Araras vermelhas e Estesia são os mais recentes livros da poeta e vereadora do Recife Cida Pedrosa, ganhadora de prêmios como o Jabuti e o APCA de literatura. Ainda que estes dois livros difiram bastante desde a forma — Estesia reúne sucessivos poemas de três versos cada, haicais, ladeados por fotografias que acompanham o texto; enquanto Araras vermelhas traz cinco longos cantos, formando um único e extenso poema —, é possível traçar alguns paralelos entre ambas as publicações. Mas vejamos, primeiro, cada um em suas singularidades.
Edmilson Pereira de Almeida, no excelente texto de orelha para a edição de Araras vermelhas, traz o que nos serve como uma breve definição para o teor do livro:
No presente livro, a poeta libera um ciclone de informações derivadas de dados biográficos, arquivos jornalísticos e referências linguísticas, bem como do modus vivendi das manifestações populares e de práticas da cultura pop para enfatizar a perseguição contra os militantes da esquerda alojados na região do rio Araguaia, na década de 1970.
Chama atenção a extensa pesquisa histórica e a ampla referenciação cultural, além das memórias pessoais entrelaçadas aos fatos. A mescla de tais componentes retrata um episódio pouco comentado da história do Brasil, a Guerrilha do Araguaia, movimento de caráter revolucionário comunista no Brasil, que aconteceu entre 1967 e 1974, na região conhecida como Bico do Papagaio, fronteira entre os estados do Pará, Maranhão e Goiás.
O primeiro dos cinco cantos do livro começa assim:em 18 de outubro de 1970 o LP pearl de janis joplin
teve sua edição finalizada após sua morte em 04 de
outubro dia de são francisco de assis
eu completei sete anos e no dia seguinte cantei o hino
nacional em formação e jurei a bandeira na entrada
do grupo escolar arthur barros cavalcante
a nação ainda uivava nas ruas reverenciando a seleção
que ganhava seu tricampeonato mundial
no planalto central emílio garrastazu médici o terceiro
na linhagem de ditadores do golpe e 1964 empreende
sua campanha de alta repressão aos militares de
esquerda
em port Arthur os pais de janis não puderam segurar o
corpo da filha em estado de despedida pois suas cinzas
foram jogadas ao vento da cidade de são Francisco por
seu desejo e vontade
vinte dias depois no chile salvador allende ocupa pelo
voto popular o palácio de la moneda levando nas asas
a dor da américa
no recife uma mão busca enlouquecidamente seu filho
desaparecido após prisão pelo DOI-CODI outra mãe se-
gurando uma pequena sacola de pão espera na fila
interminável do dia de visita um filho chora sozinho
e se encolhe no catre após sevívias que o levarão à lou-
cura
joão ricardo cria em são paulo a banda secos e molha-
dos e no reino unido o black sabbath lança seu pri-
meiro LP
Há inúmeras referências musicais ao longo do poema, desde transcrições de letras de música a dados sobre lançamentos como os de artistas brasileiros ligados à Tropicália. Também tem destaque o fazer musical pela via do próprio poema, através de seu ritmo. Cida Pedrosa se vale de rimas e repetições, seja ao usar constantemente as aliterações, seja pela criação de tipos de refrõezinhos, que repetem palavras ou versos consecutivamente, para reforçá-los no texto.
A pandemia
Se o longo poema de Araras vermelhas decorre do período da Guerrilha do Araguaia, e funciona como uma espécie de arquivo histórico, cultural e pessoal daquele tempo, Estesia também é concebido a partir da referenciação a um período bastante específico de nossas vidas recentes, a pandemia de covid-19.
O procedimento que origina o conjunto de poemas e fotografias reunidos em Estesia é informado pela poeta no início do livro, antes dos poemas, numa espécie de nota da autora à edição, nomeada como Por trás da máscara.
Ali ela escreve que vive imersa num turbilhão de tarefas e, por isso, geralmente tem pouco tempo para a contemplação. Esse estado é, contudo, abruptamente modificado na pandemia, já que a mortandade geral obrigou a população a se retirar de sua vida comum, corrida. A alternativa para atravessar tais tempos sombrios, Cida Pedrosa relata, foi começar a passear muito com seu cachorro Bob Marley e, consequentemente, fazer registros desses momentos de contemplação:
Logo comecei a unir a contemplação, registros fotográficos, registro poético. Por vezes, fotografava na rua e escrevia quando chegava no apartamento; por vezes, escrevia no próprio lugar fotografado; por vezes, criava o poema em áudio no celular e transcrevia depois. Algumas apreciações foram realizadas dentro de nossa casa, o que ressalta o quanto estamos anestesiados para o essencial.
Os curtíssimos poemas do livro, haicais, breves retratos de instantes, estão acompanhados sempre por uma fotografia, também feita pela poeta. Dentre os poemas, lemos:
O Deus está só
Neste asfalto sem rodas.
Silêncio traz medo
Ou:
Clitóris lilás
A alegrar o passeio.
Reage a beleza.
Ou ainda:
Nós somos andantes
De infinitos segredos.
O amor é a guia.
Os haicais de Cida Pedrosa não fazem referência direta ao momento histórico do qual se originaram, nem informam discursivamente seu período de produção. Essas informações nos são reveladas pela autora em um extratexto, na nota introdutória à edição. Mas a conjunção entre imagem e poema, ainda que não exponha datas ou nomes que levem a uma apreensão mais factual da realidade, permitem alcançar vestígios de um tempo, ilustrando espécie de memória coletiva por meio de uma vida singular. Quer dizer, a criação textual e imagética em Estesia é da ordem do testemunho.
Há um ímpeto narrativo no livro que reconstrói o período da Guerrilha do Araguaia, enquanto os poemas de pandemia contêm um efeito fotográfico causado pela síntese e pela elipse textuais. Além disso, pesquisa histórica, referenciação a objetos culturais, registro factual, recursos de repetição de sons ou imagens e explicitação do modo de produção são alguns dos procedimentos por meio dos quais os livros ganham contorno. As respectivas estratégias formais revelam a substância inerente a cada conjunto de poemas e seu tempo referencial: um está cronologicamente mais afastado do presente e já é espesso em fatos, o outro se faz a partir de acontecimentos tão recentes que precisam ainda ser testemunhados.
Se em Araras vermelhas ganha destaque a profusão de datas, nomes, referências e fatos, relacionados internamente de modo ao mesmo tempo crítico e lírico, como um documentário em versos, ou um poema factual, em Estesia há, não uma pesquisa arquivística, mas a produção mesma do arquivo, do testemunho — como registros fotográficos que precisam de um subtexto para iluminar o tempo a que pertencem, e vice-versa. Pode-se dizer que ambos os livros se colocam eticamente no presente diante de outro tempo. Retornam a um passado, menos ou mais recente, para reelaborá-lo ou testemunhá-lo, a partir de um eu que se sabe não exclusivamente lírico, posto que também se posiciona histórico.