O que podem ter em comum Alexandre Yersin (1863-1943) e Léon Trótski (1879-1940), dois homens aparentemente opostos em tudo? Vale a leitura de duas obras de Patrick Deville, autor francês de alguns dos livros mais premiados da Europa nos últimos anos, para descobrir. Em 2012, publicou Peste e cólera, biografia de Yersin, e em 2014, Viva!, de Trótski, ambos “romances sem ficção”, como os descreve o autor. “A vida de um homem é a unidade de medida da História”, afirma. Deville vem desenvolvendo um ciclo de romances de grande originalidade e acuidade histórica sobre homens cujas vidas estão fartamente documentadas. O resultado é uma sucessão de imagens, um caleidoscópio que reproduz as circunstâncias e mudanças desde 1860, quando, segundo o autor, “o mundo passou a estar mais conectado”.
Alexandre Yersin nasceu na Suíça em 1822. Estudioso desde a infância, formou-se médico, mudou-se para Paris para trabalhar na equipe de Louis Pasteur, onde rapidamente ficou conhecido como cientista brilhante. Tinha tudo para estabelecer-se e herdar, junto com Émile Roux, a direção do Institut Pasteur, mas picado pelo inseto da inquietação assume o posto de médico de um navio que faz a rota ao Extremo Oriente. Acaba se instalando na Indochina (atual Vietnã), onde trata os doentes e mapeia as montanhas. É aí, na vila de Nha Trang, que passa a maior parte de seus anos, tornando-se herói local: “Sr. Nam”, escolas e ruas nomeadas em sua homenagem e um templo sobre seu túmulo.
O romance de Deville emerge da correspondência entre o cientista e sua família. Era dotado de uma curiosidade insaciável, que o levou a identificar a toxina da difteria, traçar uma nova rota ao Camboja, criar a escola de medicina de Hanói, cultivar borracha e quinino — e mais importante: descobrir, quase casualmente, o bacilo da peste bubônica, chamado de Yersinia pestis em sua homenagem.
Deville demonstra que Yersin é maior do que a soma de suas descobertas. Na época, deixar o Institut Pasteur e Paris e mudar-se para a Indochina era mais excêntrico do que seria hoje sair do Facebook, recusar o prêmio da Mega-Sena e instalar-se em Cubatão. Era movido apenas pela certeza de que em meio a mentes medíocres, seria medíocre também. Definitivamente euro-positivo, no momento em que a ciência derrubava alguns dos inimigos mais cruéis da humanidade. Praticava o que pregava: criou um jardim científico altamente eficiente, era um observador astronômico contumaz, preferia longas horas de leitura a uma vida amorosa e social. Sua religião era a ciência.
O romance começa em maio de 1940 quando Yersin, aos 77 anos, faz sua última viagem de Paris a Saigon. “As tropas alemãs estão às portas de Paris.” Homem do século 19, a sombra do que está por vir já o alcança. Apesar de insistir na ausência de ficção, Deville utiliza técnicas ficcionais com perícia para dar verossimilhança ao enredo. O “fantasma invisível do futuro”, narrador onisciente vindo de 2012, segue o cientista desde sua juventude. Insere-se na história aqui e ali, mantendo o leitor a uma distância respeitosa. Trata-se da vida de um gênio recluso, que dificilmente gostaria de ser biografado. A presença remota de contemporâneos de Yersin com quem ele nunca teve contato, como Rimbaud, Joyce, Dreyfus, Zweig, dão o pulso daqueles anos de abalo sísmico global.
A voz narrativa transmite na medida justa o compasso desse homem metódico, brilhante. Praticamente não há diálogo, detalhes são altamente condensados. A possibilidade de drama ou suspense é neutralizada. Frases telegráficas, porém representativas (“Em Colombo ele compra um casal de mangustos.”), se alternam com pensamentos muito contidos e ao mesmo tempo, de grande carga emocional (“Porque, ao fim do dia, pode-se ou não ter a vacina contra a peste mas nunca, como se sabe muito bem, encontraremos uma vacina contra a morte de amigos…”). A prosa é fluida, sempre no tempo presente, como se ritmada por um metrônomo. Não há aumento nem quedas de tensão, não há conflito, o compasso não varia, tudo é imagem. A voz de Yersin vem das cartas à sua irmã, que revelam pouco de si, mas muito do ambiente, da rivalidade com a Alemanha, dos chiaroscuros do colonialismo francês. Deville optou por salientar que durante a maior parte de sua vida, Yersin despreza “as bobagens da pintura e da literatura”, mas após sua morte encontramos o segredo de sua última paixão: a tradução de poesia de Cícero, Platão, Demóstenes. A vida mata, a literatura salva.
Deville capta (ou cria) um Yersin focado, impassível, com uma linguagem igualmente contida, um Yersin de carne e osso que dispensa fotografias. O leitor se pergunta como alguém que salvou a vida de tantos milhões de pessoas pode ter sido quase esquecido pelo mundo ocidental.
Enxurrada de personagens
Naturalmente a vida de Léon Trótski não poderia ser contada dessa forma. Quase que no outro extremo, Viva! é uma enxurrada de personagens, paixões, alcoolismo, coincidências, mortes violentas. Tudo escapa ao controle, assim como foi a vida desse homem. O romance concentra-se nos anos que passou no México até seu assassinato em 1940, época convulsiva pós-revolução. Em breves capítulos acompanha-se a vida de Trótski e em paralelo, a de Malcolm Lowry (1909-1957), autor inglês de À sombra do vulcão (LP&M, 2007) — onde há um jogo de espelhos entre Lowry, autor, e Firmin, protagonista, com toques autobiográficos. Além da coincidência geográfica entre o romance de Lowry e o país onde Trótski foi morto, o protagonista de Lowry termina assassinado, acusado de ser Trótski. Deville se vale de um inteligente mise en abyme com Lowry x Firmin dentro de Lowry x Trótski; em um romance sem ficção, a ficção está na forma.
Apesar de jamais terem se encontrado, Lowry era grande admirador de Trótski, escrevia com o mesmo senso de morte iminente, a mesma febre para revolucionar, um querendo revolucionar a prosa poética, o outro, revolucionar o mundo. Ambos lutavam com seus demônios internos, Trótski e sua lealdade partidária, Lowry e o alcoolismo. No percurso dessas vidas, o leitor depara-se com Frieda Kahlo, Diego Rivera, André Breton, e outros tantos em uma espécie de dança macabra que conduz Trótski e Lowry às suas quedas. Para os dois, isso é infinitamente melhor do que desistir de seus sonhos.
A biografia de Trótski já foi muito estudada, diversas vezes escrita. Deville acrescenta ao que é possível saber dos medos e pesadelos desse homem. Aqui, como em Peste e cólera, sonhava “fazer isso ao qual acredito que cheguei hoje: a utilização de todos os gêneros literários, biografia, narrativa histórica, cartas, crônicas de viagem, até entrevista jornalística. […] Eu queria o prazer de poder brincar com todas essas formas”. O mergulho nos documentos, cartas, jornais, a garimpagem dos vestígios, a vivência in loco, colocam Deville no alef: a geografia é o lugar onde o passado encontra o presente.
Em ambos romances, tudo contribui para a experiência histórica do leitor, desde o título. Peste e cólera alude às duas potências científicas da época, França e Alemanha, origem de Yersin e Koch, respectivamente, descobridores da causa de uma e outra doença. O título sugere que a biografia de Yersin irá muito além de sua vida, no tempo e na geografia. Yersinia pestis, o micróbio mais mortífero da história humana, é o simbólico coração das trevas ao centro desse relato de descoberta e perda. Não por acaso o romance recebeu vários dos maiores prêmios literários franceses.
O romance Viva!, com o ponto de exclamação do título, já começa hiperbólico, como as cores do México pós-revolução. O leitor viaja da Sibéria a Coyoacán, vai e volta no tempo, segue pegadas e ouve sobreviventes. “Inserir a ficção nesses livros iria perturbar consideravelmente o pacto de veracidade com o leitor.” Não há invenção, tudo é ritmo e a história é escrita em função do homem.
Trótski é um homem que dividiu a história da política em dois; Yersin dividiu a história das epidemias em dois. Um encontrou uma morte trágica após anos de exílio e desespero; o outro, após décadas de serenidade, morreu herói na terra por ele adotada. A vida desses dois contemporâneos ilumina o mundo em que viveram: o colonialismo, os avanços da ciência e medicina, duas guerras que demonstraram a crueldade e arrogância de que o homem é capaz, ao mesmo tempo em que alguns davam tudo que tinham, até a vida, em benefício alheio. O brilhante exercício literário combinado a minucioso trabalho de documentação produz o que a enumeração dos fatos por si só não seria capaz. Deville tampouco considera o trabalho terminado. Esses dois romances são parte de um projeto audacioso de 12 volumes sobre personalidades influentes desde a segunda metade do século 19. Além do Vietnã e México, Patrick Deville já se debruçou sobre a Nicarágua, a África, o Khmer Rouge, e pretende um dia fazer o mesmo no Brasil. É bem provável que esse francês ainda nos ensine muito da nossa história e geografia.