, como Zola e, entre os brasileiros, Julio Ribeiro, Aloísio Azevedo e Raul Pompéia.
A construção do livro segue também uma outra categoria lukacsiana, a do romance de formação. Segundo Lukács — baseado nas teorias de Hegel —, toda situação (tese + antítese) produz uma conclusão (síntese) que se submete a uma nova antítese, construindo um personagem que, com o passar da narrativa, torna-se mais bem preparado, prática e espiritualmente, do que era no início do relato. Isso acontece com Bernardo e também com Jameson (no longo capítulo 9 têm-se detalhes da vida deste político obstinado, desde sua adolescência sofrida, dedicada aos estudos na Escócia, sua árdua caminhada até chegar ao serviço diplomático inglês na Índia, até assumir o estado de Assam, como governador). Até o tropeço de David, por dívidas de jogo, e sua transferência a S. Tomé (e conseqüente promoção após a missão cumprida) caracterizam esse crescimento do personagem ao longo do enredo (que Lukács e Marx viam exemplarmente realizado na obra de Balzac).
Luís Bernardo, mesmo tendo o final trágico que tem, representa um personagem em avançado processo de crescimento, inclusive moral. Em duas ocasiões — no julgamento de dois negros acusados de fuga e na ameaça de uma revolta de trabalhadores —, ele toma partido do lado “mais fraco”, usando de sua autoridade para protegê-lo e impor a justiça.
Visto de uma forma mais abrangente, Equador é o retrato de uma sociedade corrompida; e a figura de Bernardo, um D. Quixote repleto de sentimentos de justiça e igualdade, representa a impossibilidade de alguém nestes moldes resistir ao rolo compressor que nos dita as regras, ao mecanismo que perpetua e aumenta ainda mais as desigualdades.
Por sua vez, S. Tomé e Príncipe, em 1908, é o Brasil de 2005, é a Índia de ontem e de sempre, é a Somália e é Bangladesh. O porquê de o dito romance romântico de Miguel Sousa Tavares despertar tanto interesse no público leitor de países diversos é este: metaforicamente, estamos nos deparando com horrores atuais e insolúveis, com a impotência dos que tentam lutar contra a baixeza dos métodos de exploração.
Walter Benjamin em seu texto Sobre o conceito de história, de 1940, afirma: “O assombro com o fato de que episódios que vivemos no século 20 ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável”. Com isso, Benjamin nos chama a atenção para a importância e a necessidade urgente de ressignificar o passado para tentar vislumbrar um futuro alternativo possível. Equador pode servir de meio condutor para uma leitura neste viés. Do contrário, o tiro no próprio peito é o que nos espera a todos, num mundo cada vez mais encurralado pela ruína humana.
Por isso o final do livro é tão impiedosamente estarrecedor: Luís Bernardo é cada um dos leitores que até o final sonha, junto com ele, com uma saída. E afunda-se com ele na poltrona do escritório, com os braços estendidos sobre a mesa a deixar-se levar pelo negro Sebastião, rumo aos próprios funerais. A ausência de saída atormenta por ser a mímeses da nossa realidade mais que atual, disfarçada nos belíssimos quadros, aquarelas e águas-fortes pintados por Miguel Sousa Tavares, representando, apenas alegoricamente, a exuberância equatorial.
Cronista
Não te deixarei morrer, David Crockett é de uma leveza diametralmente oposta ao romance Equador. São 38 textos curtos, que podem ser classificados como contos ou mesmo crônicas, repletas de lugares, emoções e assuntos variados.
Em alguns textos, há a irrealização do amor — como também acontece no romance (além de lá haver irrealizações políticas e ideológicas associadas). Porém, aqui há textos de uma profunda alegria, de uma satisfação com o viver e o descobrir; há um brilho do existir que no soturno ambiente-prisão de S. Tomé e Príncipe não há.
Miguel Sousa Tavares, nestes pequenos relatos, adota uma abordagem poética que o aproxima de grandes nomes da crônica brasileira, como Rubem Braga. Há também uma poesia autêntica e pura que, em momentos, remete a Cecília Meireles (por mais descabido que possa parecer o paralelo). Tavares é poeta, enfim, e isto transparece com muita força neste seu segundo livro publicado no Brasil.
Há odes ao verão e ao Mediterrâneo, à luz de Lisboa (que se assemelha à de Paris, para o narrador de uma das histórias) e às férias algarvinas da infância. O velho de Alcântara-mar é talvez o mais poético dos textos do livro. Já na primeira página, lê-se:
Este restaurante, pelo contrário, é freqüentado por uns clientes discretos, habituais e silenciosos, que vêm comer polvo cozido com todos e parecem cobertos por uma fina poeira de tristeza que os torna, de certa forma, íntimos. Íntimos, apesar do nosso mútuo silêncio, cúmplices na solidão das mesas, como marinheiros naufragados, cada um em sua ilha.
Em Vou levar meu filho às Antas, um pai leva o filho para, pela primeira vez, assistir a uma partida de futebol ao vivo. Viajam de Lisboa ao Porto, a paixão em azul e branco do pai transbordando de cada palavra até o orgulho de ver o espanto do menino a observar a multidão e os gladiadores modernos invadindo o gramado (que em Portugal se diz relvado).
Na nota introdutória, o autor justifica o título como sendo uma promessa, a si mesmo, de jamais deixar morrer a criança que há em si. Ao longo do livro, percebe-se na narrativa este prazer de se divertir, de tirar mesmo das coisas mais adversas lições produtivas; nota-se também a capacidade do autor de sorrir, acima de tudo, de contemplar os pequenos gestos e momentos e de saber olhar. Afinal, é o que diz o narrador de E ela dança, referindo-se a sua mãe: “A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar”.
Nesses dois livros, Miguel Sousa Tavares se apresenta como escritor maduro, sensível e mestre na arte de contar histórias, entreter o leitor e emocioná-lo. Desponta, assim, como um dos mais significativos nomes da literatura portuguesa contemporânea, esboçando o horizonte de uma obra coesa que, certamente nos anos vindouros, surgirá.
E apesar da leveza e beleza de seu livro, o autor não se ilude quanto à condição humana primordial dos nossos tempos: “Quando as coisas são verdadeiramente importantes, quando se chega ao limite de cada coisa, estamos sós. Sempre e irremediavelmente sós”.