Dois chamados ao Paradiso

Considerado difícil e hermético, Paradiso, de José Lezama Lima, ganha duas novas traduções para o português
José Lezama Lima por Robson Vilalba
13/04/2015

O prefácio de uma das novas traduções de Paradiso (a da Martins Fontes) cita texto do argentino Julio Cortázar. Em Para llegar a Lezama Lima, ele expressou sua irrestrita admiração pela obra do coetâneo cubano: “Este não é um livro para ser ler como se leem os livros habituais”.

Lembro-me de ter convivido pela primeira vez com Paradiso aos quinze anos — e de ter compreendido quase nada, naturalmente. Ainda assim, naquele navegar às cegas por boa parte das seiscentas páginas, recordo-me de ter chegado à conclusão semelhante: era uma experiência bem diferente de tudo que eu experimentara, e provavelmente muito distante de tudo que eu ainda experimentaria.

Quase todos os resenhistas e estudiosos orbitaram em torno desse sentimento. Contudo, notável diferença separa a maioria dos comentadores e Cortázar: as considerações deste funcionam como convite, e não como uma admiração que tanto pode suscitar desejo quanto medo. O meio século que nos separa da primeira edição (publicada em 1966) assistiu a insistentes análises que afastam os “diletantes” (como um dos pesquisadores costuma tratar os menos preparados para a leitura). São investigações que construíram a fama de livro hermético, quase impossível de ler — o que não deixa de ser correto, tampouco extremamente equivocado.

Em perigoso paralelo com as artes visuais (onde também é considerada abordagem problemática), pode-se afirmar que as camadas de leitura do clássico apresentam níveis muito distintos de dificuldade. No plano formal, está longe de ser tão árduo quanto o Ulisses, de Joyce, e talvez o leitor se sinta mais à vontade do que com O som e a fúria, de Faulkner, e o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (livros com os quais é frequentemente comparado). Seu potencial de estranhamento é não só menor, mas também de natureza bastante diversa. Nos planos analítico e interpretativo, porém, o leitor é de fato extremamente exigido. Ou melhor, ele é chamado para uma jornada longa, estranha, complexa e que requer incomparável comprometimento.

Naquela adolescência, tive em Paradiso um rito de passagem, no qual confrontado com literatura que, muito além do costumeiro, tornou-se parte de minha formação. Porque ascender os degraus dos seus planos de leitura implicava aquisição de conhecimento, capacidade de associações inusitadas, disposição interpretativa e paixão pela reflexividade. O puído lugar-comum, de que tudo que lemos nos modifica, vale para a obra de Lezama Lima com justeza que nem de longe pode ser confundida com afirmações generalistas sobre o significado da leitura.

Se inevitável percebê-lo logo nas primeiras páginas, o primeiro exemplar que tive em mãos era ainda mais sugestivo sobre aquele diferenciado pacto de leitura. Refiro-me à consagrada edição crítica (de 1988) que Cintio Vitier organizou para a editora Catedra. Além de recuperar texto original de (sem as interferências “retificadoras” em sua pontuação), ele convocou respeitáveis colaboradores para a empresa, como María Zambrano e Severo Sarduy.

As duas novas traduções brasileiras, se estão longe da riqueza exegética da edição crítica, talvez possam, por outro lado, amenizar o “susto” provocado pelo texto “hermético” e “quase ininteligível”. Além de modestas em suas peças de apresentação, não possuem as infindáveis notas de rodapé que, motivadas pelo desejo de esclarecimento, não raro desestimulam a leitura.

Na edição da Martins Fontes, foi veiculado texto introdutório do mesmo Cintio Vitier, onde, para além de quaisquer hermetismo e polêmicas, ele convida os leitores “a desfrutar com naturalidade deste livro” — ambição tão improvável quanto oportuna! Mas, antes de comentar as traduções, é preciso registrar a acidentada negociação que levou ao lançamento desses dois livros.

Os donos do Paradiso
A quem pertencem os direitos autorais após a morte dos autores? Segundo a legislação brasileira, são de domínio público — desde que completados pelo menos setenta anos do falecimento do escritor. Antes disso, pertencem aos herdeiros, que, na ausência de esposa, filhos e netos, podem ser colaterais (irmãos, tios, sobrinhos). Daí a Estação Liberdade ter procurado Eloísa, irmã de Lezama Lima, para adquirir os direitos sobre Paradiso, em 2006.

Acontece que, de acordo com as normas cubanas, quando o autor não deixa testamento, as suas obras são consideradas pertencentes ao Estado, e os interessados em publicá-las devem tratar com a Agencia Literaria Latinoamericana. Foi o que fez a editora Martins Fontes, em 2011. Assim, estabeleceu-se o impasse.

Ainda que maioria dos especialistas consultados durante o imbróglio tenha confirmado que prevalece a legislação do país de origem do escritor, foram os leitores que saíram ganhando, pois as duas traduções chegaram às prateleiras. A da Estação Liberdade foi encomendada a Josely Vianna Baptista, que, embora já houvesse traduzido o livro para a Brasiliense (1987), resolveu recomeçar do zero — e com bem mais experiência e pesquisa acumuladas. Olga Savary, que ficou encarregada da tradução para a Martins Fontes, é responsável pela transposição para o português de outros gigantes da literatura hispano-americana, como Octavio Paz, Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes.

Não obstante algumas resenhas tenham sublinhado diferenças nos estilos, as duas tradutoras apresentaram soluções ora mais, ora menos fiéis ao original. E ambas são exitosas em verter um texto que, em qualquer idioma ou mercado, carrega reputação de ilegível. Final das contas, a disputa editorial não só foi sanada e possibilitou duas opções de leitura, mas também acabou por gerar importante mídia espontânea em torno dos lançamentos.

Qual Paradiso?
Apesar da complexidade do livro, seus comentadores não fugiram à tentação do resumo. A sinopse mais comum trata-o como romance de formação — não ignorando quão problemático seja o paralelo com qualquer outro bildungsroman ou mesmo seu enquadramento no gênero romanesco. Qual opção, contudo, soaria menos estranha? E, de fato, há uma narrativa que acompanha quinze anos de vida do personagem José Cemí, da infância convalescente ao encontro com Oppiano Licario e a descoberta da poesia, das origens e perdas familiares à busca de conhecimento, compreensão e transcendência — numa jornada carregada de referências autobiográficas.

Filho de Rosa Maria e do militar José Maria, Lezama Lima nasceu a 19 de dezembro de 1910, em acampamento próximo de Havana. Possuía respeitável produção poética e ensaística quando, em 1964, sua mãe faleceu. Aos oito anos, Lezama já perdera seu pai (o “Coronel”), e este novo baque provocou séria crise física e psicológica. Segundo o próprio escritor, preencher esses vazios afetivos foi uma das razões do Paradiso.

À homossexualidade e à postura reticente sobre os rumos da Revolução Cubana, juntou-se o escândalo causado pelos relatos sexuais do capítulo 8. Lezama Lima, que chegou a ocupar importantes cargos culturais no regime Castrista, tornou-se figura tratada sempre com suspeita, um exilado em sua própria nação, onde morreria aos 66 anos, em 9 de agosto de 1976.

Sem deixar Cuba, vigiado pelas autoridades da Ilha, com dificuldades para trabalhar a publicação e divulgação de suas obras, ainda assim o autor conquistou notoriedade internacional — sem que isso signifique ampla aceitação. No ensaio Lezama Lima: a imagem possível (publicado em Barroco e modernidade, de 1998), Irlemar Chiampi destacou os extremos da recepção crítica:

Uns veem com restrições e até desconfiança a linguagem tortuosa e obscura dos seus versos e prosa e confinam seus escritos à categoria do aberrante ou ilegível. Outros aderem com paixão aos seus textos e exaltam sua produção como a mais afortunada aventura ousada por um escritor da América Latina.

Tão perto, tão longe
“Só o difícil é estimulante”, a dificuldade é que suscita e mantém nossa potência de conhecimento. Esta afirmação abre La expresión americana, o mais conhecido e influente ensaio de Lezama Lima, que sempre ratificou a relação entre suas obras ensaísticas e poéticas como chave fundamental para interpretação de seu trabalho. Como formulou Benito Pelegría (na citada edição crítica da Catedra), dessa “ética e estética da dificuldade”, Paradiso se constitui como uma empresa em que o leitor chegará ao deslumbrante sentido final se não se render pelo afã de compreensão imediata.

Na primeira metade do livro, narrada de forma razoavelmente linear, o leitor encontra menos obstáculos e pode intuir aquela mesma síntese feita por Cintio Vitier: “é a história imaginária da formação de um poeta que quer alcançar ou merecer sabedoria. Sua intenção é testemunhal, catártica e pedagógica”. Dali em diante, o texto se torna mais denso, fragmentado, repleto de associações de custosa decifração, movido por um “fervoroso barroco que assimila todos os elementos do mundo exterior” — como definiu o próprio Lezama Lima, apesar dos riscos de simplificação e distorção que acompanham qualquer menção ao barroco.

Nenhum rótulo apreende razoavelmente o excesso de Lezama Lima. Não se trata de “barroquismo” desnecessário e pretensioso. Como bem ressalvou Irlemar Chiampi, a dilatação ornamental não resulta em adjunção inerte, as amplificações e proliferações possuem função estrutural, pressupõem “um centro de irradiação de signos”, cuja infinita geração

desorienta o analista disposto a recodificá-los logicamente e a descobrir neles, se não um princípio ordenador (uma mecânica proliferante), ao menos uma constante que subsuma as modalidades de sua prosa.

Embora tenha legado importantes tópicos de reflexão sobre a obra de Lezama Lima, Ramón Xirau equivocou-se ao defini-la fundamentalmente como um ato de poesia. Sobre seus alicerces bárbaros e exuberantes, Paradiso se aproxima e se distingue tanto da filosofia quanto da poesia. Enquanto aquela busca dizer o enunciado essencial das coisas, sem jamais conseguir expressá-lo de fato, o fenômeno poético é capaz desta transcendência, mas sem oferecer resultados passíveis de demonstração, reprodução e explicação. A suprema ousadia do autor cubano reside em ir além daquela mínima e infinita fronteira entre a filosofia e a poesia, fundado numa poética da imagem (não como metáfora, mas como único mundo que realmente podemos totalizar, enunciar e transcender).

Em Paradiso, Lezama Lima sonhou nos possibilitar aquela fenda que separa objetos e seus reflexos, abismo no qual as imagens/mundo nascem — lugar tão próximo e tão inalcançável! Por isso ele nos chama não para uma leitura que se confunda com as demais — por mais significantes que estas sejam! Aceitar e viver a proposta do autor implica um leitor disposto a retornar outras tantas vezes ao livro, a dar guinada em sua própria formação e, sobretudo, a lidar com todo esclarecimento, fortuna e dor que advêm.

Em época que desdenha a sabedoria e também seu avesso (o excesso), leitores brasileiros interessados em assumir essa viagem/epifania — ou em desmentir esta resenha, juntando-se aos que veem o livro como uma aberrante e ilegível jornada a lugar nenhum — possuem duas novas oportunidades em catálogo. Talvez o Paradiso nunca tenha sido tão próximo, nem tão distante.

Paradiso

José Lezama Lima
Trad.: Josely Vianna Baptista
Estação Liberdade
624 págs.
Paradiso
José Lezama Lima
Trad.: Olga Savary
Martins Fontes
622 págs.
José Lezama Lima
(1910–1976) nasceu e faleceu em Cuba. Foi um dos mais importantes ensaístas, poetas e prosadores hispano-americanos. Além de Paradiso (em catálogo com duas traduções), já foram publicados no Brasil A expressão americana, A dignidade da poesia e Fugados.
Cristiano Ramos

É escritor, crítico literário, professor e jornalista. Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco. Em 2015, publicou os poemas de Muito antes da meia-noite.

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