O livro é pequeno, miúdo, rápido, mas nada superficial. O assunto rende. Na verdade, os assuntos — o sobretudo como objeto de memória, a figura de Marcel Proust, a obsessão em torno da literatura.
O tom de relato confessional e intimista foi preterido por Lorenza Foschini para contar a história do sobretudo de Proust. A autora é jornalista da RAI, emissora de TV estatal da Itália, e é formada em filosofia. Sua linguagem objetiva, porém não fria, explicitada já na abertura — “Este não é um conto imaginário” —, nos lembra o tempo todo que o livro poderia ganhar perfeitamente um documentário ou um programa de cultura na TV. Lorenza nos guia pela mão e nos faz sentir, vivenciar, a saga da busca ao sobretudo e o que este objeto esconde. Mesmo que o leitor não tenha nenhuma informação sobre o que diabos um sobretudo tem a ver com a criação literária e o legado intelectual de seu dono, o fato é que o tema gera curiosidade. Lorenza atesta que “mínimos detalhes, […] objetos sem valor […]. As coisas mais comuns […] podem revelar cenários de inesperada paixão”.
Da Itália para a França. Da hipocondria para a literatura
Literatura é arte. Arte e memória têm lugar em instituições de acervo e preservação de patrimônio cultural, como museus, centros culturais, bibliotecas, gabinetes. E livros. Livro entendido como espaço físico que abriga histórias, memória, personagens, cenários, tempos diferentes. Tempos diferentes, neste caso, sobre um mesmo tema — a busca pelo sobretudo que acompanhou Proust em suas criações e devaneios; que foi coadjuvante nas noites de escrita “solitária” de Em busca do tempo perdido, da Recherche; que o abraçou em sua hipocondria aguda; que o cobria e o protegia em sua fragilidade e ao mesmo tempo austeridade.
O voyeurismo de Lorenza Foschini no momento em que descreve a aparência, a textura, o desgaste pelo tempo e a alfaiataria do sobretudo ao tocá-lo e depois ao depositá-lo na caixa-abrigo é gostosamente acompanhado por nós. Os detalhes da peça de vestuário como objeto de colecionador são fundamentais para entender como essa história começou: com um profissional da moda. Foi após entrevistar o figurinista italiano Piero Tosi, que conheceu o francês Jacques Guérin — perfumista obcecado por Proust —, durante uma viagem a Paris em busca de locações para um filme de Luchino Visconti baseado no livro Em busca do tempo perdido, que Lorenza teve o insight de pesquisar e escrever acerca do sobretudo de Proust.
Foi o gosto pela literatura, pelo hábito antiquário e a hipocondria que uniu Guérin a Proust. Exímio colecionador aos 18 anos, quando arrematou uma edição original de um então desconhecido Apollinaire por uma bagatela de cem francos, foi aos 20, quando uma possível apendicite o levou a Robert Proust, cirurgião e irmão de Marcel, que começou a lê-lo. Mais tarde, o perfumista, já consagrado também como bibliófilo e colecionador, descobriria, ao verificar os apontamentos de Proust em sua edição de Sodome et Gomorrhe, que o desejo por perfumes seria outro elo entre eles.
Guérin flanava por livrarias parisienses nos anos 1930. Numa dessas visitas a um novo estabelecimento no Faubourg Saint-Honoré, tem acesso a manuscritos, móveis e ao novo “guardião” dos objetos e obra de Proust, o comerciante Werner; Robert havia morrido semanas antes, Guérin tomou conhecimento através dos jornais. Tomado de uma vontade irresistível em adquirir pertences de Proust, o perfumista aceita a oferta de Werner pela escrivaninha e estante de livros.
“Uma atmosfera de desmantelamento” é como Foschini narra a sensação de Guérin ao se deparar com a mobília. Era o “fim” que Guérin leu gravado nos cadernos de Proust com sua caligrafia “meio deitada, embrulhada, descendente, apressada”, descreve.
Fim: “Agora já posso morrer”
Após noites a fio envolto pelo sobretudo, Proust sentencia à sua fiel governanta Céleste que já poderia morrer, pois havia concluído o volume que o ocupara madrugadas adentro. Céleste lhe adverte que ainda faltariam acertos, correções, adendos ao trabalho e que Proust deveria, portanto, seguir produzindo. “Está me parecendo feliz demais”, ironiza carinhosamente Céleste, que no fundo nutria certo temor em ver o patrão não produzir à noite. Ela sabia que era isso que o remediava, mais do que as idiossincrasias de não usar aquecedor nem lareira no frio intenso para evitar asma, colocar gelo no quarto, fazer uso de medicamentos.
Em Os hipocondríacos: vidas atormentadas (Tinta Negra), o irlandês Brian Dillon comenta que Proust fazia uso do “sobretudo pesado que estava pendurado no estrado da cama manchado e que usava como um roupão quando tinha forças para sair da cama”.
O impasse com os Proust
O doutor Robert criara um impasse à publicação da obra póstuma de Marcel. Gaston Gallimard, o editor, escreve insistentemente a Robert pedindo-lhe providências quanto à liberação dos manuscritos originais, mas Robert não se dá por vencido e com isso descarta cópias de manuscritos como Albertine disparue.
É com esse mesmo ato desprovido de preservação e memória que madame Robert Proust, sua viúva, tratara o legado literário de Marcel. Sua atitude de mandar arrancar as páginas de dedicatória dos livros de Proust e de queimar boa parte dos seus manuscritos, afinal não queria ver o nome da família sendo exposto e circulando por Paris e precisava dar fim àquela papelada interminável, levou Guérin, ao visitar o apartamento dos Proust com Werner para buscar a mobília, a salvar dois volumes de Montesquiou-Fézensac com dedicatória “lisonjeadora, poética e incrivelmente longa” a Marcel, “sobrevivente à fúria assoladora que quer destruir qualquer resquício” da madame Marthe. Guérin é tomado por uma irresistível obsessão de adquirir os pertences de Proust e evitar, assim, que a loucura de Marthe — que a essa altura já havia descoberto que perdeu um bom dinheiro com a queima das “paperassouiles” — se estendesse. Marcel, para ela, não passava de “um ser bizarro”, como teria dito ao pesquisador proustiano americano Philip Kolb, respondendo a uma de suas tentativas de entrevista acerca de Marcel.
Guérin e Werner se tornam mais próximos e, com isso, Guérin vai mais fundo na busca pelos objetos de Proust relegados e descartados sem piedade pela família. Quando Guérin se depara com a cama que Marcel tinha desde os 16 anos e na qual passou noites insones produzindo suas criações, a cama em que, segundo Walter Benjamin, Proust “jazia dilacerado pela saudade”, ele se emociona.
A certa altura, Werner lhe confidencia que madame Marthe, num “acesso de sensibilidade e bondade”, deu-lhe o sobretudo de Proust para que se protegesse do frio. “Não, não! […] traga. […] Quero-o mesmo que esteja sujo e rasgado”, suplica Guérin.
A imagem
Com algumas fotos meramente ilustrativas, pois não há indícios de tratamento de imagem e de preocupação com o aspecto fotografia, a edição mostra registros da autora no Museu Carnavalet — que hoje abriga os objetos que acompanharam Marcel nas suas três residências após a morte de seus pais, com o detalhe de como Proust os via quando acordava, à exceção do sobretudo, armazenado em uma caixa no porão do museu, entre folhas e papel de seda —, imagens de Proust — com o sempre inseparável sobretudo —, e na infância com o irmão Robert, de Guérin e da capa do catálogo de sua coleção de manuscritos, alguns dos objetos retratados no livro, além de uma caricatura de Proust, de autoria de Jean Cocteau.
Os registros que se tem de Proust em geral são dele envolto em seu sobretudo. Definitivamente, a imagem de Proust é atrelada a essa peça do vestuário, tão presente em sua “biobibliografia”. Foschini explica que Marcel se vestia daquele jeito desde os 20 anos (coincidentemente a mesma idade com que Guérin passou a lê-lo). “A sua imagem parecia ter-se fixado nos tempos da juventude, como que embalsamada”, opina.
Cocteau, amigo com quem Marcel conviveu e se correspondeu, também o retrata “encapotado em seu sobretudo forrado de pele, lívido, os olhos roxos, inchados, com um litro de água Evian enfiado no bolso”. Da cama a hotéis de luxo, como o Place Vendôme, lá ia Proust, sem fazer distinção dos locais por onde circulava com a peça de vestuário, ciente de que despertava curiosidade por onde passava. Afinal, um sobretudo forrado de pele à mesa para jantar não era visto todos os dias na Paris do início do século 20.