Literatura é esfinge. Indecifrável.
O que é literatura? Quem sabe o que é literatura?
Literatura é difícil, talvez impossível, de definir.
O sujeito escreve, de fato, literatura e, questionado, raramente consegue dizer o que é.
O sujeito passa doze, dezesseis, vinte anos na universidade a lecionar literatura e, então, interrogado a respeito, pode não apresentar resposta suficiente.
Literatura é o legado Franz Kafka? Literatura é a obra de Clarice Lispector? Literatura está nos livros de João Gilberto Noll? Literatura é o que irradia das páginas dos livros de Nelson Rodrigues? Literatura é a poesia que fez João Cabral de Melo Neto? Literatura é todo e qualquer conto de Hemingway? Literatura é a prosa de Dalton Trevisan?
O sujeito estuda, lê, relê, participa de programas de extensão mas ainda assim tem dificuldade em responder: o que é literatura?
A escola não diz o que é literatura. A universidade não dá conta de explicar o que é literatura. A crítica muitas vezes é incapaz de entender o que é, ou pode ser, literatura. Os escritores, os poucos, os escritores mesmo, não estão a fim de esclarecer o que é literatura. Os professores de literatura, então, não sabem nem poderão saber o que é literatura.
O que é literatura?
Um dicionário pode reduzir literatura a um verbete. Um curso de literatura pode resumir literatura a um conjunto de normas. Um mestre em literatura pode querer apreender a literatura a partir de algumas teorias. Um resenhista…
E, apesar de tudo, e de todos, a literatura, ah, a literatura é mais.
O que é literatura?
Outra coisa
A literatura na poltrona — jornalismo literário em tempos instáveis, mais recente livro de José Castello, apresenta alguns pontos de vista do autor. São 15 capítulos. E em todos eles as reflexões foram deflagradas a partir do ato de ler.
Castello defende, e defende sim, o ato de ler. Mas a leitura sem anteparos. A leitura sem os óculos do conhecimento sistematizado para ler. A leitura. A leitura que proporciona prazer. A leitura que incomoda. A leitura enfim que modifica quem lê. “Para que mais alguém lê um livro, senão para se transformar?”.
Castello desmonta lugares-comuns. As observações do leitor-escritor-crítico-jornalista-intelectual se fazem a partir do contato direto com os livros, distantes de posições acadêmicas, professorais ou guiadas-por-apostilas-ou-cartilhas-do-pensar-correto. Ao invés disso, a idiossincrasia. Castello recupera algumas experiências decisivas de sua trajetória enquanto leitor. Por exemplo, quando leu pela primeira vez Robinson Crusoe:
Lia e relia o livro e, quanto mais lia, mais inquietação ele me causava. Aquilo — aquele choque, aquela colisão de sentimentos e palavras — é o que mais me importa no livro de Defoe. Lendo Robinson Crusoe, aprendi (sem saber que aprendia) o que é a literatura. Isso sim, e nada mais, é a literatura. O estilo, o domínio da língua, as referências cultas — o “bem-escrito” — não passam de uma conseqüência. É o veículo, quando não é apenas decoração. A literatura é outra coisa.
Literatura é outra coisa.
Literatura é outra coisa?
O que é literatura?
Castello não oferece um porto seguro. Antes, faz um elogio à dúvida.
Castello, a exemplo do que articulou em outra obra, Inventário das sombras, fala neste A literatura na poltrona sobre um dos aspectos que mais preza na literatura, um efeito que a leitura provoca nele: o susto.
Castello sabe que, em se tratando de literatura, o estudo acadêmico que nos perdoe, mas o susto é fundamental.
Susto
Ler. Apenas ler. E deixar que essa outra coisa que é a literatura entre em contato, aconteça. Castello acredita que o susto que o leitor pode vir a sentir, a ter, é o que há de mais relevante na experiência da leitura. Ele acredita nisso:
Voltar à experiência íntima e direta da literatura, sem o apoio de intermediários, sem manuais de leitura, sem muletas, ou precauções. Regressar à leitura dos grandes livros, retomar a experiência — prazerosa, mas atordoante — do puro prazer de ler. Recuperar o impacto, a desordem íntima, a devastação interior que a leitura de um grande livro sempre provoca. Expor-se: entender que ler é, também, ser lido.
Ler é ser lido. Isso nenhuma escola ensina. (De repente, é História de cronópios e de famas que lê o leitor). Ler é ser lido. Isso nenhum curso universitário ensina. (Inesperadamente, é A invenção de morel que lê a leitora). Ler é ser lido. Isso nenhum expert em assuntos literários ensina. (Inacreditavelmente, é Sobre Roderer que lê os leitores). Ler é ser lido. Isso é reflexão de José Castello, leitor, escritor, jornalista que atua na área de literatura há tempos e reflete e constata. E há outros argumentos que reforçam a idéia de que ler é ser lido:
Não somos nós que analisamos a literatura, que a interpretamos. É ela que nos analisa e nos interpreta. Se lemos Doutor Fausto, de Goethe, ou Madame Bovary, de Flaubert, ou o Hamlet, de Shakespeare, ou o Quixote, ou os poemas de um John Ashbery, de um Rimbaud, de um Neruda, de um João Cabral, na verdade não somos nós que lemos; são esses escritos extraordinários que nos lêem e nos decifram. São eles que nos arrancam de nossos sonhos e ilusões, onde estamos imobilizados pela rotina e pela preguiça, para nos confrontar com o grande rombo, o grande escândalo da vida, desordem que a palavra sintetiza, metaforiza a vida.
Ler é ser lido — este ponto de vista de José Castello, entre outras coisas, é libertário. Afinal, liberta o leitor de qualquer outra função que não a de ser, apenas, justa e exclusivamente, leitor. O leitor, por exemplo, não precisa supor que tem de fazer a leitura ideal ou a leitura amparada por este ou aquele outro livro para vir a ter contato com a obra que realmente pretende ler. Não. O leitor, eis, enfim, está à vontade para se deparar com o que realmente importa, que é o livro a ser lido. E mais: Castello salienta ainda que cada leitor diferente lê o mesmo livro e nenhuma leitura é necessariamente a certa, a correta ou a ideal.
A leitura é um ato silencioso, íntimo intraduzível. O Grande sertão que eu leio não é o Grande sertão que você lê; nem as Ficções do interlúdio, ou o Bartleby & Cia, ou o Coração das trevas, ou o Harmada. Livros, grandes ou pequenos, só existem na cabeça do leitor — sempre no singular. Mais ainda: existem, em cada cabeça, de uma maneira diferente. Daí que cada leitor “lê” um livro, o “seu” livro, ainda que leia o mesmo livro. Cada livro, para cada leitor, é um livro diferente.
Libertação. Liberdade. Eis o que Castello defende e oferece como perspectiva aos leitores. Esta resenha, até aqui, recortou apenas alguns detalhes de A literatura na poltrona (de repente, o que foi comentado é — sim — o que teve ressonância maior sobre este leitor, eu). Há muito, muitíssimo mais na obra. E então, se faz necessário pontuar, ou inserir uma vírgula (um intertítulo, uma retranca), para, ao menos, apontar outros aspectos interessantíssimos de A literatura na poltrona, obra que liberta e ilumina.
Outras palavras
José Castello apresenta reflexões sobre o jornalismo literário. Ele é um dos mais experientes e competentes da área. Sugere, a partir de seu know-how, por exemplo, que o entrevistador, ao invés de disparar perguntas e mais dúvidas, simplesmente ouça o entrevistado. Sim. Ouvir. Escutar. E não conduzir um bate-papo a partir de um possível plano de conversa pré-determinado. Antes, deixar que a conversa seja, realmente, uma conversa. Uma interlocução. Castello não quer, com isso, oferecer uma forma de conduta. Trata-se de uma constatação. Ele fala sobre o assunto no capítulo que abre o livro, capítulo batizado de O repórter depõe as armas, capítulo em que recupera o encontro que teve com Hélène Cixous, especialista em Clarice Lispector.
José Castello, biógrafo, também analisa a atividade. Desconstrói a miragem que sugere que uma biografia pode vir a refletir tudo de um biografado. Fala com conhecimento do assunto. Ele é biógrafo entre outros de Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga e Pelé. Relativiza a biografia:
A biografia é um gênero literário. Quando decide biografar um escritor, o biógrafo deve escolher, antes de tudo, que biografia deseja fazer, e também que biografia deseja evitar. Todo biógrafo, todo escritor, tem seus limites, ou melhor dizendo, cria seus próprios limites.
José Castello pondera sobre a impossibilidade de se traçar um quadro completo da vida de alguém, seja quem for, uma vez que tal projeto se anuncia como utópico, se não impossível. Quantos silêncios, omissões, lacunas e mesmo ficções compõem o passado de qualquer pessoa? Como enfrentar tal impasse? Castello não oferece respostas. Questiona.
José Castello ainda analisa autores em textos, capítulos, específicos. Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, Jorge Amado, Orides Fontela e Carlos Drummond de Andrade. As escolhas não foram aleatórias. Nem idiossincráticas. Castello fez opções para repensar aspectos a respeito de cada um deles. E para desconstruir lugares-comuns.
José Castello analisa simultaneamente Edgar Allan Poe e João Cabral de Melo Neto, discute os tênues limites entre os gêneros literários, avalia a função da crítica, comenta as oficinas de criação — para ele, coordenador de cursos em Curitiba, oficinas de imaginação e, sobretudo, se volta para a paixão. “A arte não se faz sem o recurso da paixão”, escreve Castello. Diz mais:
A arte — a literatura — não é o terreno dos resultados, e sim do risco. É misteriosa a experiência da criação e ninguém a atravessa sem uma boa dose de entrega e de perigo. Um artista cria a partir de sua experiência pessoal, da cultura que o formou, mas também da que acumulou, dos saberes que lhe transmitiram; mas cria, ainda, a partir do que desconhece, do que não domina e, até, do que o assusta e submete.
O que Castello escreveu, transcrito neste parágrafo anterior, a respeito da arte, pode ser aplicado, direcionado, também, e sobretudo, para o que ele escreveu a respeito da grande arte e está nas páginas deste A literatura na poltrona.