Dois autores do fundo da gaveta

Dois cearenses. Jorge Pieiro nasceu em 1961, em Limoeiro do Norte. Pedro Salgueiro nasceu em 1964, em Tamboril
Pedro Salgueiro, autor de “Inimigos”
01/06/2002

À guisa de guisado
Dois cearenses. Jorge Pieiro nasceu em 1961, em Limoeiro do Norte. Pedro Salgueiro nasceu em 1964, em Tamboril. Dois escritores originais com originais novos à espera de Godot. Jorge, quando escreve, explora as potencialidades da noite, os encontros fortuitos, os acidentes verbais, a alucinação gramatical. Pedro explora as potencialidades do dia, os encontros marcados, os acertos verbais, a clareza gramatical. O primeiro deve soar obscuro aos de mente serena e linear. O segundo deve parecer simplório aos que curtem malabarismos e pirotecnias. Paciência. Um é o reverso do outro — gêmeos xifópagos —, e a prosa de ambos se completa. Jorge expõe impressões furiosas e carregadas de simbolismo. Pedro conta histórias fantasmagóricas de maneira legível e tranqüila. Neste guisado de letras, vou devolver, meio misturado, o que tirei dos novos trabalhos de Jorge e Pedro. Que isso lhes sirva de lição: original na gaveta é câncer no pulmão, mais dia menos dia mata. Se o editor não vem, vire-se — nem que for para o nascente luminoso de uma fotocopiadora. A Xerox sabe o que faz, os correios também. Foi assim que tomei conhecimento desses dois livros inéditos.

A ilha do dia anterior
Jorge Pieiro insiste em construir objetos que não são. Rostos que não são, asas que não são, novelas que não são. Por muito menos que isso crucificavam-se pessoas nas cercanias da Roma antiga. Hoje, ninguém faz nada, não atiram nem a primeira nem a segunda pedra. Mesmo assim, é de espantar o fato de esse conjunto de cabeça, tronco e membros — com RG, CIC e carteira de trabalho — continuar caminhando tranqüilamente pelas ruas de Fortaleza, indiferente à temperatura e ao itinerário dos ônibus. Indiferente à indiferença dos leitores que ainda não conquistou, que jamais conquistará — leitores de livros de carne e osso que são o que são, não de ilusões ou vapor barato. Jorge é o autor da coruja dentro da coruja, do poema dentro do conto, do conto dentro do romance, do romance dentro do poema. Ou seja, ele vende lebre por gato, sempre.

O primeiro trabalho que li de Jorge, a culpa foi toda do Manoel Ricardo de Lima. Caos portátil, esse o nome da armadilha recheada de fragmas e contemas, dedicada ao biltre Uilcon Pereira. Na sua coluna de jornal, Manoel cometeu o desatino de botar lado a lado o caos e o treze, sinônimos perfeitos do grande sortilégio. Foi em 1999, o acaso regeu o destino dos desatentos. Eu acabara de lançar minha terceira coletânea de contos, Treze, e o Jorge vinha com seu saco de gatos caóticos. Logo no título, o sussurro de Cortázar: “Por baixo de noites vomitadas de música e de fumo e de muitas infâmias e truques de todos os gêneros, bem por baixo ou por cima de tudo isso, eu não tinha desejado fingir, como os boêmios o faziam, que esse caos portátil fosse uma ordem superior do espírito ou de qualquer outra etiqueta igualmente podre” (O jogo da amarelinha, capítulo 2).

Anos depois, o umbigo de ebderelis — assim mesmo, com iniciais minúsculas. Só os deuses sabem o valor que a minúscula tem na literatura dos espíritos maiúsculos, de e.e. cummings aos concretistas. Esse livro é a coleta seletiva de tudo o que a sociedade de consumo despreza, as sobras do mercado editorial, da poesia da pequena burguesia. Sobras? De fato. Pieiro é organizador de sobras, não de obras. Tudo o que resta na mente depois que o dia acabou é o que flutua em torno desse umbigo: as latas de cerveja vazias, os versos soltos no espaço, as vontades reprimidas pela razão. Papel, aqui; plástico, ali; metal, acolá. São textos minúsculos, divididos em dois segmentos de reta: Panapletos e Lugaresmos. No primeiro, as ruínas dedicadas a todos os nossos mortos: minicontos sobre as primeiras noções do escuro, as cinzas ao acaso, os gnomos, os unicórnios, os mágicos, todos envolvidos pelos campos magnéticos de Breton e Soupault. No segundo, o resumo de Zaratustra, do homem que clama contra a humanidade, a favor dos super-homens. Mininovela sobrenatural, Lugaresmos se passa na ilha em que tudo é tarde, vigiada por tubarões, habitada por palhaços divinos e pedras que soluçam. Ravi Shankar é o compositor incidental desse coração de boatos cercado de água, água, tanta água por todos os lados.

O umbigo de ebderelis tem sido reescrito freqüentemente, por isso não tem data para ser concluído, muito menos para ser lançado. O autor não tem pressa quanto à redação e à publicação, talvez porque não haja nada que o apresse, e assim vence a gaveta. O país não aguarda ansiosamente por seu novo livro, muito menos os agentes literários internacionais. Pieiro não é Rubem Fonseca, não é Saramago. Quando vou a livrarias, aqui em São Paulo, me pergunto porque os livros deste cearense não estão lá. Com o passar do tempo, parei de ir a livrarias. Mas continuo indo a editoras — apesar do café aguado e da conversa opaca. Também nas editoras que freqüento não ouço falar dos livros de Pieiro, tampouco de uma improvável expedição de resgate aos originais presos no fundo da gaveta. O problema não é apenas com as editoras, o problema é com o país todo, que não está na raia dessa prosa, está noutra muito diferente. Talvez seja hora de parar de ir a editoras, parar de freqüentar o Brasil.

O espanto do espantalho
De onde vêm esses velhos caquéticos, essas casas caindo aos pedaços, essas cidades perdidas no pó? Para onde vão? Por que se recusam a morrer, preferindo, antes, arrastar-se pelo terreno desolado, como se houvesse ainda um fio de luz no fim da vida? De onde vêm esses trens fantasmas que atravessam o descampado, a alma dos defuntos e o chamado dos sinos da igreja? Para onde vão? Por que insistem em cumprir o itinerário de cem anos atrás, se já não há mais ninguém na plataforma da estação? Mas, se a cidade está deserta e a estação, vazia, de quem são esses lenços ao léu, esses adeuses ao deus-dará projetados por mãos que não estão mais ao nosso alcance?

E Pedro Salgueiro, onde está nisso tudo? Ao lado da cama da moribunda que insiste em apontar os urubus, lá longe, na marquise do mercado? No boteco da esquina, de olho no caixão que arrasta atrás de si uma fila de indigentes? Ao pé do balcão da mercearia, próximo dos restos do velho coronel desbotado pelo tempo? Na festa em que desfilam, entre os convidados, a sombra dos antepassados da família? Entre os detentos prestes a escalar o muro da prisão e desaparecer no mundo? Talvez. O mais provável é que esteja, neste exato momento, no labirinto de salas hexagonais — que Borges chamava de biblioteca —, examinando o espírito dos amaldiçoados e dos livros que escreveram. O labirinto é infinito, mas as salas que o compõem, muito apertadas. Mesmo assim, não duvido nada que Pedro esteja agora mesmo numa delas, passando a limpo fórmulas alquímicas e antigos testamentos.

Kafka está ao seu lado, sempre esteve. Rulfo também. Os fantasmas de um são as visagens do outro, e vice-versa — sua língua comum: nem o alemão nem o espanhol, o português —, sendo, todos eles, todas elas, as almas penadas dos mineiros do Ceará, dos maranhenses de São Paulo, dos gaúchos de Goiás, dos povos de que é feito este gigante adormecido. Somos os piolhos do gigante, é o que nos diz Pedro e as assombrações amigas de Pedro, nos contos de sua nova coletânea, Dos valores do inimigo.

Todos os bons contadores de histórias estão nas proximidades, atentos às narrativas desse livro. Hemingway e Graciliano, por exemplo. Mas não pensem que o autor é do tipo que faz pose de médium, põe banca e cobra caro para psicografar os lamentos dos que já se foram. Ele apenas conversa com eles, conta-lhes o que se passa em sua terra natal, ouve-lhes a opinião, bota tudo no papel. Isso se chama diálogo estético, ou, nas palavras de Pound, conversa entre homens inteligentes. Desse bate-papo sobre a vida e a arte, não raras vezes escapa mais de um único modo de analisar e compreender as relações humanas.

Quem já passeou pelos livros anteriores de Pedro — Brincar com armas, O peso do morto — com certeza percebeu a insistência de certos assuntos que teimam em se repetir, conto após conto. O retorno à cidade de origem, os vilarejos fantasmas, o encontro com os ancestrais mortos, o jogo de damas que atravessa os séculos. Eu particularmente gosto muito dos contos gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos, em que o mesmo fato é narrado três, quatro vezes, com uma leve, quase imperceptível mudança em cada um. Gosto quando essas microvariações sobre o mesmo tema não vêm lado a lado, mas separadas por outras histórias. De repente, o déjà vu. Epa, eu já não li esse conto? Tenho certeza que sim. Ou não? Quando li, não era bem isso que acontecia… Será erro de edição? De jeito nenhum. São as diferentes versões de um mesmo crime, ora descrito pelo assassino, ora pela vítima, ora por um passante qualquer.

E Pedro Salgueiro, onde está nisso tudo? Na platéia do circo em que o mágico errou a mão e o truque, cortando espalhafatosamente sua deliciosa assistente ao meio? Junto com a multidão, pelas ruas da cidade, cutucando com vara de ponta o ladrão pego em flagrante? Vestido de espantalho: chapéu de abas largas, camisolão estampado, cara de espanto de quem se vê no espelho? No ônibus, de olho no fauno quase centenário rejuvenescido pelo olhar da moça desavisada? Ao lado do homem bem-sucedido, nas asas do vento e nos olhos de um cão? Talvez. O cotidiano dos mortos-vivos o fascina. Por isso, o mais provável é que esteja neste momento atrás da porta, te observando pelo buraco da fechadura.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho