A academia não lembra um filme de terror, é o próprio terror. É de estarrecer, de deixar seqüelas lamentáveis nos jovens cérebros que adentram seus vaidosos meandros. É um mundo paralelo, a second life, onde nada sai dos trilhos. Oferece regras e manuais a toda e qualquer espécie de manifestação, seja artística seja comportamental, o certo é o que está em seus compêndios. Algo próximo aos profetas do acontecido. Discutem o indiscutível, é a oficina do pronto, do acabado. Quem se atrever por essas veredas que vá pronto a obedecer. Garantia de mestrados, doutorados e pós tudo.
O paciente leitor que visita o expediente deste jornal sabe que freqüento tal ambiente. Freqüento, mas não aplaudo, quando aceito os comandos o faço sem macaquear.
É de impressionar a qualquer leigo a devoção da academia a Bakhtin, para não citar outros oráculos do saber literário, ou melhor, oráculo da criatividade dirigida.
Pois o citado teórico classifica o romance de formação (bildungsroman) em cinco subtipos, mas o quinto é o principal. Lá, ele afirma que a formação do homem se dá no tempo histórico real, homem e mundo se formam ao mesmo tempo. Em Zazie no metrô, de Raymond Queneau, temos uma narrativa em harmonia com um momento histórico: a greve do metrô em Paris. Zazie evolui, não ruma a um objetivo pré-estabelecido, não quer ser isso ou aquilo, não pretende subir na vida, simplesmente vive, evolui, naturalmente. Então, digo que Zazie no metrô é um romance de formação. Por mais curto que seja esse tempo, é importante, tanto na formação da menina quanto na formação do mundo. Zazie e mundo se transformam. A última frase do livro é a prova maior.
E tem também a questão do espaço a legitimar Zazie no metrô como um romance de formação, mas não vou abusar da sua paciência, sensível leitor. Seguindo por esses trilhos, daqui a pouco isso parecerá um ataque particular à academia. Não chega a tanto, provocação até que caberia.
Zazie e Alice (Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho) guardam semelhanças incríveis, mergulham nas investigações, não dependem dos adultos, são curiosas, inquietas. A Alice de Carrol segue um coelho falante e ao entrar em sua toca penetra num mundo fantástico, Zazie não consegue andar de metrô, não entra na toca, percebe então que os intestinos da cidade estão à mostra, na superfície. Os subterrâneos de Zazie no metrô são outros; são os da linguagem. Pejorativamente segundo os puristas da linguagem e da língua e merecedores de elogios para os defensores da oralidade, a língua/linguagem das ruas.
Originalidade
A oralidade é o verdadeiro metrô de Zazie, ao utilizar de uma linguagem peculiar, extremamente desbocada para uma pré-adolescentes, ousada acima de tudo, se não esquecermos que ela está fora de seu ambiente, de sua cidade, longe de sua mãe. Zazie é uma adolescente, ao mesmo tempo não tem idade, Zazie é a palavra perfumada com espontaneidade, Zazie é você, eu queria ter sido Zazie. A menina nos redime, nos limpa, nos empresta originalidade. Não, não se trata de coragem, é originalidade mesmo. Que não pare de nascer Zazies.
Zazie no metrô é uma história simples, pode parecer ingênua, quase boba, de tão simples. A obra comemora 50 anos de seu lançamento e duvido que alguma criança de nossa atualidade cibernética venha a se interessar por ela, mas duvido mesmo. A história: Jeanne Lalochère está de namorado novo e entrega a filha ao tio Gabriel para passar uns dias em Paris e disso resulte a possibilidade de um final de semana de amor sem sobressaltos. Zazie não dificulta os planos da mãe, pois seu sonho é conhecer o metrô. Chega a Paris justamente num dia sem metrô.
— Tio — ela grita — , vamos pegar o metrô?
— Não.
— Como assim, não? A menina tinha parado de andar. Gabriel também parou, virou-se, pôs a malocha no chão e começou a esplicar.
— Pois é: não. Hoje, sem chance. Greve
— Greve?
— Pois é: greve. O metrô, esse meio de transporte eminentemente parisiense, adormeceu debaixo da terra, pois os funcionários de alicates perfurantes interromperam todo o trabalho.
— Mas que canalhas! — grita Zazie. — Safados. Fazer isso comigo.
Zazie inconformada sai de casa sem avisar tio Gabriel e empreende longa caminhada pela cidade. Um personagem enigmático, talvez policial, talvez um pedófilo, quem sabe um comerciante ou um guarda de trânsito. O homem pretende levá-la de volta a casa do tio.
A seguir, tio Gabriel sai para um passeio com Zazie a bordo do táxi de seu amigo Charles. A partir daí o tom de comédia pastelão predomina. Confusões e mais confusões envolvem um grupo de turistas. Aparecem outros personagens, todos com participações nas trapalhadas; Turandot, dono de um bar, Mado Petits-Pieds, a garçonete, a viúva Mouaque, morta por tiros de metralhadora, o sapateiro Gridoux e o papagaio Laverdure dono de uma frase que sintetiza as intenções de Zazie no metrô: “Falar, falar, você só sabe fazer isso”. São procedentes as ilações com o papagaio de Flaubert.
Sem traço psicológico
Calma, apressado leitor, tem mais personagens, todas dessa mesma estirpe. Desprovidas de qualquer traço psicológico, não sabemos de onde procedem ou se pretendem ir a algum lugar, o presente é tudo e o gastam sob o signo das confusões, das brigas e das trapalhadas.
No centro Zazie, a única personagem a tirar conclusões, a única a apresentar um objetivo ao menos: passear de metrô. Zazie, a desbocada personagem do tempo.
Pois bem, depois de muita confusão, todas desprovidas de humor, a única personagem espirituosa é Zazie, até mesmo Laverdure torna-se chato; o grupo decide assistir ao show de Gabriel, ou Gabriella, que dança numa boate, vestido de mulher.
Cabe lembrar que numa dessas aventuras de Zazie, sapatos se transformam em passarinhos. De que se trata, dadaísmo, surrealismo? Sonho simplesmente?
Mas isso é uma amostra da história, o de menor importância em Zazie no metrô, o que faz a diferença é o tom documental de uma época (1959 ano da publicação do livro) onde a humanidade ainda não tinha aprendido a ser tão desumana, onde sonhar ainda não se transformara em motivo de risos, mesmo que fossem sonhos urdidos de olhos abertos.
Outros aspectos merecedores de destaque; o posfácio de Roland Barthes, a tradução criativa de Paulo Werneck, no tom da história, brincando com a linguagem, divertida e terna, e a concepção gráfica de Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio.
Numa época onde são recolhidos, condenados, livros escolares por não maquiarem o grotesco que reveste cada vez mais e mais seres humanos, nunca esquecer dos padres, Zazie no metrô não está livre de receber acusações de pervertida história a corromper nossos jovens inocentes. Motivo? A linguagem da protagonista. Enquanto isso, o noticiário político não apresenta o alerta de “impróprio para pessoas honestas que pretendam permanecer assim”.
— Aposentadoria o caralho — disse Zazie. — Não é por causa da aposentadoria que eu quero ser professora.
— Claro que não — disse Gabriel —, a gente até duvida.
—Então por que é? Perguntou Zazie.
— Esplica pra gente.
—Você não seria capaz de descobrir sozinho, né?
— A juventude de hoje em dia é realmente malandra, — disse Gabriel a Marceline.
E para Zazie:
— Então, por que é que você quer ser professora?
— Pra encher o saco das crianças — respondeu Zazie. — As crianças que tiverem a minha idade daqui a dez anos, vinte anos, cinqüenta anos, cem anos, mil anos, sempre vai ter crianças para serem aporrinhadas.
Colegas professores e professoras, por favor, ouçam Zazie, vamos aporrinhar nossos alunos. A primeira aporrinhação: sugerir a leitura de Zazie no metrô. No mínimo, teríamos alunos menos hipócritas e sairíamos de nossos castelos acadêmicos dispostos respeitar a linguagem das ruas. De minha parte a seguir rumarei aos correios, Thamara, minha filha, 16 anos, lerá Zazie no metrô para sua irmã Luísa de 4 anos. Romance de formação, estão lembrados de como começou esta resenha? Pois é.
Thamara sem dúvida fechará com Otto Maria Carpeaux: “Zazie? Do caralho”.